São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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+ filosofia
O pensamento de Hans-Georg Gadamer, que completou cem anos na última sexta-feira, oferece uma saída às rivalidades filosóficas a respeito da verdade
A utopia de Gadamer

por Richard Rorty

Num ensaio chamado "Filosofia ou Teoria da Ciência?", Hans-Georg Gadamer indaga se "em algum sentido ainda pode haver filosofia a não ser no sentido da teoria da ciência" ("Razão na Era da Ciência"). Sua própria resposta a essa questão é afirmativa, obviamente. Costuma-se pensar que a chamada tradição "analítica" na filosofia -a tradição que remonta a Frege e Russell e cujos representantes vivos mais proeminentes são Quine, Davidson, Dummett e Putnam- retrucaria uma resposta negativa. Isso porque se costuma julgar essa tradição como uma espécie de órgão de relações públicas das ciências naturais. Quem pensa em filosofia analítica dessa maneira costuma descrever a própria obra de Gadamer como uma espécie de apologia das ciências do espírito. Sob esse ponto de vista, cada uma das "duas culturas", assim batizadas por C.P. Snow, tem seus adeptos filosóficos. Aqueles que aceitam o retrato da cena intelectual pintado por Snow julgam que a disputa entre ciência e religião -disputa que dividiu os intelectuais no século 19- evoluiu para a disputa contemporânea entre aqueles que nós, californianos, chamamos "os tecnos" e "os obscuros". Esse retrato cru e simplificado das tensões no interior da filosofia contemporânea não é de todo equivocado. Mas uma exposição mais detalhada da história da filosofia no século 20 distinguiria entre uma primeira fase cientificista da filosofia analítica e uma segunda fase, anticientificista. Entre 1900 e 1960, a maioria dos admiradores de Frege teria concordado com o dito de Quine de que "a filosofia da ciência é filosofia o bastante". Mas sobreveio uma mudança na filosofia analítica por volta da época em que os filósofos começaram a ler as "Investigações Filosóficas" de Ludwig Wittgenstein lado a lado com "A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas Kuhn. Desde então, mais e mais filósofos analíticos têm dado razão a Putnam, para quem "parte do problema com a filosofia atual é um cientificismo herdado do século 19". Putnam nos incita a abandonar a idéia de que a ciência natural possui um "método" insigne, um método que torna a física um melhor paradigma de racionalidade que, por exemplo, a historiografia ou a jurisprudência. Ele é secundado nesse apelo por filósofos da física como Arthur Fine, que nos convida a abandonar a suposição de que a ciência natural "é especial, e que o pensamento científico é diverso dos demais". Putnam e Fine ridicularizam a idéia de que o discurso da física tenha de algum modo maior contato com a realidade que qualquer outra parcela da cultura. A filosofia da linguagem pós-wittgensteiniana de língua inglesa, do tipo encontrado em Putnam, Davidson e Brandom, tem colaborado com a filosofia da ciência pós-kuhniana de língua inglesa, do tipo encontrado em Latour, Hacking e Fine. O resultado dessa colaboração tem sido borrar as fronteiras entre as ciências natural e do espírito -uma tentativa de fazer com que a controvérsia "tecnos versus obscuros" de Snow pareça tão exótica quanto o debate oitocentista sobre a idade da Terra.

Essências e acidentes
Isso não quer dizer que o cientificismo esteja morto. Há muitos filósofos analíticos de envergadura, em particular seguidores de Kripke, como David Lewis e Frank Jackson, que são inabaláveis metafísicos fisicalistas. Eles se julgam herdeiros da batalha contra o contra-senso mistificador que Thomas Huxley moveu contra o bispo Wilberforce, Russell contra Bergson e Carnap contra Heidegger. Esse filósofos ainda conferem um status ontológico especial às partículas elementares descobertas pelos físicos. Eles acreditam que a ciência natural nos dá essências e necessidades que são, como dizem, "de re", e não "de dicto". Eles julgam que os filósofos da linguagem wittgensteinianos são perigosamente irracionalistas quando dizem que toda a distinção entre essências e acidentes, ou entre necessidades e contingências, são artefatos que mudam à medida que muda nossa escolha de descrição. Eles acham que os filósofos da ciência estão igualmente enganados ao recusarem à ciência natural qualquer privilégio metafísico ou epistemológico.
Essa disputa para saber se a ciência natural é especial hoje domina a filosofia analítica. Nestes meus comentários, pretendo sugerir que uma frase bastante citada e bastante discutida de Gadamer talvez sirva de lema para aqueles filósofos da linguagem e da ciência que seguem Putnam e Fine em vez de Kripke e Lewis. A frase é: "O ser que pode ser compreendido é linguagem". Essa afirmação engloba, segundo meu argumento, tanto o que era verdadeiro no nominalismo quanto o que era verdadeiro no idealismo.
Defino "nominalismo" como a doutrina de que todas as essências são nominais e todas as necessidades, "de dicto". Isso equivale a dizer que nenhuma descrição de um objeto é mais verdadeira à natureza desse objeto do que qualquer outra. Os nominalistas julgam que a metáfora de Platão sobre trinchar a natureza nas juntas deveria ser abandonada de uma vez por todas. Adeptos do nominalismo costumam ser descritos como "idealistas linguísticos" pelos metafísicos materialistas. Isso porque esses últimos acreditam que Dalton e Mendeleiev de fato trincharam a natureza nas juntas. Dessa perspectiva kripkiana, os wittgensteinianos são tão ébrios de palavras que perderam contato com o mundo real, o mundo que a ciência moderna nos franqueou. Filósofos desse tipo aceitam o relato da história da filosofia que Gadamer resumiu ao escrever: "O pronto colapso do império hegeliano do espírito absoluto confirma enfaticamente o fim da metafísica, ou seja, a ascensão das ciências experimentais a uma posição de vanguarda no reino do espírito pensante" ("Razão na Era...").
O nominalismo, contudo, é um protesto contra qualquer tipo de metafísica. É certo que ele foi equivocadamente associado ao materialismo por Hobbes e outros filósofos do início da época moderna e ainda hoje é assim associado por Quine. Mas esses pensadores se contradizem ao sustentar que palavras cuja referência são as menores partes da matéria trincham a natureza nas juntas de um modo que outras palavras não fazem. Um nominalista coerente insistirá que o sucesso profético e explicativo de um vocabulário corpuscular não tem respaldo em seu status ontológico e que a própria idéia de "status ontológico" deve ser abandonada.
Isso significa que um nominalista coerente não pode endossar uma organização hierárquica do reino da mente pensante que corresponda, como os quadros organizacionais de Platão, a uma hierarquia ontológica. As lutas pela primazia entre metafísica e física, ou entre "tecnos" e "obscuros", parecem ridículas de uma perspectiva nominalista. E assim também a distinção de Heidegger entre metafísica e pensamento ("Denken"), ou ainda sua afirmação de que "no fim, a tarefa da filosofia é conservar a força das palavras mais elementares" ("Sein und Zeit").
Para um nominalista, palavras como "physis" ou "essência" não são mais "elementares" ou "primordiais" que palavras como "berinjela" e "beisebol". As palavras mais sonoras não possuem privilégio filosófico sobre os mais crus neologismos, e nem as partículas elementares sobre os últimos artefatos humanos. Para defender minha sugestão de que o nominalismo é melhor resumido pela doutrina de Gadamer segundo a qual só a linguagem pode ser compreendida, exponho a objeção óbvia a esse argumento. Os "tecnos" são rápidos em protestar que o paradigma do aumento da compreensão remonta à apreensão da natureza do universo físico nas ciências modernas -um universo que não é linguagem. A réplica nominalista a tal objeção é: nós nunca compreendemos nada exceto sob uma descrição, e não há descrições privilegiadas. Não há como desviar de nossa linguagem descritiva para alcançar o objeto tal como é em si mesmo -não porque nossas faculdades sejam limitadas, mas porque a distinção entre "para nós" e "em si mesmo" é uma relíquia de um vocabulário metafísico, que sobreviveu à sua utilidade. Devemos interpretar a expressão "compreender um objeto" como uma forma equivocada de descrever nossa capacidade de relacionar velhas descrições com outras novas. Ela é equivocada porque sugere, como faz a teoria da verdade como correspondência, que as palavras podem ser confrontadas com não-palavras, a fim de descobrir quais palavras são adequadas ao mundo.

Novos e velhos predicados
Segundo os nominalistas, o progresso feito pela ciência moderna consiste em formular novas descrições do universo físico e então fundir os horizontes desses novos discursos com aqueles do senso comum e de antigas teorias científicas. Em termos mais gerais, compreender algo melhor é ter mais a dizer sobre ele, é ser capaz de reunir as várias coisas ditas antes de uma maneira nova e perspicaz. O que os metafísicos chamam aproximar-se da verdadeira natureza de um objeto, os nominalistas chamam inventar um discurso em que novos predicados são atribuídos à coisa previamente identificada por velhos predicados -e então fazer com que esses novos atributos se harmonizem com os antigos de modo a darem conta do fenômeno. Ou, nos termos hegelianos de Robert Brandom: compreender a natureza de um objeto é ser capaz de recapitular a história do conceito desse objeto. Essa história, por sua vez, é simplesmente a história dos usos das várias palavras empregadas para descrever o objeto. A tese central do idealismo é que a verdade é determinada pela coerência em vez da correspondência à natureza intrínseca do objeto. Essa doutrina sugere, embora não imponha, a tese do nominalismo: que devemos substituir a noção de "natureza intrínseca" pela de "descrição identificadora". Pois as noções de essência real e verdade-como-correspondência mantêm-se de pé ou vêm abaixo juntas. O lema de Gadamer nos fornece uma forma de varrer ambas do caminho. De fato, esse lema não é uma descoberta metafísica sobre a natureza do ser. É uma redescrição do processo que chamamos "aumentar nossa compreensão". Dos gregos até nós, esse processo foi descrito geralmente com a ajuda de metáforas falocêntricas de profundidade. Quanto mais profunda e penetrante nossa compreensão de algo, assim dizem, mais afastados estamos da aparência e mais perto da realidade. Adotar o lema de Gadamer tem como efeito substituir essas metáforas de profundidade por metáforas de amplitude: quanto mais descrições estiverem disponíveis e quanto maior a integração entre elas, melhor nossa compreensão do objeto identificado por qualquer dessas descrições.

A matéria e a missa
Nas ciências naturais, o exemplo óbvio dessa melhor compreensão é a integração de um vocabulário macroscópico a outro microscópico. Mas a diferença entre esses dois conjuntos de descrições não tem maior significado ontológico ou epistemológico que entre uma descrição da missa nos termos da teologia católica ortodoxa e uma descrição nos termos da antropologia comparada. Em nenhum dos casos há profundidade maior ou maior aproximação à realidade. Mas em ambos há aumento de compreensão. Compreendemos melhor a matéria após os corpúsculos de Hobbes serem suplementados pelos átomos de Dalton, e então pelos de Bohr. Compreendemos melhor a missa depois de Frazer; e melhor ainda depois de Freud. Mas, se seguirmos as implicações do lema de Gadamer, resistiremos à tentação de dizer que agora compreendemos o que a matéria ou a missa realmente é. Devemos ser cautelosos para não explicar a distinção entre maior e menor compreensão com a ajuda de uma distinção entre aparência e realidade.

Véu das aparências
A última distinção tem um uso legítimo, não-filosófico, para descrever as perpétuas ilusões, a chicana financeira, a propaganda governamental, a publicidade enganosa e assim por diante. Mas o progresso intelectual é apenas ocasionalmente uma questão de detectar ilusões ou mentiras. A distinção aparência-realidade não é mais apropriada para descrever os avanços feitos entre Priestley e Bohr do que os avanços feitos em nossa compreensão da "Ilíada". Gabamo-nos de nossa capacidade de fundir as próprias descrições de Homero de seus poemas com aquelas usadas por Platão, Virgílio, Alexander Pope, pelos filólogos do século 19 e pelas feministas acadêmicas do século 20. Mas não dizemos, nem deveríamos, que penetramos o véu das aparências que originalmente nos separava da natureza intrínseca do poema. O poema não tem uma tal natureza, e a matéria tampouco.
O debate "tecnos versus obscuros", tal como o debate religioso do século 19, é uma disputa sobre qual área da cultura fornece um relato preciso de como as coisas "realmente" são. Mas, à medida que o século 20 avançava, propostas para a coexistência pacífica entre religião e ciência proliferaram, e o debate sobre os respectivos méritos das duas começou a parecer pueril.

Gadamer já foi acusado de inventar uma variante linguística do idealismo; mas devemos tomá-lo com alguém que guardou o trigo do idealismo e jogou fora o joio metafísico; uma vez posta de lado a distinção aparência-realidade, idealismo e nominalismo tornam-se nomes de uma mesma posição filosófica


Com sorte, o debate entre "tecnos" e "obscuros" irá dissipar-se da mesma maneira no curso dos próximos cem ou 200 anos. Pois a tentativa de encontrar uma diferença filosoficamente interessante entre "tecnos" e "obscuros" foi um sintoma da tentativa de preservar uma certa imagem da relação entre linguagem e entidades não-humanas. Essa é a imagem que os nominalistas wittgensteinianos e os filósofos da ciência kuhnianos estão ajudando a abandonar. Se eles tiverem êxito, não acharemos mais paradoxal afirmar que "o ser que pode ser compreendido é linguagem". Esse lema será tomado como um lugar-comum do que seja compreensão, e não como uma tentativa arquitetada para melhorar a imagem das ciências do espírito.

Joio e trigo
Gadamer já foi muitas vezes acusado de inventar uma variante linguística do idealismo. Mas, como sugeri antes, devemos tomá-lo com alguém que guardou o trigo do idealismo e jogou fora o joio metafísico. O idealismo só passou a ser malvisto porque custou a abandonar a distinção aparência-realidade. Uma vez posta de lado essa distinção, idealismo e nominalismo tornam-se dois nomes de uma mesma posição filosófica. Os efeitos colaterais dessa distinção podem ser vistos em Berkeley. Tendo dito que "nada pode ser como uma idéia exceto uma idéia", Berkeley inferiu que somente idéias e mentes são verdadeiras. O que deveríamos ter dito era que somente uma sentença pode ser relevante para a verdade de outra sentença, uma tese nominalista que é livre de implicações metafísicas. A metafísica de Berkeley é um resultado típico da idéia de que pensamentos ou sentenças se acham de um lado do abismo e são verdadeiras apenas se se relacionarem com algo que esteja do outro lado do abismo. Essa imagem cativou Berkeley e levou-o a concluir que aquilo que se achava do outro lado era homogêneo ao que se achava deste lado, que a realidade era de alguma forma mental ou espiritual em sua natureza. Idealistas posteriores, como Hegel e Royce, recaíram nesse erro ao definir a realidade como conhecimento perfeito ou perfeita autoconsciência. Essa também foi uma tentativa de tornar o abismo transitável, fazendo com que nossa situação epistêmica atual fosse análoga à situação epistêmica ideal, com que nossa própria rede de estados mentais fosse análoga à de Deus. Mas esse tipo de especulação panteísta deixou o idealismo vulnerável ao cientificismo, ao justificado desdém daqueles para quem a tese de que só o mental é real não passa de uma "reductio ad absurdum" da metafísica. E assim é, porém não mais do que a tese de que só o material é real. Ir além da metafísica é deixar de se perguntar o que é ou não é real.

A virada linguística
Nossa capacidade de voltar as costas a essa pergunta aumentou quando demos aquilo que Gustav Bergman chamou a "virada linguística", virada essa dada quase simultaneamente por Frege e Peirce. Isso porque tal guinada possibilitou a positivistas lógicos como Ayer retirar o que havia de metafísica na teoria da verdade como correspondência. Eles nos incitaram a parar de falar sobre como cruzar o abismo que separava o sujeito do objeto e falar em vez disso sobre como as asserções de sentenças se justificam. Os positivistas viram que, tão logo substituímos linguagem por "experiência" ou "idéias" ou "consciência", não podemos mais reconstruir a tese de Locke segundo a qual as idéias de qualidades primárias têm alguma espécie de relação mais próxima à realidade que as idéias de qualidades secundárias. Mas foi precisamente essa tese que a revolta kripkiana contra Wittgenstein exumou. Ao fazê-lo, os kripkianos estavam proclamando que a virada linguística fora uma idéia ruim, idealista. O atual debate entre os kripkianos e seus colegas, os filósofos analíticos, é uma forma de dar seguimento ao antigo debate sobre o que havia de verdadeiro no idealismo. Um modo mais frutífero, porém, de abordar esse debate talvez seja aceitar uma sugestão de Heidegger.

Metáforas falocêntricas
Heidegger via a série de grandes metafísicos, de Platão a Nietzsche, como aficionados por controle: pessoas convictas de que o pensamento nos faria alcançar o domínio. De acordo com Heidegger, as metáforas falocêntricas dos nominalistas sobre a profundidade e a penetração são expressões do desejo de tomar posse da cidadela do universo. A idéia de se tornar idêntico ao objeto do conhecimento, de representá-lo como ele realmente é em si mesmo, exprime o desejo de adquirir o poder do objeto.
O cientificismo do século 19 zombava da religião e da filosofia idealista porque a ciência natural oferecia uma espécie de controle que seus rivais não podiam oferecer. Esse movimento via a religião como uma tentativa frustrada de obter controle, via o idealismo alemão como uma tentativa escapista, ilusória, de negar a necessidade de controle. A capacidade de a ciência natural predizer os fenômenos e fornecer a tecnologia para produzir fenômenos desejados mostrou que só essa área da cultura oferecia verdadeira compreensão, porque só ela oferecia controle efetivo.

Numa cultura gadameriana do futuro, os seres humanos desejariam apenas se igualar uns aos outros, no sentido de que Galileu se igualou a Aristóteles, Blake a Milton, Dalton a Lucrécio e Nietzsche a Sócrates


O ponto forte dessa linha de pensamento cientificista é que, embora a compreensão seja sempre de objetos sob uma descrição, os poderes causais que os objetos têm de nos ferir ou nos ajudar não são afetados pelo modo como são descritos. Ficamos doentes e morremos, não importa como descrevemos a doença e a morte. Os cientistas cristãos, infelizmente, estão errados. O ponto fraco do cientificismo é inferir, do fato de que um certo vocabulário descritivo nos permite predizer e utilizar os poderes causais dos objetos, a afirmação de que esse vocabulário oferece uma melhor compreensão desses objetos que qualquer outro. Esse "non sequitur" ainda hoje é explorado pelos kripkianos. Que isso seja visto ou não como um "non sequitur" depende da predisposição de a pessoa redescrever a compreensão do modo como Gadamer sugeriu.

Linguagem do presente
Para seguir a redescrição de Gadamer, teríamos de abandonar a idéia de um termo natural ao processo de compreender -seja a matéria, seja a missa, seja a "Ilíada", seja todo o resto-, um nível em que cavamos tão fundo que nossa pá entorta. Pois não há limite à imaginação humana -à nossa capacidade de redescrever um objeto e, portanto, recontextualizá-lo. Um vocabulário descritivo é um modo de relacionar um objeto a outros objetos, de pô-lo num novo contexto. Não há limite ao número de relações que a linguagem pode apreender, nem de contextos que os vocabulários descritivos podem criar. Enquanto o metafísico perguntará se as relações expressas num vocabulário realmente existem, o gadameriano perguntará apenas se elas podem ser entrelaçadas a relações apreendidas por vocabulários anteriores de forma útil. Mas, tão logo se usa um termo como "útil", aqueles que acreditam em essências reais e na verdade como correspondência perguntarão: "Útil segundo que critério?". Pensar que tal busca por critérios está sempre em jogo é imaginar que a linguagem do futuro devia ser uma ferramenta nas mãos da linguagem do presente. É tornar-se um aficionado por controle, alguém que pensa poder abreviar a história encontrando algo que se ache por trás dela. É acreditar que podemos agora, no presente, construir um sistema de arquivamento que terá um escaninho apropriado para tudo quanto possa surgir no futuro. Aqueles que ainda esperam um tal sistema de arquivamento selecionarão alguma área específica da cultura -filosofia, ciência, religião, arte- e lhe atribuirão "o primeiro posto no reino da mente pensante". Mas aqueles que seguem Gadamer -e também os que seguem Habermas- deixarão de lado esse projeto hierárquico. Eles o substituirão pela idéia de uma conversação livre de injunções ("herrschaftsfrei"), que nunca poderá chegar ao termo e na qual as barreiras entre as disciplinas acadêmicas são tão permeáveis quanto aquelas entre épocas históricas. Tais pessoas esperam uma cultura em que as lutas por poder entre bispos e biólogos -ou poetas e filósofos, ou "tecnos" e "obscuros"- sejam tratadas simplesmente como lutas pelo poder. Rivalidades como essas sem dúvida sempre existirão, simplesmente porque Hegel estava certo ao dizer que apenas um "agon" dialético produzirá a novidade. Mas, numa cultura que tome a peito o lema de Gadamer, tais rivalidades não seriam pensadas como controvérsias sobre quem está em contato com a realidade e quem ainda está atrás do véu de aparências. Elas seriam lutas para captar a imaginação, para fazer com que outras pessoas usem seu vocabulário. Uma cultura desse tipo parecerá aos metafísicos materialistas uma cultura em que os "obscuros" levaram a melhor, uma cultura em que a poesia e a imaginação por fim triunfaram sobre a filosofia e a razão. Esse pequeno sermão sobre um texto gadameriano que eu venho lhes dando provavelmente parecerá a eles outro exercício de relações públicas em prol das ciências do espírito. Concluo dizendo por que penso não ser essa a maneira correta de ver a questão. Em primeiro lugar, uma cultura gadameriana não teria uso para faculdades chamadas "razão" ou "imaginação", faculdades concebidas como tendo alguma relação especial com a realidade. Quando falo de "captar a imaginação", refiro-me a nada mais que "ser apanhado e usado". Em segundo lugar, uma cultura gadameriana reconheceria que o sistema de arquivamento de qualquer pessoa há de ter um escaninho em que enfiar o sistema de todas as outras. Toda área da cultura teria sua própria descrição das demais áreas da cultura, mas ninguém perguntará qual dessas descrições entende corretamente aquela área. O importante é que ela será "herrschaftsfrei"; não haverá um sistema de arquivamento superior, a que todos devam submeter-se. Meu sermão sobre o texto "O ser que pode ser compreendido é linguagem" obviamente não foi dado como um relato da essência real do pensamento de Gadamer. Antes, é dado como uma sugestão sobre como alguns horizontes a mais podem ser fundidos. Tentei sugerir como a própria descrição de Gadamer sobre a evolução do pensamento filosófico recente pode ser integrada com algumas descrições alternativas que agora estão em voga entre os filósofos analíticos. Eu creio e espero, porém, que uma vez terminado mais outro século, a distinção que acabei de empregar -a distinção entre filosofia analítica e não-analítica- parecerá insignificante para os historiadores da filosofia. Filósofos no ano 2100, creio eu, lerão Gadamer e Putnam, Kuhn e Heidegger, Davidson e Derrida, Habermas e Vattimo lado a lado. Se o fizerem, será porque terão enfim abandonado o modelo cientificista voltado à solução de problemas da atividade filosófica com que Kant onerou nossa disciplina. Eles o terão substituído por um modelo de conversação, um modelo em que o sucesso filosófico é medido por horizontes fundidos, e não por problemas solucionados ou mesmo problemas dissecados. Nessa utopia filosófica, o historiador da filosofia não escolherá seu vocabulário descritivo com um olho na distinção entre os problemas reais e permanentes da filosofia e os problemas aparentes e transitórios. Antes, ele escolherá um vocabulário que o capacitará a descrever o máximo possível de figuras passadas como interlocutores numa única conversação coerente.

Plenitude da conversa
Gadamer uma vez descreveu o processo de fusão de horizontes como o que acontece quando "o horizonte próprio do intérprete é determinante, mas não como um ponto de vista ao qual a pessoa se apega ou pelo qual se impõe, senão como uma opinião e uma possibilidade posta em jogo e que lhe ajuda a apropriar-se daquilo que vem dito no texto" ("Wahrheit und Methode", 4ª ed., pág. 366). Em seguida, ele descreve esse processo como "a plenitude da conversa ("Gespräch'), na qual ganha expressão uma coisa ("Sache') que não é só de interesse meu ou do meu autor, mas de interesse geral".
Substituir a distinção aparência-realidade com a distinção entre um leque limitado e outro mais extenso de descrições seria abandonar a idéia da "Sache" como algo separado de nós pelo abismo que separa a linguagem da não-linguagem. Seria substituí-la por uma concepção gadameriana da "Sache" como algo eternamente aberto à discussão, a ser eternamente reinventado e redescrito no curso da "Gespräch". Tal substituição seria o fim da busca pelo poder que Heidegger definiu como a "tradição ontoteológica".
Essa tradição foi dominada pela idéia de que existe algo não-humano a que os seres humanos devem tentar se igualar, uma idéia que hoje encontra sua expressão mais plausível na concepção cientificista da cultura. Numa cultura gadameriana do futuro, os seres humanos desejariam apenas se igualar uns aos outros, no sentido de que Galileu se igualou a Aristóteles, Blake a Milton, Dalton a Lucrécio e Nietzsche a Sócrates. A relação entre antecessor e sucessor seria concebida, como sublinhou Gianni Vattimo, não como uma relação de "Überwindung", uma superação repassada de poder, mas de "Verwindung", uma superação em termos mais brandos. Numa tal cultura, Gadamer seria visto como uma das figuras que ajudou a dar um sentido novo, mais literal, ao verso de Hölderlin: "Seit wir ein Gespräch sind..." ("Desde que somos uma conversa...").


Richard Rorty é filósofo norte-americano, autor, entre outros, de "A Filosofia e o Espelho da Natureza" e "Escritos Filosóficos 1 e 2" (Ed. Relume-Dumará).
Tradução de José Marcos Macedo.


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