São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000 |
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+ filosofia O pensamento de Hans-Georg Gadamer, que completou cem anos na última sexta-feira, oferece uma saída às rivalidades filosóficas a respeito da verdade A utopia de Gadamer
por Richard Rorty
Com sorte, o debate entre "tecnos" e "obscuros" irá dissipar-se da mesma maneira no curso dos próximos cem ou 200 anos. Pois a tentativa de encontrar uma diferença filosoficamente interessante entre "tecnos" e "obscuros" foi um sintoma da tentativa de preservar uma certa imagem da relação entre linguagem e entidades não-humanas. Essa é a imagem que os nominalistas wittgensteinianos e os filósofos da ciência kuhnianos estão ajudando a abandonar. Se eles tiverem êxito, não acharemos mais paradoxal afirmar que "o ser que pode ser compreendido é linguagem". Esse lema será tomado como um lugar-comum do que seja compreensão, e não como uma tentativa arquitetada para melhorar a imagem das ciências do espírito. Joio e trigo Gadamer já foi muitas vezes acusado de inventar uma variante linguística do idealismo. Mas, como sugeri antes, devemos tomá-lo com alguém que guardou o trigo do idealismo e jogou fora o joio metafísico. O idealismo só passou a ser malvisto porque custou a abandonar a distinção aparência-realidade. Uma vez posta de lado essa distinção, idealismo e nominalismo tornam-se dois nomes de uma mesma posição filosófica. Os efeitos colaterais dessa distinção podem ser vistos em Berkeley. Tendo dito que "nada pode ser como uma idéia exceto uma idéia", Berkeley inferiu que somente idéias e mentes são verdadeiras. O que deveríamos ter dito era que somente uma sentença pode ser relevante para a verdade de outra sentença, uma tese nominalista que é livre de implicações metafísicas. A metafísica de Berkeley é um resultado típico da idéia de que pensamentos ou sentenças se acham de um lado do abismo e são verdadeiras apenas se se relacionarem com algo que esteja do outro lado do abismo. Essa imagem cativou Berkeley e levou-o a concluir que aquilo que se achava do outro lado era homogêneo ao que se achava deste lado, que a realidade era de alguma forma mental ou espiritual em sua natureza. Idealistas posteriores, como Hegel e Royce, recaíram nesse erro ao definir a realidade como conhecimento perfeito ou perfeita autoconsciência. Essa também foi uma tentativa de tornar o abismo transitável, fazendo com que nossa situação epistêmica atual fosse análoga à situação epistêmica ideal, com que nossa própria rede de estados mentais fosse análoga à de Deus. Mas esse tipo de especulação panteísta deixou o idealismo vulnerável ao cientificismo, ao justificado desdém daqueles para quem a tese de que só o mental é real não passa de uma "reductio ad absurdum" da metafísica. E assim é, porém não mais do que a tese de que só o material é real. Ir além da metafísica é deixar de se perguntar o que é ou não é real. A virada linguística Nossa capacidade de voltar as costas a essa pergunta aumentou quando demos aquilo que Gustav Bergman chamou a "virada linguística", virada essa dada quase simultaneamente por Frege e Peirce. Isso porque tal guinada possibilitou a positivistas lógicos como Ayer retirar o que havia de metafísica na teoria da verdade como correspondência. Eles nos incitaram a parar de falar sobre como cruzar o abismo que separava o sujeito do objeto e falar em vez disso sobre como as asserções de sentenças se justificam. Os positivistas viram que, tão logo substituímos linguagem por "experiência" ou "idéias" ou "consciência", não podemos mais reconstruir a tese de Locke segundo a qual as idéias de qualidades primárias têm alguma espécie de relação mais próxima à realidade que as idéias de qualidades secundárias. Mas foi precisamente essa tese que a revolta kripkiana contra Wittgenstein exumou. Ao fazê-lo, os kripkianos estavam proclamando que a virada linguística fora uma idéia ruim, idealista. O atual debate entre os kripkianos e seus colegas, os filósofos analíticos, é uma forma de dar seguimento ao antigo debate sobre o que havia de verdadeiro no idealismo. Um modo mais frutífero, porém, de abordar esse debate talvez seja aceitar uma sugestão de Heidegger. Metáforas falocêntricas Heidegger via a série de grandes metafísicos, de Platão a Nietzsche, como aficionados por controle: pessoas convictas de que o pensamento nos faria alcançar o domínio. De acordo com Heidegger, as metáforas falocêntricas dos nominalistas sobre a profundidade e a penetração são expressões do desejo de tomar posse da cidadela do universo. A idéia de se tornar idêntico ao objeto do conhecimento, de representá-lo como ele realmente é em si mesmo, exprime o desejo de adquirir o poder do objeto. O cientificismo do século 19 zombava da religião e da filosofia idealista porque a ciência natural oferecia uma espécie de controle que seus rivais não podiam oferecer. Esse movimento via a religião como uma tentativa frustrada de obter controle, via o idealismo alemão como uma tentativa escapista, ilusória, de negar a necessidade de controle. A capacidade de a ciência natural predizer os fenômenos e fornecer a tecnologia para produzir fenômenos desejados mostrou que só essa área da cultura oferecia verdadeira compreensão, porque só ela oferecia controle efetivo.
O ponto forte dessa linha de pensamento cientificista é que, embora a compreensão seja sempre de objetos sob uma descrição, os poderes causais que os objetos têm de nos ferir ou nos ajudar não são afetados pelo modo como são descritos. Ficamos doentes e morremos, não importa como descrevemos a doença e a morte. Os cientistas cristãos, infelizmente, estão errados. O ponto fraco do cientificismo é inferir, do fato de que um certo vocabulário descritivo nos permite predizer e utilizar os poderes causais dos objetos, a afirmação de que esse vocabulário oferece uma melhor compreensão desses objetos que qualquer outro. Esse "non sequitur" ainda hoje é explorado pelos kripkianos. Que isso seja visto ou não como um "non sequitur" depende da predisposição de a pessoa redescrever a compreensão do modo como Gadamer sugeriu. Linguagem do presente Para seguir a redescrição de Gadamer, teríamos de abandonar a idéia de um termo natural ao processo de compreender -seja a matéria, seja a missa, seja a "Ilíada", seja todo o resto-, um nível em que cavamos tão fundo que nossa pá entorta. Pois não há limite à imaginação humana -à nossa capacidade de redescrever um objeto e, portanto, recontextualizá-lo. Um vocabulário descritivo é um modo de relacionar um objeto a outros objetos, de pô-lo num novo contexto. Não há limite ao número de relações que a linguagem pode apreender, nem de contextos que os vocabulários descritivos podem criar. Enquanto o metafísico perguntará se as relações expressas num vocabulário realmente existem, o gadameriano perguntará apenas se elas podem ser entrelaçadas a relações apreendidas por vocabulários anteriores de forma útil. Mas, tão logo se usa um termo como "útil", aqueles que acreditam em essências reais e na verdade como correspondência perguntarão: "Útil segundo que critério?". Pensar que tal busca por critérios está sempre em jogo é imaginar que a linguagem do futuro devia ser uma ferramenta nas mãos da linguagem do presente. É tornar-se um aficionado por controle, alguém que pensa poder abreviar a história encontrando algo que se ache por trás dela. É acreditar que podemos agora, no presente, construir um sistema de arquivamento que terá um escaninho apropriado para tudo quanto possa surgir no futuro. Aqueles que ainda esperam um tal sistema de arquivamento selecionarão alguma área específica da cultura -filosofia, ciência, religião, arte- e lhe atribuirão "o primeiro posto no reino da mente pensante". Mas aqueles que seguem Gadamer -e também os que seguem Habermas- deixarão de lado esse projeto hierárquico. Eles o substituirão pela idéia de uma conversação livre de injunções ("herrschaftsfrei"), que nunca poderá chegar ao termo e na qual as barreiras entre as disciplinas acadêmicas são tão permeáveis quanto aquelas entre épocas históricas. Tais pessoas esperam uma cultura em que as lutas por poder entre bispos e biólogos -ou poetas e filósofos, ou "tecnos" e "obscuros"- sejam tratadas simplesmente como lutas pelo poder. Rivalidades como essas sem dúvida sempre existirão, simplesmente porque Hegel estava certo ao dizer que apenas um "agon" dialético produzirá a novidade. Mas, numa cultura que tome a peito o lema de Gadamer, tais rivalidades não seriam pensadas como controvérsias sobre quem está em contato com a realidade e quem ainda está atrás do véu de aparências. Elas seriam lutas para captar a imaginação, para fazer com que outras pessoas usem seu vocabulário. Uma cultura desse tipo parecerá aos metafísicos materialistas uma cultura em que os "obscuros" levaram a melhor, uma cultura em que a poesia e a imaginação por fim triunfaram sobre a filosofia e a razão. Esse pequeno sermão sobre um texto gadameriano que eu venho lhes dando provavelmente parecerá a eles outro exercício de relações públicas em prol das ciências do espírito. Concluo dizendo por que penso não ser essa a maneira correta de ver a questão. Em primeiro lugar, uma cultura gadameriana não teria uso para faculdades chamadas "razão" ou "imaginação", faculdades concebidas como tendo alguma relação especial com a realidade. Quando falo de "captar a imaginação", refiro-me a nada mais que "ser apanhado e usado". Em segundo lugar, uma cultura gadameriana reconheceria que o sistema de arquivamento de qualquer pessoa há de ter um escaninho em que enfiar o sistema de todas as outras. Toda área da cultura teria sua própria descrição das demais áreas da cultura, mas ninguém perguntará qual dessas descrições entende corretamente aquela área. O importante é que ela será "herrschaftsfrei"; não haverá um sistema de arquivamento superior, a que todos devam submeter-se. Meu sermão sobre o texto "O ser que pode ser compreendido é linguagem" obviamente não foi dado como um relato da essência real do pensamento de Gadamer. Antes, é dado como uma sugestão sobre como alguns horizontes a mais podem ser fundidos. Tentei sugerir como a própria descrição de Gadamer sobre a evolução do pensamento filosófico recente pode ser integrada com algumas descrições alternativas que agora estão em voga entre os filósofos analíticos. Eu creio e espero, porém, que uma vez terminado mais outro século, a distinção que acabei de empregar -a distinção entre filosofia analítica e não-analítica- parecerá insignificante para os historiadores da filosofia. Filósofos no ano 2100, creio eu, lerão Gadamer e Putnam, Kuhn e Heidegger, Davidson e Derrida, Habermas e Vattimo lado a lado. Se o fizerem, será porque terão enfim abandonado o modelo cientificista voltado à solução de problemas da atividade filosófica com que Kant onerou nossa disciplina. Eles o terão substituído por um modelo de conversação, um modelo em que o sucesso filosófico é medido por horizontes fundidos, e não por problemas solucionados ou mesmo problemas dissecados. Nessa utopia filosófica, o historiador da filosofia não escolherá seu vocabulário descritivo com um olho na distinção entre os problemas reais e permanentes da filosofia e os problemas aparentes e transitórios. Antes, ele escolherá um vocabulário que o capacitará a descrever o máximo possível de figuras passadas como interlocutores numa única conversação coerente. Plenitude da conversa Gadamer uma vez descreveu o processo de fusão de horizontes como o que acontece quando "o horizonte próprio do intérprete é determinante, mas não como um ponto de vista ao qual a pessoa se apega ou pelo qual se impõe, senão como uma opinião e uma possibilidade posta em jogo e que lhe ajuda a apropriar-se daquilo que vem dito no texto" ("Wahrheit und Methode", 4ª ed., pág. 366). Em seguida, ele descreve esse processo como "a plenitude da conversa ("Gespräch'), na qual ganha expressão uma coisa ("Sache') que não é só de interesse meu ou do meu autor, mas de interesse geral". Substituir a distinção aparência-realidade com a distinção entre um leque limitado e outro mais extenso de descrições seria abandonar a idéia da "Sache" como algo separado de nós pelo abismo que separa a linguagem da não-linguagem. Seria substituí-la por uma concepção gadameriana da "Sache" como algo eternamente aberto à discussão, a ser eternamente reinventado e redescrito no curso da "Gespräch". Tal substituição seria o fim da busca pelo poder que Heidegger definiu como a "tradição ontoteológica". Essa tradição foi dominada pela idéia de que existe algo não-humano a que os seres humanos devem tentar se igualar, uma idéia que hoje encontra sua expressão mais plausível na concepção cientificista da cultura. Numa cultura gadameriana do futuro, os seres humanos desejariam apenas se igualar uns aos outros, no sentido de que Galileu se igualou a Aristóteles, Blake a Milton, Dalton a Lucrécio e Nietzsche a Sócrates. A relação entre antecessor e sucessor seria concebida, como sublinhou Gianni Vattimo, não como uma relação de "Überwindung", uma superação repassada de poder, mas de "Verwindung", uma superação em termos mais brandos. Numa tal cultura, Gadamer seria visto como uma das figuras que ajudou a dar um sentido novo, mais literal, ao verso de Hölderlin: "Seit wir ein Gespräch sind..." ("Desde que somos uma conversa..."). Richard Rorty é filósofo norte-americano, autor, entre outros, de "A Filosofia e o Espelho da Natureza" e "Escritos Filosóficos 1 e 2" (Ed. Relume-Dumará). Tradução de José Marcos Macedo. Texto Anterior: Revista "Teresa" sai em abril Próximo Texto: Quem é Gadamer Índice |
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