São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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+livros Sociologia
Obra traz 19 textos escritos nos últimos 30 anos que buscam reavaliar as ciências sociais no país
Sociedade brasileira em revisão

Vinicius Mota
Editor de Opinião

Nos três decênios passados, promoveu-se no Brasil uma considerável revisão do cânone e dos autores relevantes para a compreensão da sociedade brasileira. Embora a mudança seja natural quando se sucedem gerações intelectuais, tomou sentido específico no caso brasileiro: o questionamento da importância de pensadores e teorias que se orientam para a construção da nação. Essa é uma leitura possível a ligar a maioria dos 19 textos distribuídos nos três livros de "O Que Ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995)", cada um dedicado a uma disciplina (antropologia, sociologia e política, pela ordem). Certamente a empresa editorial não foi concebida para que os textos fossem todos lidos. Trata-se de 16 temas, entre os quais há muita disparidade -"sociologia das profissões", "etnologia brasileira" e "partidos, eleições e Poder Legislativo", para citar alguns extremos. Para cada um deles, elegeu-se um especialista para realizar pesquisa bibliográfica e, sobre ela, compor um texto crítico. Em três casos, outro estudioso foi chamado para realizar um comentário adicional sobre o tema exposto.

Alta temperatura
A temperatura dos comentários esteve um pouco acima da -em regra- fria exposição de tendências que gravitam em torno dos temas eleitos em duas oportunidades. Trata-se da crítica de Eduardo Viveiros de Castro, no tema "etnologia brasileira", à antropologia do contato da tradição de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira, que, segundo Castro, vislumbra a cultura nativa do ponto de vista do colonizador branco. Trata-se também da disputa entre os politólogos Fernando Limongi, que faz o texto principal, e Fábio Wanderley Reis, que escreve o comentário, sobre a propriedade, o grau de aproximação com a realidade e os pressupostos dos estudos sobre institucionalização política no Brasil. Nesses textos, evidencia-se uma disputa mais geral, presente de forma diluída em outros comentários. De um lado estão os que partem do pressuposto de que a nação (ou o Estado, ou a democracia) no Brasil está em construção e de que há etapas a cumprir. Do outro, os que questionam o estudo orientado para um fim externo, ou ideológico, mostram suas idiossincrasias e as tradições intelectuais e sociais que desprezam. No esteio da segunda corrente, opera-se uma reavaliação crítica de autores esquecidos ou menosprezados, emergem temas e tradições antes consideradas subalternas, caso dos estudos de gênero; de raça; de religiões como a umbanda e o neopentecostalismo. No volume dedicado à sociologia, Sergio Miceli Pessoa de Barros, organizador da edição, escrevendo sobre "intelectuais brasileiros", também divide águas. Sua vítima principal é o livro de Daniel Pécault "Os Intelectuais e a Política no Brasil" (Ática), postura ingênua que coloca os intelectuais acima das classes, portadores de um saber neutro, e aceita como fato a visão de mundo que eles próprios produzem. É num contraponto a essa vertente que Miceli vai apontar um modo de reler a história canônica dos intelectuais brasileiros. Trata-se da avaliação dos produtores de cultura no universo microssocial a que se vinculam (condição familiar, prestígio intelectual, círculo de amizades, estigmas físicos ou psíquicos etc.). É a entrada da sociologia de Pierre Bourdieu, dos mais importantes pensadores franceses vivos, no campo de ação dos pesquisadores brasileiros. Nessa revisita ao que foi considerado fundamental na tradição intelectual brasileira, Lilia Schwarcz, que escreve sobre "questão racial e etnicidade", detecta o ressurgimento, ou a permanência latente, da idéia da "democracia racial" brasileira, tese defendida por Gilberto Freyre em "Casa Grande e Senzala" e que se pensava enterrada pela argumentação de Florestan Fernandes. Também Oliveira Vianna, notório ideólogo do autoritarismo e defensor de teses racistas na primeira metade deste século, tem sua importância revista. É preciso destacar, pela qualidade, a revisão que faz Alba Zaluar do tema "violência e crime", talvez o tema mais quente do momento, pois envolve narcotráfico, chacinas, eficiência e truculência policial, acesso à Justiça. A antropóloga domina muito bem a literatura específica e efetua uma exposição que não restringe a riqueza das diversas tendências sobre o assunto.

Balanço crítico
Há alguns problemas menores na edição. Uma mais acurada revisão evitaria alguns deslizes de linguagem, e um pouco mais de cuidado com o texto facilitaria a compreensão de alguns trechos -embora seja fato que alguns intelectuais definitivamente não consigam escrever em português.
Há também um alerta a fazer aos leitores. Este livro é resultado do trabalho de um grupo específico, reunido em torno da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais e cujos expositores militam, na maioria dos casos, no eixo Rio-São Paulo.
Mas a publicação deve ser festejada. O pensamento brasileiro em geral carece desse cuidado de sistematização e balanço crítico. As pessoas com interesse nos temas discutidos em "O Que Ler na Ciência Social Brasileira" têm à mão um excelente guia.



O Que Ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995)
3 volumes (R$ 15,00 cada) Sergio Miceli Pessoa de Barros (organização). Ed. Sumaré (r. Desembargador Guimarães, 21, CEP 05002-050, SP, tel. 0/ xx/11/263-3259).




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