São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Filosofia da ciência

JESUS DE PAULA ASSIS
especial para a Folha

Incomensurabilidade
O termo é usado para designar o estado de não, ou quase não, comunicação entre diferentes posições teóricas. Seu emprego no discurso sobre ciência deriva da idéia de paradigma e de relativismo. Quando uma teoria científica entra em crise, abre-se um período de especulação que culmina com a adoção de uma nova teoria. Um ponto de vista conservador tenderia a ver o novo estado como uma evolução do anterior, pela adição de mais informação e de novos conceitos. Uma posição relativista diria que as teorias são incomensuráveis e, assim, tem pouco sentido procurar por continuidades.
ħUma consequência disso é o irracionalismo. Ou seja, se teorias científicas sucessivas são incomensuráveis, não existe motivo racional demonstrável para que uma tenha sido descartada e a nova, adotada. A transição, então, ocorreria por intermédio de mecanismos que têm muito mais a ver com "conversão" do que com lógica.

Paradigma
O termo começou a ser mais fortemente empregado em estudos sobre ciência a partir de 1962, com a publicação de "A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas Kuhn. Este o usou para descrever estruturas conceituais que englobavam o que se chamaria de teoria científica, mais exemplos de aplicação bem-sucedida dessa teoria (que permitiriam a seus usuários empregá-la por analogia), mais conjuntos de valores para julgamento de resultados obtidos (simplicidade, precisão etc.). Embora o livro se refira tão somente à física, o termo começou a ser usado na descrição de outras ciências, como biologia, sociologia etc.

Crise de (ou dos) paradigmas
Uma vez que se empregue o termo paradigma para a descrição de atividades como sociologia ou antropologia, chega-se à inevitável conclusão de que elas são poliparadigmáticas, ou seja, existem grupos de praticantes que se reconhecem mutuamente como sociólogos, antropólogos, psicólogos etc., mas que não compartilham das mesmas teorias, nem têm valores comuns de julgamento de resultados (na verdade, o termo "paradigma", quando aplicado a atividades diferentes da física, tem pouco a ver com as definições que Thomas Kuhn lhe deu; para ele, "ciência poliparadigmática" é uma expressão sem sentido). Como esses diversos "paradigmas" (com aspas, para deixar claro que o termo, aqui, é usado sem muito rigor) apresentam dificuldades ao tentar explicar as rápidas mudanças por que passam as sociedades modernas (globalização, tecnologia crescente ao lado de anticientificismo crescente), fala-se em crise de paradigmas e na necessidade de encontrar algum modelo que dê conta do mundo neste fim de século.
Autores como Clifford Geertz sugerem que tal crise não existe, pois campos de estudo como a antropologia sempre estiveram no mesmo estado de caos metodológico em que se encontram hoje. Ou seja, ou a crise não existe ou ela é parte integrante da atividade e, portanto, não se pode definir a situação atual como "de crise". Mas essa posição é minoritária na comunidade acadêmica de ciências humanas, que permanece preenchendo milhares de páginas, lamentando ou propondo soluções para o suposto problema.

Relativismo metodológico
Até o início dos anos 60, a posição majoritária entre estudiosos da atividade científica era que as teorias científicas se sucedem, mas todas estão baseadas em um mesmo método. A partir dos trabalhos de Kuhn, Hanson, Feyerabend foi-se disseminando a idéia (hoje posição, senão majoritária, muito fortemente representada no meio acadêmico) de que não apenas teorias científicas se sucedem (como a teoria da relatividade sucedeu a mecânica newtoniana), mas que existem sucessões de método e de valores, o que faz com que teorias sucessivas sejam incomensuráveis
ħIsso abre as portas para se falar em relativismo: cada época ou modo de pensar ou de agir só pode ser julgada segundo seus próprios valores, não sendo possíveis julgamentos externos. A mecânica relativística é ou não superior à newtoniana? A pergunta, antes com resposta afirmativa, deixa de ter sentido dentro do relativismo metodológico mais estrito, pois ambas diferem não apenas em termos de conteúdo, mas de método e de valores de julgamento de resultados. O máximo que se pode dizer, um tanto trivialmente, é que elas são diferentes. A posição vem sendo atenuada e, hoje, um relativismo estrito está fora de cogitação.

Science studies
Expressão que começou a ser empregada na década de 60 para designar estudos multidisciplinares sobre a atividade científica.
ħDepois de quase meio século de acumulação de resultados com estudos sobre a filosofia, a antropologia, a história e a sociologia da ciência, tornou-se evidente para os pesquisadores que uma compreensão abrangente das atividades abrigadas sob o nome de "ciência" só poderia derivar de estudos que levassem em consideração os aspectos listados acima. A articulação entre as diversas áreas de ``science studies'' ainda é objeto de muito debate, que gera mais calor que luz. A expressão não tem ainda equivalente consagrado em português.

Tradução de interesses
Expressão ligada mais fortemente a Bruno Latour, um autor em ``science studies'', cujo livro "Science in Action" (1987) foi extremamente influente. Em toda atividade científica, projetos de pesquisa devem, mais que estar baseados em metodologias sólidas, apontar para possibilidades de "joint ventures" entre grupos de cientistas. Um bom projeto científico deve, assim, ser suficientemente aberto para permitir a inclusão de outros interesses.
Por exemplo, um projeto de pesquisa sobre Aids deve, para sobreviver no meio científico, apontar para outras possibilidades de pesquisa (não necessariamente em virologia), de inclusão de especialidades, de investimentos. Um exame da história da ciência mostra que as teorias científicas que prosperaram o fizeram não porque (ou não apenas porque) eram metodologicamente sólidas, mas porque permitiram a inclusão de grande número de grupos de pesquisadores, cada um com interesses particulares. Para o autor e outros ligados a ele, teorias ou propostas de trabalho que não apresentam a possibilidade de tradução de interesses desaparecem da história da ciência.


Jesus de Paula Assis é pesquisador do Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (Nupes) da USP.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã