São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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Novos processadores de texto permitem ao computador fazer conexões quase líricas entre idéias, unindo dois tipos muito diferentes de inteligência e modificando a própria forma de pensar do ser humano

Cabeças de silício

STEVEN JOHNSON

Às vezes ouvimos de escritores mais jovens que eles não conseguem imaginar de que maneira alguém era capaz de produzir um artigo, quanto mais um livro inteiro, em uma máquina de escrever. Kerouac datilografando em sua Underwood portátil? Hemingway curvado sobre sua Remington?
É como se fossem escribas monásticos ou pintores rupestres. Mas, se o processador de texto moderno se tornou uma ferramenta quase universal para os escritores atuais, seu impacto foi menos revolucionário do que se poderia imaginar.
Os processadores de texto permitem que criemos sentenças sem os rabiscos e os esforços para apagar trechos que eram necessários na era do papel, e, a despeito de ocasionais falhas catastróficas, os discos rígidos que usamos hoje são muito mais eficientes para armazenar e propiciar acesso a documentos do que os arquivos do passado. Mas os escritores normalmente não usam o computador para as artes mais sutis da inspiração e da associação.

Objetivo primeiro
Usamos o computador para processar palavras, mas as idéias que animam essas palavras se originam em outra parte, distante da tela. O processador de texto mudou a maneira pela qual escrevemos, mas ainda não mudou nossa maneira de pensar. Mudar nossa maneira de pensar, evidentemente, era o objetivo essencial de muitos dos primeiros visionários da computação.


Se adotad as, essas ferram entas afetarão o tipo de livro e de ensaio que as pessoas escrevem


O título do seminal ensaio em que [o engenheiro elétrico] Vannevar Bush [1890-1974], em 1945, antecipava a concepção da máquina de informação moderna, acionada por hipertexto, era "Como Poderíamos Pensar". O maravilhoso relato de Howard Rheingold [fundador do site Electric Minds e autor de "Smart Mobs" (Multidões Inteligentes)] sobre as experiências dos pioneiros da computação era intitulado "Ferramentas para Pensar".
A maior parte desses gurus se decepcionaria ao descobrir que, décadas mais tarde, a forma mais sofisticada de inteligência artificial que empregamos em nossas ferramentas de escrita é o verificador ortográfico e gramatical.
Mas 2005 talvez venha a ser o ano em que ferramentas para o pensamento se tornem uma realidade para as pessoas que ganham a vida manipulando palavras, graças ao lançamento de cerca de uma dúzia de novos programas com o objetivo de realizar, para as informações pessoais, aquilo que o Google realizou na internet. Os programas trabalham cada qual de maneira ligeiramente diferente, mas compartilham de duas propriedades notáveis: a capacidade de interpretar o significado de documentos em formato texto e a capacidade de filtrar milhares de documentos no tempo que levamos para beber um gole de café.
Unir esses dois elementos possibilita uma ferramenta que terá impacto tão significativo sobre a forma pela qual os escritores trabalham quanto os processadores de texto originais tiveram ao surgir.
Nos últimos três anos, venho usando ferramentas comparáveis aos novos programas que chegarão ao mercado, de modo que tenho extensa experiência pessoal com a forma pela qual o software altera o processo de criação (usava um aplicativo criado sob encomenda pelo programador Maciej Ceglowski, no Instituto Nacional de Tecnologia e Educação Liberal, e agora emprego um programa disponível comercialmente chamado Devonthink).
A matéria-prima que o software emprega para funcionar é meu arquivo de escritos e notas e mais alguns milhares de citações escolhidas de livros que li nas décadas passadas: um arquivo, em outras palavras, de todas as minhas velhas idéias e das idéias que me influenciaram.
Ter toda essa informação disponível sem dificuldade faz mais do que permitir que eu localize mais rápido as minhas anotações. Sim, quando estou tentando localizar um artigo que escrevi muitos anos atrás, o processo é muito mais fácil. Mas a mudança qualitativa é de outra ordem: a localização de documentos que eu havia esquecido completamente, documentos que eu não sabia que estava procurando.

Idéia mais ampla
O que isso significa na prática? Considere-se como usei a ferramenta ao redigir meu mais recente livro, cujo tema são desenvolvimentos recentes na ciência do cérebro. Eu escrevia um parágrafo que tratava da notável capacidade do cérebro humano para interpretar expressões faciais. Depois, copiava o parágrafo para a ferramenta do software e solicitava que encontrasse passagens semelhantes nos meus arquivos. Instantaneamente, uma lista de citações era gerada: algumas sobre a arquitetura neural que deflagra as expressões faciais, outras sobre a história evolutiva do sorriso, ainda outras sobre a expressividade dos nossos parentes próximos, os chimpanzés.
Invariavelmente, uma ou duas delas deflagravam novas associações em meu cérebro -eu tinha esquecido a conexão com os chimpanzés. Assim, bastava selecionar aquela citação e solicitar que o software encontrasse novos documentos semelhantes a ela. Não demorava muito para que uma idéia mais ampla se formasse em minha cabeça, construída com base na trilha de associação que a máquina criara para mim.
Compare-se o método à forma tradicional de explorar arquivos, na qual o computador funciona como um mordomo esforçado, mas burro. "Encontre aquele documento sobre chimpanzés!". Estamos falando de uma busca. O outro método propicia uma sensação diferente, diferente a ponto de não termos ainda um verbo que o descreva bem: estamos dedilhando, explorando, conduzindo um "brainstorm".
Claro que idéias falsas e becos sem saída também resultam do uso das novas ferramentas, mas o número de acidentes afortunados e de descobertas inesperadas é igual ou superior. De fato, a maneira difusa pela qual os resultados são encontrados é parte essencial do motivo para que essa nova forma de software seja tão poderosa.
Trata-se de ferramentas inteligentes a ponto de contornar a principal falha dos serviços de busca na internet, a especificidade excessiva: buscar a palavra "cachorro" não inclui nos retornos todos os artigos contendo a palavra "canino", por exemplo. O software moderno de indexação é capaz de aprender associações entre palavras individuais, ao analisar a freqüência com que elas aparecem em posições vizinhas. Isso pode criar conexões quase líricas entre idéias.

Jornada lateral
Estou trabalhando em um projeto que envolve a história dos esgotos de Londres. Noutro dia, realizei uma busca que incluía a palavra "esgotos" diversas vezes. Porque o software sabe que a palavra "resíduo" é muitas vezes empregada ao lado da palavra "esgoto", me conduziu a uma citação que explicava a maneira pela qual os ossos evoluíram nos corpos dos vertebrados: reaproveitando os resíduos de cálcio criados pelo metabolismo das células.
Esse resultado pode parecer incongruente, mas me conduziu a uma longa e frutífera jornada lateral sobre a maneira pela qual sistemas complexos -quer se trate de cidades, quer se trate de corpos- encontram maneiras produtivas de empregar o resíduo que geram. Ainda é cedo, mas é bem possível que eu obtenha todo um capítulo do livro dessa centelha de idéia.
Agora, falando de maneira estrita, quem é responsável por aquela idéia inicial? Eu ou o software? A pergunta pode parecer jocosa, mas eu estou falando seriamente. Obviamente, o computador não tinha consciência da idéia que estava tomando forma, e fui eu que forneci a cola conceitual que uniu os esgotos de Londres ao metabolismo.
Mas não estou tão confiante quanto ao fato de que a conexão inicial poderia ter sido realizada por mim sem ajuda do software. A idéia foi uma verdadeira colaboração: dois tipos muito diferentes de inteligência se estimulando mutuamente, um deles à base de carbono, o outro à base de silício.
Se essas ferramentas forem adotadas, será que afetarão o tipo de livro e de ensaio que as pessoas escrevem? Suspeito que sim, porque não são tão úteis para narrativas ou argumentos lineares: em última análise, trata-se de ferramentas de associação. Não funcionam tão bem com causa e efeito quanto funcionam com "x me lembra y".
Por isso, se adaptam idealmente a livros organizados em torno de idéias em lugar de fluxos narrativos únicos: mais "Lives of a Cell" [Vidas de uma Célula] e "The Tipping Point", menos "Seabiscuit".
Sem dúvida haverá quem diga que essas ferramentas lembram a maneira pela qual já se emprega o Google, e a comparação é válida (um dos novos aplicativos lançados no ano passado era o Google Desktop, que usa as ferramentas do serviço de busca para indexar arquivos pessoais).
Mas existe uma diferença fundamental entre pesquisar um universo de documentos criados por desconhecidos e pesquisar sua biblioteca pessoal. Quando se está vasculhando idéias que você mesmo coligiu -especialmente se as esqueceu há muito tempo-, a experiência tem uma semelhança sobrenatural com um passeio sem rumo pelos corredores da memória. É como pensar.
Steven Johnson é autor de "Mind Wide Open" [Mente Bem Aberta, ed. Scribner], recentemente publicado nos EUA. Seu novo título, "Everything Bad Is Good for You" [Tudo de Mau é Bom para Você] sai em maio nos EUA. Este texto foi publicado originalmente no "New York Times Book Review".
Tradução de Paulo Migliacci.


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