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Em "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", Tim Burton apresenta o mundo como um enigma a ser decifrado em meio à luta entre aparência e verdade
Uma temporada no inferno
Inácio Araujo
Crítico de cinema
O mal dissimula-se na virtude. A
idéia é repetida várias vezes por
Johnny Depp em "A Lenda do Cavaleiro
sem Cabeça", e não por acaso. Primeiro
porque, como veremos no final do filme,
isso realmente acontece.
Segundo, porque ela afirma a filiação
do filme de Tim Burton ao cinema de
John Ford. Ela é evidente não apenas
nessa frase, como na descrição da sociedade americana e, mais ainda, na perseguição final, calcada em "No Tempo das
Diligências".
Não há melhor tradição no cinema
americano do que a de Ford, e "No Tempo das Diligências" é exemplar a esse respeito. Ford não deposita o mal nem na
prostituta, nem no pistoleiro, nem no
médico bêbado, nem no homem fraco. O
mal está no excesso de virtude (a idéia
vem, em parte, de Griffith, o pai de todos), na hipocrisia dos puritanos.
Mundo legível
Essa filiação não significa que Burton abra mão da originalidade. "A Lenda" é um filme contemporâneo, discute as intrincadas relações entre o aparente e o verdadeiro, a imagem e
o real, como a nos lembrar todo o tempo
que nunca podemos nos deixar levar pela primeira impressão, pelo visível. Antes
de ser visível, o mundo é legível, isto é,
apresenta-se a nós como um enigma a
ser decifrado (daí "A Lenda" ser mais
que tudo um filme de detetive). Diante
dele não podemos baixar a guarda nem
por um segundo: a todo momento, uma
imagem pretenderá fixar-se como real,
uma aparência tentará se impor como
verdade.
Ninguém domina a aparência plenamente, assim como ninguém domina a
verdade, a começar pelo próprio detetive
Ichibold Crane (Johnny Depp), que vira
o século (18 para 19) munido das certezas
iluministas da ciência.
Sua trajetória, porém, suporá um
amargo deslocamento, começando por
sua crença na impossibilidade de um cavaleiro sem cabeça, devidamente morto,
se pôr a matar pessoas da cidadezinha de
Sleepy Hollow. Logo veremos que o criminoso é mesmo um cavaleiro sem cabeça. O interessante, porém, é que essa
concessão da razão à fé se mostra antes
de tudo como um ato razoável: o aparelhamento científico e, sobretudo, o raciocínio lógico o levarão a concordar com a
crença disseminada no lugarejo, embora
muito diferentes sejam as conclusões a
que chega e as consequências que tira de
sua existência. Crane não cede ao delírio
místico, pois esse delírio só pode levar
-correto ou não- à perpetuação do
mistério e ao encobrimento da verdade.
Sem dogmatismo
Essa atitude positiva levará o herói, a cada passo, a uma
tortuosa aventura interior. Cada momento de seu passado, cada passo do
presente têm de ser revistos, repensados,
pois não pode conhecer o mundo quem
não conhece a si mesmo. Para chegar à
verdade, portanto, é preciso errar, saber
mudar, estudar as aparências, as imagens, e associá-las numa série, reconstituir o encadeamento dos fatos sem abrir
mão de seus princípios, mas também
sem mostrar-se dogmático. Um detetive
precisa ser permeável aos fatos, por mais
fantásticos que sejam.
Mas, ao investigar a si mesmo, Crane
mergulha nas desditas da própria sexualidade. Pois a castração é o que o ameaça
(a decapitação é um equivalente da castração), e por trás do perigo de castração
está a mulher (um de seus problemas será deduzir quem é a mulher castradora;
só resolvendo essa questão poderá aceder à sexualidade).
Essa ordem de observação nos leva à
segunda grande referência de Tim Burton neste filme, que é Raoul Walsh. Não
por acaso, a cena de assassinato de uma
família cita diretamente cena similar de
"Sua Única Saída" (Pursued), o magnífico faroeste de Walsh.
Walsh foi, mais do que rei do cinema
de aventura, o cineasta por excelência do
homem livre, entendendo-se por livre
aquele que busca seu próprio destino.
Não o destino como predestinação, mas
aquele que se faz passo a passo. A ação é
autoconhecimento, e o caminho que se
apresenta à frente só se abre graças a um
movimento interior.
Se "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça"
se afirma como um grande filme do presente, não é por certo apenas pela herança que recebe e dignifica de seus antepassados cinematográficos. É, em especial,
pela capacidade de surpreender-nos e de
se mostrar contemporâneo.
Pois o que é essa lenda, afinal, senão
um produto sincrético, em que a aventura, o faroeste e o filme de detetive encontram o fantástico e, eventualmente, o terror? Junção inesperada, borgiana, em
que Burton afirma o pleno direito à fabulação, ao conto, à crença de que as coisas
só existem no campo da imaginação e
das idéias.
Portanto, se a virtude é o disfarce preferido do vício, e o real é o disfarce da
aparência, resta uma variante a considerar: a verdade que se dissimula como
imaginário.
Personagem desviante
Todos os
filmes de Tim Burton comportam, à sua
maneira, um elogio do imaginário. Mesmo quando assume sua forma negativa
-em "Marte Ataca!", crítica feroz à banalização promovida pelos filmes de ficção científica-, esse é seu território.
Em "A Lenda", Burton promove o encontro entre razão e imaginação com
uma desenvoltura só encontrável, até
hoje, nos filmes de Jean Cocteau (Burton
cita os filmes de terror da Hammer como
uma forte influência; embora seja verdade, no que diz respeito à ambientação,
me parece uma influência menos profunda). No início, coloca seu espectador
diante de um mundo dominado pela
magia e, imediatamente, apresenta seu
personagem desviante, na figura do detetive que sustenta só ser possível distinguir culpados e inocentes com métodos
científicos de investigação e detecção da
verdade.
Um pouco por castigo, por professar
publicamente esse tipo de idéia, ele é enviado a Sleepy Hollow para investigar a
série de crimes misteriosos, em que as
pessoas aparecem com a cabeça decepada. Crane imediatamente duvida da explicação mágica difundida no local: um
cavaleiro cruel, que tinha tido a cabeça
decepada anos atrás, voltara do reino dos
mortos para se vingar. Ao mesmo tempo
em que é lançada a explicação, Burton
planta uma expectativa em torno da culpabilidade dos notáveis do lugar.
O jogo do criminoso
O detetive rejeita a explicação mágica. No entanto, os
crimes continuam a acontecer, inexplicáveis, de tal modo que ele é forçado a ceder e aceitar a explicação, embora não
inteiramente.
Aceitá-la inteiramente significaria renunciar à investigação, à possibilidade
de entendimento. O detetive precisa jogar o jogo do criminoso (como em todo
bom conto do gênero), aceitar a instabilidade do olhar, compreender a mente do
criminoso.
No caso, Burton não trabalha com a figura clássica do detetive que tem (ou
cria) um criminoso dentro de si. O que
ilumina Crane (ou por vezes turva seu
raciocínio) é o amor de uma mulher. Como nos filmes de Cocteau, em "A Lenda"
não existe terror propriamente dito, embora a trama não seja mais do que um
desvio pelo inferno, rito iniciático: aceder à vida, à sexualidade, implica essa visita ao inferno, lugar onde o falso e o verdadeiro não se distinguem.
No que é essencial, ao final da travessia,
poderemos perceber que a verdade não
está nas imagens, em cada imagem dada
a ver ao espectador, ou nas imagens do
crime que o detetive vai criando para
tentar entender o caso. O real não se confunde com o visível, ele se desenha na articulação entre as imagens -na maneira
como as compreendemos, em suma.
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