São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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Suborno, corrupção e especulação fizeram da Companhia das Índias Orientais britânicas, no século 18, um protótipo do capitalismo atual

Em má companhia

NICK ROBINS

Em "The Discovery of India" [A Descoberta da Índia], terceira e talvez mais profunda parte de sua "trilogia da prisão", escrita em 1944 da fortaleza de Ahmednagar, Jawaharlal Nehru [1889-1964, líder do movimento pela independência da Índia e primeiro premiê da Índia independente (1947-1964)] descreve o efeito da Companhia das Índias Orientais sobre o país que ele em breve viria a governar. "A corrupção, venalidade, nepotismo, violência e cobiça por dinheiro dessas primeiras gerações do domínio britânico sobre a Índia", escreveu, "ultrapassam qualquer compreensão". Era importante "que uma das palavras do hindustani que foram acrescentadas ao vocabulário inglês fosse "loot" [pilhagem]".
Pela maior parte dos 60 anos que se seguiram, a Companhia das Índias Orientais desapareceu do cenário. Não há placa que marque o local que por mais de dois séculos abrigou sua sede na cidade de Londres. A companhia passou a ser encarada como algo que poderia ser varrido para os livros de história, e suas realizações e atrocidades se tornariam tema de discussão entre acadêmicos e pessoas que sentem nostalgia pela era imperial.
Mas a chegada da globalização reanimou o interesse em uma companhia que pode ser encarada como uma das forças pioneiras na criação de um comércio mundial. Exposições na British Library e no Victoria & Albert Museum [em Londres] e mais uma série de livros voltados ao público geral, narrando a história da companhia, tentaram dar novo lustro à reputação da "Honorável Companhia das Índias Orientais".
Seus fundadores são agora elogiados como destemidos aventureiros, as operações da empresa são apontadas como exemplos pioneiros para o surgimento do consumismo moderno, e seus glamourosos executivos vêm sendo retratados como "moguls brancos" multiculturais.
Mas a Companhia das Índias Orientais, por mais romântica que seja sua história, tem lições mais profundas e perturbadoras a nos ensinar. O abuso de poder de mercado, cobiça corporativa, impunidade judicial, "exuberância irracional" dos mercados financeiros e a destruição de economias tradicionais em uma região que não podia, então, ser classificada como mundo pobre ou em desenvolvimento: nada disso é novidade. As queixas mais comuns contra o capitalismo do final do século 20 e começo do 21 já tinham sido todas prenunciadas na história da Companhia das Índias Orientais, mais de dois séculos atrás.
Em "A Riqueza das Nações" (1776), Adam Smith usava a Companhia das Índias Orientais como exemplo para demonstrar de que forma o capitalismo monopolista solapa tanto a liberdade quanto a justiça e de que forma a administração de empresas controladas por acionistas termina em "negligência, malversação e desperdício". Mas nenhuma parte do ceticismo de Smith quanto a corporações, suas críticas à busca de monopólios e aos sistemas inadequados de gestão é integrada ao discurso dos defensores modernos do livre mercado.
A visão de Smith quanto ao livre-comércio envolvia firme controle sobre o poder das corporações. E, tanto na era dele quanto em muitos casos subseqüentes, a história demonstra que o pai da economia estava absolutamente certo. Se o objetivo é contribuir para o progresso econômico, o poder de mercado da corporação precisa ser restringido para permitir escolha real e para impedir que fornecedores sejam pressionados e, os consumidores, explorados.
O poder político da grande empresa também precisa ser cerceado, caso não se deseje que ela manipule as regras e regulamentos de maneira que lhe propicie proteção ou subsídio público indevido. Mecanismos de controle e de equilíbrio internos e externos precisam ser criados para limitar a tendência dos executivos a se tornarem imperadores empresariais. E sistemas judiciários claros e de aplicação prática precisam ser implementados para responsabilizar a corporação por qualquer dano que venha a causar à sociedade ou ao ambiente. São condições duras, que raramente foram impostas, quer na era da Companhia das Índias Orientais, quer na globalização atual.

"Corporação imperial"
Hoje, podemos ver a Companhia das Índias Orientais como a primeira "corporação imperial", cuja própria forma a levou a domínio de mercado, a excessos especulativos e a escapar da Justiça. Como as modernas multinacionais, a empresa estava sempre ansiosa para evitar a interação de oferta e procura. Guardava zelosamente o monopólio sobre as importações da Ásia, garantido por uma patente real. Mas também queria controlar as fontes de oferta, dissolvendo o poder dos governantes locais indianos e eliminando a concorrência, de modo que pudesse forçar uma baixa em seus preços de compra de produtos.
Ao controlar ambas as pontas da cadeia de suprimento, a empresa se tornava capaz de comprar barato e vender caro. Isso envolveu a organização de golpes contra soberanos locais e a indicação de testas-de-ferro para ocupar os tronos dos líderes depostos. Por volta da metade do século 18, a companhia estava deliberadamente violando os termos de suas concessões comerciais em Bengala [correspondente a parte dos territórios atuais de Índia e Bangladesh] ao vender passes de isenção de tarifas alfandegárias a mercadores locais.
Combinando poderio econômico, extensos subornos e uso de um exército corporativo pequeno, mas eficiente, a companhia engendrou uma série de "revoluções" que lhe deram controle territorial e econômico.


Em Londres, a adminis-tração lutava para controlar uma máquina de dinheiro


Depois da vitória de Robert Clive na batalha de Palashi (1757), a companhia literalmente saqueou o tesouro de Bengala. Carregou o ouro e a prata do país em uma frota de mais de cem embarcações e o enviou rio abaixo, para Calcutá. Clive obteve, em uma única operação, 2,5 milhões de libras (mais de 200 milhões de libras atuais [R$ 1 bilhão]) para a companhia e 234 mil libras (20 milhões de libras atuais [R$ 100 milhões]) para seus cofres pessoais.
As convenções históricas estabelecem a batalha de Palashi como primeiro passo para a criação do Império Britânico na Índia, mas talvez o melhor seja compreendê-la como a transação de negócios de maior sucesso que a empresa realizou.
Foram a qualidade e o baixo preço inigualáveis dos produtos têxteis locais que atraíram a Companhia das Índias Orientais a Bengala, e seriam os tecelões de Bengala que sentiriam da maneira mais intensa o novo poder de mercado de que a companhia passara a desfrutar. Jamais ricos, os tecelões mesmo assim desfrutavam de padrão de vida superior ao de seus colegas de ofício na Inglaterra do século 18. Em um momento em que o Estado britânico estava interferindo em favor dos empregadores -por exemplo, estabelecendo um limite máximo para os salários-, os tecelões indianos tinham a capacidade de agir coletivamente, o que reforçava sua posição para negociar preços favoráveis.
Mas a Companhia das Índias Orientais pôs fim à liberdade dos tecelões para vender seu produto a outros mercadores e, dessa forma, esmagou a limitada, mas importante, autonomia de mercado que eles vinham preservando. Impôs preços 40% mais baixos do que o valor de mercado no período e os aplicou usando a violência e sentenças de prisão. Muitos dos tecelões caíram em desespero. Um relato menciona o caso de tecelões de seda que preferiram cortar seus polegares a se verem forçados a tecer sob as condições impostas pela companhia.
À medida que a companhia se transformava de modesta empreitada comercial em poderosa máquina corporativa, os sistemas de controle e gestão desenvolvidos se provavam completamente inadequados para lidar com as novas responsabilidades que ela tinha de enfrentar. Nas palavras de Philip Francis, um de seus principais críticos, em lugar de procurar "lucros moderados, mas permanentes", a companhia irresponsavelmente decidiu obter "retornos imediatos e excessivos".
A corrupção assumiu proporções epidêmicas e a especulação com suas ações escapou ao controle, estimulada por operações promovidas a mando de Clive e outros executivos, que abusavam de seus acessos a informações privilegiadas.
Na história das crises financeiras, a bolha da Companhia dos Mares do Sul é muitas vezes mencionada como o único crash digno de nota antes da era moderna. Mas a Companhia das Índias Orientais também engendrou seu boom de ações, encerrado por uma queda na Bolsa que abalou o mundo inteiro. As ações da empresa dobraram de valor nos dez anos que se seguiram à batalha de Palashi, estimuladas por aquisições cada vez mais extraordinárias, como a tomada de controle de todo o sistema tributário de Bengala, em 1765.
Em Londres, a administração e os acionistas da empresa lutaram pelo controle de uma máquina de dinheiro que, acreditavam, poderia continuar propiciando retornos ilimitados. Multidões de especuladores apostaram na alta e na baixa das ações da companhia, e os acionistas votaram que o dividendo anual fosse duplicado de 6% para 12%, a fim de aproveitar a riqueza recentemente descoberta.
Essa espiral descontrolada de "cobiça infecciosa", para usar expressão empregada por Alan Greenspan, presidente do Banco Central dos EUA, dois séculos mais tarde, chegou ao fim em maio de 1769, quando notícias de uma retomada dos conflitos na Índia chegaram aos mercados de Londres. O preço das ações caiu 16% em apenas um mês e continuaria em baixa pelos próximos 15 anos, atingindo, em julho de 1784, seu ponto mais baixo, depois de uma queda de 55%.
Mas a tragédia humana estava apenas começando. Em Bengala, a monção anual havia começado com pesadas chuvas. Mas o que transformou o desastre natural em catástrofe foi a manipulação dos mercados locais de cereais por especuladores do leste da Índia, elevando os preços dos alimentos para além do alcance dos mais pobres. "Tão logo a temporada de seca prenunciou a escassez de arroz que se seguiria", afirma um relato de testemunha da situação, "nossos cavalheiros a serviço da Companhia começaram a comprar o máximo que podiam, o mais cedo possível"; a situação foi agravada pela decisão da companhia de elevar as alíquotas de impostos a fim de garantir que seus níveis de receita fossem mantidos.

Fome devastadora
As estimativas variam, mas até 10 milhões de pessoas podem ter morrido de fome. Quando a história real se tornou conhecida na Grã-Bretanha, surgiu um furor no país quanto à negligência da companhia. As fortunas da empresa entraram em séria decadência. Pelo final de 1772, ela estava, para todos os efeitos, falida. Uma queda final nas ações precipitou uma crise financeira que afetou toda a Europa e forçou a empresa, sempre implorando por resgate público, a se entregar ao governo.
Mas a Companhia das Índias Orientais não só foi a antepassada da corporação multinacional moderna como estimulou um dos primeiros movimentos pela reforma das grandes empresas.
Bons conhecedores da história da república romana, os membros da elite britânica temiam que, da mesma maneira que os proventos da conquista romana da Ásia (Anatólia ocidental) haviam sido usados para subverter as antigas liberdades do Estado, a tomada de Bengala pela companhia poderia resultar em despotismo no país de origem. Se nada fosse feito para controlar a companhia, argumentava um editorial, ela "repetiria as mesmas crueldades, nesta ilha, que desgraçaram a humanidade e inundaram de sangue nativo e inocente as planícies da Índia".
Antes de se tornar um pensador mais conservador por influência da revolução francesa, Edmund Burke pressionou repetidas vezes para que a companhia fosse responsabilizada diante do Parlamento por seus atos e pelo fim de seu sistema de exploração. "Cada rúpia de lucro que um inglês faz se perde permanentemente para a Índia", concluiu, opinião que provavelmente seria ecoada hoje por milhões de pessoas que trabalham na ponta errada da barganha multinacional.
Todas as ferramentas que agora nos são familiares foram empregadas para tentar domar a companhia: normas de conduta para seus executivos, regras para impedir abusos contra os acionistas, regulamentação governamental e, por fim, como no caso de tantas outras empresas fracassadas, a nacionalização.
No entanto, a despeito de todos os inquéritos parlamentares e sucessivas medidas de regulamentação, poucos dos executivos da companhia foram levados aos tribunais. Clive escapou por pouco a uma censura parlamentar, em 1773, e terminou se suicidando.
O Parlamento, a seguir, passou a investigar Warren Hastings, governador geral de Bengala, e por duas vezes votou por sua remoção do posto por imperícia administrativa.
Nas duas ocasiões, a decisão foi rejeitada pelos acionistas da companhia e, como último recurso, e por instigação de Burke, a prática medieval do impeachment foi retomada e colocada em uso contra ele. Entre as acusações estava a de que Hastings criara um monopólio da companhia sobre a produção do ópio e, em uma tentativa de contrabandear o produto para a China, havia concedido o contrato, por precinho camarada, a um filho do presidente do conselho da Companhia das Índias Orientais, que prontamente revendeu a licença com lucro substancial.

Discurso de quatro dias
Burke conquistou apoio majoritário na Câmara dos Comuns para as suas propostas, e, em fevereiro de 1788, teve início o julgamento de Hastings na Câmara dos Lordes, com Burke pronunciando um discurso de quatro dias de duração apresentando o caso contra ele.
O que torna interessante o desafio de Burke a Hastings e à Companhia das Índias Orientais são os princípios em que se baseava. "As leis da moralidade", declarou, "são as mesmas em toda parte... Não há ação que passaria por ato de extorsão, peculato, suborno ou opressão na Inglaterra e não constitua ato de extorsão, peculato, suborno e opressão na Europa, Ásia, África e em todo o mundo". Diante do relativismo que cada vez mais tomava a Índia como terra inferior, à qual padrões diferentes de justiça deveriam ser aplicados, Burke desfraldou o estandarte dos valores absolutos, protestando contra a "moralidade geográfica".
O julgamento foi suspenso, primeiramente pela loucura do rei George 3º e, a seguir, devido à Revolução Francesa. Depois de oito longos anos, Hastings foi absolvido de todas as acusações, um resultado que não causou nenhuma surpresa, dada a composição política da Câmara dos Lordes.
Mas surgiu um exemplo de exceção à impunidade da companhia. Em 1774, um grupo de mercadores armênios abriu um processo civil solicitando indenização do predecessor de Hastings, Harry Verelst. Liderados por Gregore Cojamaul e Johannes Padre Rafael, os mercadores alegavam que Verelst os havia excluído arbitrariamente do comércio com Bengala, seis anos antes, confiscando sua propriedade e restringindo sua liberdade de comerciar. É prova do valor do sistema jurídico britânico que, em dezembro de 1774, o lorde presidente do tribunal tenha decidido em favor dos armênios, estipulando que Verelst era culpado de "opressão, detenção indevida e depredação injustificada". Verelst teve de pagar 9.000 libras em indenização, bem como arcar com todas as custas do processo.

Consciência nacional
Muita gente no mundo dos negócios encara a alta no número de processos conduzidos contra empresas como a Talisman, Unocal e Shell em todo o mundo como fenômeno novo e injustificado. Mas o caso de Verelst oferece um precedente e demonstra que, mais de 200 anos atrás, um executivo sênior da primeira multinacional do mundo foi de fato julgado e considerado culpado pelo que agora consideramos como abusos contra os direitos humanos.
No entanto a estátua posicionada diante da sede do Ministério das Relações Exteriores britânico não é a de Cojamaul, mas a de Robert Clive. Que um safado como esse ainda tenha posição de destaque no coração do governo sugere que o Reino Unido ainda não confrontou a conexão entre seu passado empresarial e o império. Isso não representa apenas um esquecimento, mas uma marca de que a crença em busca irrestrita de poder de mercado e recompensas pessoais persiste e deve ser elogiada pelos mais altos escalões.
Na Índia, os erros administrativos da Companhia das Índias Orientais continuam a ser parte da consciência nacional; na Inglaterra, o conhecimento sobre os abusos e corrupção que ela praticou quase não existe. A Inglaterra continua a não reconhecer o "gene imperial" que vive no coração das modernas corporações.
Talvez Nehru possa nos ajudar. Em "A Descoberta da Índia", ele examinou as conseqüências do longo domínio britânico sobre o seu país em termos de carma e da lei espiritual de causa e efeito. "Emaranhados nessa teia", escreveu, "lutamos em vão para nos livrar dessa herança do passado e recomeçar em base diferente". A independência era um ponto de partida necessário para a Índia, escreveu Nehru, mas o Reino Unido também precisava "começar de novo".
À medida que se aproxima o 250º aniversário da batalha de Palashi, deve-se deixar de glorificar a Companhia das Índias Orientais, sua contribuição ao consumismo e a celebridade de seus executivos. O que falta é calcular honestamente os custos humanos de sua busca por domínio do mercado.
Nick Robins é diretor de pesquisa de investimento socialmente responsável da Henderson Global Investors, em Londres. O texto acima, publicado na "New Statesman", foi extraído de seu livro "Imperial Corporation -Reckoning with the East India Company" [Corporação Imperial - Acertando as Contas com a Companhia das Índias Orientais], que sai neste ano no Reino Unido.
Tradução de Paulo Migliacci.


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