São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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+ cinema
Em "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", Tim Burton apresenta o mundo como um enigma a ser decifrado em meio à luta entre aparência e verdade
Uma temporada no inferno

Inácio Araujo
Crítico de cinema

O mal dissimula-se na virtude. A idéia é repetida várias vezes por Johnny Depp em "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", e não por acaso. Primeiro porque, como veremos no final do filme, isso realmente acontece. Segundo, porque ela afirma a filiação do filme de Tim Burton ao cinema de John Ford. Ela é evidente não apenas nessa frase, como na descrição da sociedade americana e, mais ainda, na perseguição final, calcada em "No Tempo das Diligências". Não há melhor tradição no cinema americano do que a de Ford, e "No Tempo das Diligências" é exemplar a esse respeito. Ford não deposita o mal nem na prostituta, nem no pistoleiro, nem no médico bêbado, nem no homem fraco. O mal está no excesso de virtude (a idéia vem, em parte, de Griffith, o pai de todos), na hipocrisia dos puritanos.

Mundo legível
Essa filiação não significa que Burton abra mão da originalidade. "A Lenda" é um filme contemporâneo, discute as intrincadas relações entre o aparente e o verdadeiro, a imagem e o real, como a nos lembrar todo o tempo que nunca podemos nos deixar levar pela primeira impressão, pelo visível. Antes de ser visível, o mundo é legível, isto é, apresenta-se a nós como um enigma a ser decifrado (daí "A Lenda" ser mais que tudo um filme de detetive). Diante dele não podemos baixar a guarda nem por um segundo: a todo momento, uma imagem pretenderá fixar-se como real, uma aparência tentará se impor como verdade. Ninguém domina a aparência plenamente, assim como ninguém domina a verdade, a começar pelo próprio detetive Ichibold Crane (Johnny Depp), que vira o século (18 para 19) munido das certezas iluministas da ciência. Sua trajetória, porém, suporá um amargo deslocamento, começando por sua crença na impossibilidade de um cavaleiro sem cabeça, devidamente morto, se pôr a matar pessoas da cidadezinha de Sleepy Hollow. Logo veremos que o criminoso é mesmo um cavaleiro sem cabeça. O interessante, porém, é que essa concessão da razão à fé se mostra antes de tudo como um ato razoável: o aparelhamento científico e, sobretudo, o raciocínio lógico o levarão a concordar com a crença disseminada no lugarejo, embora muito diferentes sejam as conclusões a que chega e as consequências que tira de sua existência. Crane não cede ao delírio místico, pois esse delírio só pode levar -correto ou não- à perpetuação do mistério e ao encobrimento da verdade.

Sem dogmatismo
Essa atitude positiva levará o herói, a cada passo, a uma tortuosa aventura interior. Cada momento de seu passado, cada passo do presente têm de ser revistos, repensados, pois não pode conhecer o mundo quem não conhece a si mesmo. Para chegar à verdade, portanto, é preciso errar, saber mudar, estudar as aparências, as imagens, e associá-las numa série, reconstituir o encadeamento dos fatos sem abrir mão de seus princípios, mas também sem mostrar-se dogmático. Um detetive precisa ser permeável aos fatos, por mais fantásticos que sejam. Mas, ao investigar a si mesmo, Crane mergulha nas desditas da própria sexualidade. Pois a castração é o que o ameaça (a decapitação é um equivalente da castração), e por trás do perigo de castração está a mulher (um de seus problemas será deduzir quem é a mulher castradora; só resolvendo essa questão poderá aceder à sexualidade). Essa ordem de observação nos leva à segunda grande referência de Tim Burton neste filme, que é Raoul Walsh. Não por acaso, a cena de assassinato de uma família cita diretamente cena similar de "Sua Única Saída" (Pursued), o magnífico faroeste de Walsh. Walsh foi, mais do que rei do cinema de aventura, o cineasta por excelência do homem livre, entendendo-se por livre aquele que busca seu próprio destino. Não o destino como predestinação, mas aquele que se faz passo a passo. A ação é autoconhecimento, e o caminho que se apresenta à frente só se abre graças a um movimento interior. Se "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" se afirma como um grande filme do presente, não é por certo apenas pela herança que recebe e dignifica de seus antepassados cinematográficos. É, em especial, pela capacidade de surpreender-nos e de se mostrar contemporâneo. Pois o que é essa lenda, afinal, senão um produto sincrético, em que a aventura, o faroeste e o filme de detetive encontram o fantástico e, eventualmente, o terror? Junção inesperada, borgiana, em que Burton afirma o pleno direito à fabulação, ao conto, à crença de que as coisas só existem no campo da imaginação e das idéias. Portanto, se a virtude é o disfarce preferido do vício, e o real é o disfarce da aparência, resta uma variante a considerar: a verdade que se dissimula como imaginário.

Personagem desviante
Todos os filmes de Tim Burton comportam, à sua maneira, um elogio do imaginário. Mesmo quando assume sua forma negativa -em "Marte Ataca!", crítica feroz à banalização promovida pelos filmes de ficção científica-, esse é seu território. Em "A Lenda", Burton promove o encontro entre razão e imaginação com uma desenvoltura só encontrável, até hoje, nos filmes de Jean Cocteau (Burton cita os filmes de terror da Hammer como uma forte influência; embora seja verdade, no que diz respeito à ambientação, me parece uma influência menos profunda). No início, coloca seu espectador diante de um mundo dominado pela magia e, imediatamente, apresenta seu personagem desviante, na figura do detetive que sustenta só ser possível distinguir culpados e inocentes com métodos científicos de investigação e detecção da verdade. Um pouco por castigo, por professar publicamente esse tipo de idéia, ele é enviado a Sleepy Hollow para investigar a série de crimes misteriosos, em que as pessoas aparecem com a cabeça decepada. Crane imediatamente duvida da explicação mágica difundida no local: um cavaleiro cruel, que tinha tido a cabeça decepada anos atrás, voltara do reino dos mortos para se vingar. Ao mesmo tempo em que é lançada a explicação, Burton planta uma expectativa em torno da culpabilidade dos notáveis do lugar.

O jogo do criminoso
O detetive rejeita a explicação mágica. No entanto, os crimes continuam a acontecer, inexplicáveis, de tal modo que ele é forçado a ceder e aceitar a explicação, embora não inteiramente.
Aceitá-la inteiramente significaria renunciar à investigação, à possibilidade de entendimento. O detetive precisa jogar o jogo do criminoso (como em todo bom conto do gênero), aceitar a instabilidade do olhar, compreender a mente do criminoso.
No caso, Burton não trabalha com a figura clássica do detetive que tem (ou cria) um criminoso dentro de si. O que ilumina Crane (ou por vezes turva seu raciocínio) é o amor de uma mulher. Como nos filmes de Cocteau, em "A Lenda" não existe terror propriamente dito, embora a trama não seja mais do que um desvio pelo inferno, rito iniciático: aceder à vida, à sexualidade, implica essa visita ao inferno, lugar onde o falso e o verdadeiro não se distinguem.
No que é essencial, ao final da travessia, poderemos perceber que a verdade não está nas imagens, em cada imagem dada a ver ao espectador, ou nas imagens do crime que o detetive vai criando para tentar entender o caso. O real não se confunde com o visível, ele se desenha na articulação entre as imagens -na maneira como as compreendemos, em suma.


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