São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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Reedição de "A Idéia de Matar Belina", de Luiz Lopes Coelho, precursor do gênero no Brasil, e antologia de contos de Rubem Fonseca mostram que rebuscamento e preciosismo podem abater o gênero policial

Crimes fatais de redação

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Idéia de Matar Belina" esteve fora das livrarias por mais de 30 anos, foi publicado em 1968 pelo advogado Luiz Lopes Coelho, que morreu em 1975 e era amigo de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Otto Lara Resende, entre outros. Os livros do autor compõem uma das primeiras experiências consistentes com o gênero policial no Brasil.
Em seus contos, acompanhamos as aventuras do delegado Leite. No prefácio desta nova edição, Millôr Fernandes recorda ter uma vez falado para o autor que ele era melhor de escrita, literatura, do que de entrecho (ele se referia ao primeiro volume de Coelho, de 1961, "A Morte no Envelope"). Nas narrativas agora oportunamente republicadas parece acontecer o contrário.


Fonseca se transformou na grande referência da literatura brasileira


A linguagem muitas vezes tropeça em soluções rebuscadas, os modelos ingleses ou americanos não se transfiguram de modo adequado, o ritmo dos textos nem sempre é bem resolvido. Por outro lado, Luiz Lopes Coelho utiliza com criatividade saídas elaboradas em seus enredos, experimentando com evidente gosto as diversas possibilidades abertas pela estrutura policial. Ele parte do esquema básico (crime, investigação, solução) e aí estabelece variações. Ora o detetive se recrimina por resolver o caso meio que sem querer, ora cumpre o papel clássico e desmonta com elegância e inteligência um complicado assassinato, ora percebe simplesmente que não é capaz de desvendar os acontecimentos, ora opta por arquivar um enigma que já conseguira destrinchar.

Coerência e articulação
Para tanto, o autor demonstra uma razoável imaginação para criar situações ficcionais coerentes e bem articuladas. Ao contrário do que costuma acontecer com freqüência em narrativas do gênero, o leitor não se sente enganado ou desapontado ao chegar ao término de cada conto.
Se Luiz Lopes Coelho é um precursor, outro autor vinculado ao universo do crime que tem sua obra relançada é uma influência quase avassaladora. Trata-se de Rubem Fonseca, de quem há pouco foi publicada uma antologia de 64 contos.
Com seus textos curtos e romances, o escritor foi aos poucos se transformando na grande referência da literatura brasileira, ultrapassando Guimarães Rosa e Clarice Lispector, que até meados dos anos 80 provavelmente lideravam uma inexistente (mas perceptível) lista de autores com mais "discípulos". Como escreveu em uma resenha Walnice Nogueira Galvão: "(Fonseca) devotou-se a escrever sucinto, direto, elíptico e como que impôs um modelo de literatura metropolitana aos leitores (...) e a seus inúmeros seguidores. Essas opções passaram a ser a tônica no panorama literário".
Por sua evidente influência, aliás, é natural que seus livros tenham sido discutidos por importantes nomes da crítica brasileira nos últimos anos. O saldo não é muito favorável para ele. Em "Dispersa Demanda", de 1981, Luiz Costa Lima já captava algo problemático na produção do escritor, constatando que em "O Cobrador" (1979) surgia na ficção de Fonseca um viés alegórico pouco convincente.
Em um ensaio de 1993 reproduzido em "A Dimensão da Noite" (ed. 34/ Duas Cidades), João Luiz Lafetá ainda mantinha um tratamento elevado para o autor, optando por se concentrar em suas primeiras coletâneas de contos e mencionando apenas de passagem textos mais atuais. Em sua análise, destaca a transição de um lirismo inicial para uma representação multifacetada da violência que só se acentuaria com o passar dos anos.
Duas resenhas sobre "E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto" (1997), escritas por Abel Barros Baptista e João Adolfo Hansen, já não trazem meias palavras. Seja por se prestar à crítica fácil que se repete (Baptista), seja por repetir o "acontecimento da falta de acontecimentos" (Hansen), a literatura recente de Fonseca é, para dizer de forma delicada, bastante bombardeada.
Esse crescente repúdio (que, apesar de possuir exceções, é aqui só mencionado de modo resumido) não deve ser compreendido a partir de qualquer questão extraliterária, como fica razoavelmente claro pela leitura da antologia que acaba de ser lançada.
A edição da Companhia das Letras não indica de que livros vieram os contos dela, mas é fácil constatar que eles estão dispostos em ordem cronológica de publicação. Assim, o leitor se depara nas primeiras 200 ou 300 páginas com algumas obras-primas do texto curto, como "O Inimigo", "A Força Humana", "Relato de Ocorrência", "Passeio Noturno (Parte 1)", "Feliz Ano Novo". Em seguida, tudo se complica.
O livro "Feliz Ano Novo", por sinal, no qual aparecem os dois últimos contos, parece indicar o ponto de inflexão na trajetória do escritor.
Lançado em 1975 e pouco depois censurado pelo governo militar, nele estão alguns dos melhores textos do autor e, paradoxalmente, os indícios mais claros de muito do que viria então: cansativas mostras de erudição, um certo desleixo com a condução da narrativa, um calculadíssimo tom blasé. Marcas que antes assinalavam a força expressiva do autor se transformam em fórmula, em um objetivo em si mesmo. O estilo devora o criador.

Ironia premonitória
É assim que no engraçadíssimo "Corações Solitários" (também de "Feliz Ano Novo"), a ironia apenas parece, em retrospecto, premonitória ("Cito os clássicos apenas para mostrar o meu conhecimento. Como fui repórter de polícia, se não fizer isso os cretinos não me respeitam. Li milhares de livros") para em "Shakespeare" (extraído de "Pequenas Criaturas", 2002) se tornar somente vazia ("Haviam dito que você era um pernóstico que gostava de exibir erudição. Um homem pedante é pior do que um bêbado impaciente"). Não deixa de ser irônico, também, que esse mesmo conto, "Shakespeare", o derradeiro da antologia, tenha como linha final, na pág. 798, a seguinte constatação: "Que frase cretina".
Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).


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