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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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PARA O ESCRITOR BRITÂNICO, TENTATIVA DE COMPATIBILIZAR PULSÕES E SOBREVIVÊNCIA PSÍQUICA PODE LEVAR O HOMEM MODERNO A ULTRAPASSAR O FRÁGIL LIMITE ENTRE SANIDADE E LOUCURA

VIVENDO PERIGoSAMENTE

POR ADAM PHILLIPS


"A Criança Flô", foto atribuída a Charles Hugo e Auguste Vacquerie, de meados do séc. 19; na outra pág., "As Mãos de Rebecca" (1923), de Paul Strand


Há um momento desagradável, freudiano talvez, no romance "Some Do Not" [Alguns Não", de Ford Madox Ford, quando algo ocorre ao herói Tietjens, no meio de uma conversa: "Subitamente, lhe ocorreu não estar certo de ser pai de seu filho, e ele gemeu". "Tietjens", continua Madox Ford, "reafirmou a sua reputação de mentalmente sadio" ao dar continuidade à conversa que estava aparentemente tendo, sem fazer referência ao seu pensamento assustador. Para esse inglês, sanidade mental significa parecer não estar perturbado por seus pensamentos mais perturbadores: trata-se, exata e rigorosamente, daquilo que ele é capaz de não dizer. Ater-se ao assunto, dar continuidade a conversa, é o tipo de equilíbrio mental pelo qual se pode adquirir uma reputação. "Mas lhe provocou uma surpresa desagradável", escreve Madox Ford [1873-1939". "Ele não foi capaz de engavetar e trancar a chave as suas desagradáveis ponderações. Tudo o que pôde fazer foi conversar consigo mesmo." Esse talvez seja um momento freudiano, não porque Madox Ford fosse, em qualquer sentido, um freudiano, mas porque Freud nos ofereceu uma linguagem para redescrever esses momentos em que os pensamentos estão desgarrados, esses momentos de um tempo atormentado, nos quais somos incapazes de engavetar e trancar a chave nossas ponderações mais desagradáveis: nos quais, na expressão extraordinária de Madox Ford, tudo o que é possível fazer é conversar consigo mesmo, já que, por alguma razão, não podemos dizer esses pensamentos para outros.

Formas de confinamento
E também porque, como Madox Ford sugere, esse "nós" é ambíguo: nesses momentos, um discurso está sendo dirigido a mim, mas quem se dirige a mim? Eu estou conversando comigo mesmo, mas quem exatamente conversa comigo, essa estranha e silenciosa conversa que denominamos pensamento? E, talvez de maneira ainda mais desconcertante, quem é o ouvinte quando estamos conversando com nós mesmos? Mais uma vez, é a paternidade que está em questão. Tietjens pode não ser o pai de seu filho, mas será ele o pai de seus próprios pensamentos? Algo que lhe pertence, algo tão íntimo quanto o seu próprio pensamento, pode ser ilegítimo: poderia vir de outra pessoa ou de outro lugar. Há sempre uma reviravolta nas voltas que o pensamento dá. Freud, entretanto, não chamou nossa atenção para tais momentos ou redescreveu a proveniência de nossos pensamentos mais nômades, simplesmente. Ele criou um método terapêutico que permutava surpresas desagradáveis. E o objetivo desse método é possibilitar às pessoas terem os seus pensamentos desagradáveis sem sentir a necessidade de engavetá-los e trancá-los a chave. De acordo com Freud, as pessoas que ele atendeu estavam sofrendo não só das insistentes e herdadas formas de angústia a que todos estamos sujeitos, mas também de suas formas de classificação e do confinamento de suas estreitas mentalidades.

Perdendo-se nos desvios
Como imaginamos que sejam esses pensamentos desagradáveis, esses reflexos em nada lisonjeiros que nossos pensamentos nos provêm? O que é que está sendo fichado e colocado atrás das grades (engavetado e trancado a chave)? E por que fazemos o que fazemos com os pensamentos que temos -ou tendemos a fazer-, mas com os quais não podemos concordar? Tietjens não estava certo de ser o pai de seu filho, e ele não estava certo sobre o que fazer com esse pensamento terrível. Então, ele continuou a conversar a respeito do que deveria estar conversando. Freud diz que esses momentos de não-saber são similares a epifanias seculares. É quando somos derrubados por nossos pensamentos, é quando, por mais transitoriamente que seja, perdemos o pé -quando, resumidamente, toleramos perder nossa reputação de mentalmente sadios- que começamos a ter novidades. Mas, para ficar a par das novidades, nós precisamos fazer o que Tietjens jamais faria: nós temos que contar nossos pensamentos desagradáveis para um outro. Nós temos que nos perder nos desvios que os caminhos nos oferecem. Na conversa terapêutica que Freud criou e denominou psicanálise, tudo o que o suposto paciente tem a fazer é conversar consigo próprio, mas em voz alta, na presença de um outro. Ele é persuadido a tornar conhecidas as interrupções e as rupturas das quais é herdeiro. O que costumava ser chamado de exame de consciência, autocrítica, incerteza acerca de si mesmo, poderia, agora, ser denominado hesitação -ou cometer um lapso freudiano (nós não "temos" lapsos freudianos, nós "cometemos" lapsos freudianos). Se, anteriormente, as perguntas acerca do eu eram feitas a serviço do autoconhecimento, da educação religiosa ou anamnese médica, agora, em psicanálise, tudo o que era pedido ao paciente era que ele deveria, na medida do possível, falar tudo o que lhe viesse à mente. Ele era convidado a falar tão livremente quanto possível, como se estivesse fazendo um relato a partir de algum lugar que ele normalmente denominava "si mesmo".

Abolir o convencional
"O tratamento tem seu início", escreve Freud, quando é pedido ao paciente que se coloque numa posição de auto-observação atenta e imparcial -para simplesmente decifrar a superfície de sua consciência continuamente- e, por um lado, que faça da mais completa honestidade um dever, de modo que, por outro lado, que não retenha nenhum pensamento, mesmo que o ache (1) muito desagradável ou (2) que o julgue sem sentido ou (3) desimportante demais ou (4) irrelevante para o que está sendo pesquisado.
É de conhecimento geral que precisamente esses pensamentos, que provocam as reações mencionadas acima, são os que têm um valor especial no desvelamento do material recalcado. As perguntas são sempre uma espécie peculiar de prognóstico. E, é digno de nota, na referência que Freud faz no mesmo contexto da "psicanálise como uma arte interpretativa" que -e isso por si só é inovador- perguntas não são feitas. É uma questão, como diz Freud, de ler nas entrelinhas, de abolir os nossos critérios convencionais. O desagradável (outra palavra de Madox Ford), o absurdo, o insignificante e o irrelevante devem ser todos incluídos.


Que uma vida sexual normal fosse uma vida sexual perturbadora foi a conclusão paradoxal de Freud


De fato, os pensamentos que evocam esses epítetos são, Freud insiste, "de valor especial no desvelamento do material recalcado". Todos os critérios morais e estéticos de que lançamos mão têm de ser postos de lado, como se aquilo de que nos orgulhamos -nosso juízo acerca do que é adequado e pertinente, nossos padrões estéticos, nossa escolha pelo bem- fossem simples matérias de capa. Freud está interessado no que excluímos por meio de nossas inclusões. Ele e seus pacientes são fascinados pela estética da memória e, consequentemente, pelas escolhas feitas a cada momento do discurso. Tudo o que temos a fazer, propõe Freud, é sugerir ao paciente que fale de forma mais livre possível e, depois, atenda às dificuldades que, como todos nós, ele terá ao falar de si mesmo. Não necessitamos de perguntas (ou informações peremptórias) para nos interromper, diz Freud, já que o faremos sempre que tivermos uma chance, uma vez que há algo acerca do que temos a dizer que nos é insuportável. E isso, como todos sabemos, ou como todos agora sabemos que Freud sabe, é denominado sexualidade: sexualidade, ou aquilo a que Freud se refere de forma ainda mais interessante como o material recalcado. A memória, afirma Freud, é memória de desejo. Aquilo de que necessitamos esquecer permanentemente é a sexualidade, o que Lacan denomina o "conhecimento impossível da sexualidade". Sexo, diz Freud, é infinitamente olvidável. De fato, falamos tanto sobre isso precisamente porque já esquecemos disso. O proibido não é algo a respeito do qual se pode papear. Se, em sua origem, a nossa sexualidade é incestuosa -se o objeto de desejo é por definição interditado-, estaremos todos angustiados o tempo todo. Se o que buscamos é o que não devemos encontrar, nosso propósito está deturpado: sinceridade, paixão, autenticidade, integridade, não os reconheceremos caso sejamos radicalmente contrários ao que tão radicalmente desejamos. A ironia é a religião dos que têm a noção do incesto.

Bênção ambígua
Freud -e ele não estava sozinho nisso- pensava que a sexualidade havia se tornado especialmente traumática para os sujeitos modernos: não só porque algumas pessoas haviam sido traumatizadas sexualmente quando crianças -o que muitas das suas pacientes haviam sido-, mas porque havia algo intrinsecamente traumático acerca da sexualidade. Quando o proibido se torna o impossível, os sujeitos são, por vezes, considerados decadentes, e era acerca da impossibilidade de uma vida erótica satisfatória que Freud escutava na forma de sintomas (os sintomas do paciente são a sua vida sexual, diz Freud). Que uma vida sexual normal fosse uma vida sexual perturbadora foi a conclusão paradoxal de Freud. Não é fácil, na linguagem de Madox Ford, engavetar e trancar a chave o que consideramos ser nossas inclinações sexuais. Há sempre surpresas desagradáveis a cada esquina de nossa vida erótica. Uma reputação de mentalmente sadio será sempre uma bênção ambígua. A morte, a refutação e a fraudulência da psicanálise incessantemente anunciadas não são uma prática de intolerantes, simplesmente. Quando é endossada de forma irrestrita, a psicanálise não está sendo levada a sério, uma vez que o conhecimento da psicanálise encerra uma resistência contínua a ela. Aceitar a psicanálise, acreditar na psicanálise, é o mesmo que "não ter entendido nada". Um psicanalista francês uma vez me disse que o judaísmo é a única religião na qual você não está autorizado a acreditar em Deus.

Avessos a nós mesmos
Na mesma medida, você não pode acreditar no inconsciente, você não pode acreditar na sexualidade, como Freud os descreve. Acreditar no incesto não é como acreditar em Deus. A sua resistência é a única forma por meio da qual o seu conhecimento poderia se dar (não existe uma coisa como o amor livre). E mesmo essa formulação não é necessária, uma vez que a noção de resistência implica a possibilidade de aceitação. A psicanálise, dentre outras coisas, é uma redescrição da questão: "Como seria aceitar a nós mesmos e aos outros?". De acordo com Freud, nós somos inelutavelmente avessos a nós mesmos (e aos outros) porque nosso desejo é fundamentalmente transgressivo. Se o que desejamos é o que não devemos ter, nós estaremos, no mínimo, divididos em relação a nós mesmos. Se o que desejamos, um dia, foi ter uma vida boa ou ser redimidos pela graça divina, o que desejamos agora, da perspectiva de Freud, é um objeto que é, por definição, proibido. E isso tornará a nossa relação com o nosso assim chamado "eu", no melhor dos casos, irônica e, no pior deles, aterrorizante. As pessoas são sempre irônicas quando se trata de algo que não é irônico para elas. O que seria, então, uma vida boa para animais incestuosos como nós? Quais seriam os valores, as aspirações morais de uma criatura cujo desejo, cuja força vital, é absolutamente transgressivo, para quem os tabus existem como um lembrete permanente de suas necessidades mais intratáveis? Freud descreveu a impossibilidade de nossas vidas de forma genial. O que ele compreendeu foi a história de como e por que não somos os mestres daquilo que nos foi ensinado denominar nossas mentes. De fato, ao privilegiar o obstáculo em detrimento do caminho a seguir, o que não pode ser realizado em detrimento do que é para ser realizado, ao testemunhar o drama da interrupção, a atenção despendida no lapso da atenção, Freud estava nos encorajando a apreciar a nossa incompetência, a nos surpreendermos, e não simplesmente a nos consternarmos, com os desvios persistentes de nossos caminhos. Ele quer nos contar a história de sucesso do fracasso. A genialidade de Freud foi, justamente, descrever para nós como e por que viver em conflito com nós mesmos e com os outros e, caso concordemos, com Freud é uma coisa boa e necessária -boa porque necessária. Se a psicanálise é o tipo de senso comum a respeito do qual o senso comum não quer saber, se ela trata do que está envolvido na negativa, Freud é alguém com quem nos sentiremos constrangidos. O entusiasmo é uma coisa maravilhosa, mas devemos estar precavidos em relação aos entusiastas da psicanálise. Admirar Freud pode ser parte do problema que ele coloca, ao invés de parte da solução. E o problema é: como é que chegamos a acreditar que engrandecer os outros é uma forma de cura?

Verdade nos exageros
Adorno observou, certa vez, que em psicanálise somente os exageros são verdadeiros. Freud se interessou pelo uso dos exageros, pelos meios com os quais uma cultura que força os sujeitos a menosprezarem certos sentimentos os faz exagerá-los. Um lapso freudiano amplifica a diferença entre uma intenção e o seu resultado. Na vida normal, escreveu Freud na "Psicopatologia da Vida Cotidiana", sentimentos e impulsos egoístas, invejosos e hostis, sobre os quais a pressão dos ensinamentos morais é grande, frequentemente lançam mão de lapsos a fim de encontrar um meio de expressar a sua intensidade, intensidade indiscutivelmente presente, mas cuja presença não é admitida pelas altas autoridades em nossas mentes. Permitir que esses lapsos e ações fortuitas ocorram reflete... uma tolerância proveitosa da amoralidade. Tendências sexuais de diversos tipos figuram proeminentemente entre essas emoções reprimidas.
De acordo com Freud, nós somos, não importa quão involuntariamente, os autores de nossos lapsos. Nesse sentido, um lapso é uma oportunidade ou um estilo ou um meio linguístico. Em outras palavras, temos que ser os atores de nossa amoralidade, mas também os pragmatistas. Nós lançamos mão de lapsos como se fossem instrumentos para nos transportar de A a B, para realizar um projeto, para conseguir algo que desejamos. Freud sugere que também o mundo interno tem as suas altas e ameaçadoras autoridades -também a mente é uma sociedade-, as quais, diz ele, não irão admitir certos sentimentos.
Mas, se pudermos lançar mão desses lapsos, dessas mensagens secretas, talvez poderá haver o que Freud denomina uma "tolerância proveitosa da amoralidade". E esses momentos de extravagância linguística levam a cabo essa amoralidade, eles não a toleram, simplesmente. O que pode ter sido, certa vez, descrito como falta de educação, falta de autodisciplina ou mesmo um erro é atualmente referido por Freud como um instrumento útil, e também como um momento de criatividade, uma forma de "expressar" um sentimento intenso. Como é que o sujeito moderno lida com seus desejos sexuais inaceitáveis, seus sentimentos egoístas, de inveja e hostilidade? Ele comete o que precisa chamar de erros, diz Freud, para que o amoral encontre a expressão que está buscando.


Se sexo é mesmo aquele projeto darwiniano, por que nos dá tanto trabalho? Freud nos mostra como, caso não tenhamos problemas, não estamos fazendo sexo


Para responder, então, à minha questão anterior -o que seria uma vida boa para animais incestuosos como nós?-, uma vida boa seria aquela na qual os erros seriam perseguidos continuamente por alguém instrumentalizado para desacreditar seu significado. Nós somos o tipo de animal que pode dizer: "Eu só estava brincando"; "não foi de propósito".

Estética da duplicidade
Freud não está exatamente satirizando a nossa hipocrisia: ele está nos encorajando a ser "connoisseurs" da matéria de capa. Para ele, nossas vidas dependem literalmente da estética da duplicidade. Se não formos os atores de nosso próprio prazer, não haverá prazer (nem arte). Onde anteriormente havia a autoridade moral da sátira, o desprezo do escárnio, pode haver agora uma narrativa mais honesta, aparentemente científica, acerca das necessidades da busca do prazer e das dificuldades necessárias da busca do prazer. Depois de Freud, ser coerente é algo de que se pode ser acusado. Mas por que, da perspectiva freudiana, o amoral requer expressão? Por que Freud substituiu a linguagem da determinação e do autocontrole pela linguagem da atuação pragmática? Por que não podemos "nos comportar", em vez de "nos expressar", ou nos comportar ao nos expressar? A resposta de Freud é que vivemos num estado de tentação permanente. Embora amemos a segurança e a autopreservação, algo em nós parece gostar mais de outra coisa (a arte mais interessante não é nunca sobre segurança, mas sobre o que ameaça a segurança). Darwin diz que desejamos nos preservar a fim de reproduzir nossos genes. Freud diz que há algo que ele deseja denominar sexualidade que está permanentemente ameaçando nos destruir. A nossa sexualidade nos põe em perigo -ameaça a nossa percepção de nós mesmos, o nosso ego- porque é transgressiva.

"Origem da moralidade"
De acordo com Freud, nós somos uma ameaça constante a nós mesmos. Assim, quando, em 1897, ele conta a Willliam Fliess que está prestes a descobrir a "origem da moralidade" e fala de sua "onda de conjecturas", é porque o interesse no proibido, no inaceitável, é, por definição, uma conjectura. "Só me ocorreu uma idéia de valor universal", ele escreve: "Também no meu caso identifiquei o amor pela mãe e ciúmes do pai e agora acredito ser esse um fenômeno genérico da primeira infância... Se for esse o caso, o poder arrebatador de "Édipo Rei", apesar de todas as objeções racionais ao destino inexorável que a história pressupõe, torna-se inteligível... o mito grego apodera-se de uma compulsão que todos reconhecem porque identificam traços da mesma em si mesmos. Cada membro da platéia foi um dia um jovem Édipo, em fantasia, e a realização desse sonho encenado na realidade faz com que todos se retraiam horrorizados, na medida exata da repressão que separa o seu estado infantil do seu presente estado". Nós não podemos, aqui e agora, estabelecer a veracidade ou não do complexo de Édipo. Temos que reconhecer, no entanto, que a temática do incesto não tende a deixar as pessoas indiferentes. A interpretação freudiana da peça e de seu significado possível não é tão notável quanto o desejo de Freud de significar o horror dos sujeitos em relação à sexualidade. Em seu excelente ensaio "Is the Rectum a Grave?", Leo Bersani observou que o grande segredo acerca do sexo era o de que as pessoas não gostam de sexo. O grande segredo acerca do sexo não é o de que a maioria das pessoas não gosta de sexo, mas que a maioria das pessoas não gosta de sexo porque estão com pessoas pelas quais não se sentem estimuladas ou com pessoas pelas quais se sentem estimuladas demais (razão pela qual a maioria dos relacionamentos termina em tédio ou inveja patológica). E, se estão com pessoas pelas quais não se sentem estimuladas o suficiente, Freud diria que é porque estão aterrorizadas pelo seu próprio desejo. Como jovens Édipos, ou o seu desejo é incestuoso ou não é nada.

Darwin x Freud
O desejo verdadeiro é sempre um lembrete de algo simultaneamente irresistível e proibido. Quando nos deparamos com o momento da escolha do parceiro sexual, será melhor prevenir do que remediar. Ou, no que diz respeito à sexualidade, aquilo a que Freud se refere como rejeição é sinal de desejo. Poderíamos dizer que isso vai de encontro às pressuposições de senso comum acerca da busca do prazer. O prazer não deveria ser, no mínimo, também um prazer? Se sexo é mesmo aquele projeto darwiniano, por que ele nos dá tanto trabalho? Freud nos mostra como, caso não tenhamos problemas, não estamos fazendo sexo.
O momento delicado dessa retração é o lapso freudiano por meio do qual nós e/ou o nosso público se afasta horrorizado diante do que foi dito de forma inadvertida. O que quer que seja esse horror, Freud está descrevendo a si próprio e a seus pacientes, dentre outros, como sofredores "disso". O que nos coloca em uma situação difícil em relação a nós mesmos, mas em termos seculares. Ainda é um mundo de desejos proibidos, mas um mundo iluminista no qual as altas autoridades, aquelas exercendo as proibições, são reconhecidamente humanas, e não de origem divina. Ao elaborar sua própria mitologia -e o seu trabalho, como Harold Bloom sugere, deveria ser lido como sendo mais afim aos "Livros Proféticos", de Blake, do que aos "Princípios de Psicologia", de James-, a questão que se coloca para Freud é: em uma sociedade secular as altas autoridades são mais altas do que o quê?


A psicanálise -que, como tratamento, chega sempre tarde demais- não cura as pessoas, mas mostra a elas o que nelas é incurável


Ou, mais exatamente, o que é isso que requer esse tipo de distância a fim de que seja crível; e do que é, de forma obrigatória, que se deve distanciar? A resposta de Freud é que os pais, e o pai especialmente, são a autoridade máxima para a criança. Mas, surpreendentemente, aquilo de que temos que nos distanciar, e criar a ilusão de domínio, é a nossa infância ou, mais exatamente, o que Freud denomina sexualidade infantil -que está viva no adulto como desejo inconsciente. O inconsciente, a denominação freudiana para o persistente, pródigo e extravagante desejo infantil, é a pedra no caminho. O simples ato de descrever o que é simultaneamente irresistível e aquilo a que mais se resiste -caso esse "algo" exista ou não- é um ato de heroísmo linguístico. É o desejo de Freud descrever como o que ele denomina inconsciente trabalha de modo a se fazer presente em nós. Nosso desejo, ele sugere, está sempre em obra, sem término e sem fim, e, na mesma medida, também a sua narrativa do inconsciente. E, se se quiser ter uma idéia do tipo de coisa que o inconsciente faz, o tipo de coisa que fazemos inconscientemente, pense num sonho, diz Freud, ou numa piada ou num lapso ou em algo de que você evidentemente sofre, como uma fobia, uma inibição ou um pensamento intrusivo (como o de Tietjens).

Recriação da infância
Freud criou uma categoria incomum, talvez sem precedentes: uma categoria que faz a ligação entre o sonho, a piada, o lapso, o sintoma, a inibição. É uma categoria de performances inspiradas inconscientemente, na qual a identidade do ator é obscura e na qual a performance é considerada uma comunicação -não importa quão enigmática- pelas partes interessadas. A comunicação desconcertante é uma alusão, uma memória, uma referência aos desejos da infância. Para Freud, a infância é o proibido, e a memória, na melhor das hipóteses, um prazer culposo. Não há nada mais transgressivo do que conversarmos sobre a nossa infância, exceto recriá-la na vida adulta. Em outras palavras, não é que Freud tenha destruído a inocência da infância: ele nos mostrou que a idéia de inocência foi criada para destruir a verdade da infância. Nós dizemos que Édipo é um herói trágico porque ele é o homem mais comum do mundo. É claro que Édipo não havia assistido à peça. Ele está tendo essa experiência pela primeira vez, como nós quando crianças. E, quando chegarmos a assistir, a ler ou mesmo a ouvir falar da peça, já será tarde demais. Já teremos sido amaldiçoados por nosso destino. A psicanálise -que, como tratamento, chega sempre tarde demais- não cura as pessoas, mas mostra a elas o que nelas é incurável. Mais exatamente, mostra a elas as áreas de suas vidas para as quais a palavra cura seria incorreta, para as quais temos que propor algo melhor do que "melhorar". E, algo que podemos fazer, sugere Freud, é rastrear o inconsciente em nossas vidas. Nós podemos, ele sugere ocasionalmente, aprender a ter prazer com a nossa própria inconsciência. Não há nada mais divertido -mais assustador, engraçado e terrível- do que os meios pelos quais nossas intenções e atenções negam fogo. Nada é mais pungente e absurdo do que as nossas desesperadas e sinceras tentativas de não nos desestruturarmos. Freud quer que reconsideremos o que quer seja a respeito de nós mesmos que estamos tão tentados a ignorar. Ele nos convida a permanecer atentos de forma não seletiva, para depois vermos o que acontece. Porque o problema que as pessoas modernas têm é que as coisas as atingem, mas elas não sabem o que fazer com elas. Sem a noção do pecado, eles não sabem como significar aquilo que os perturba.

Um idiota em São Petersburgo
Há um momento desagradável, freudiano talvez, em "O Idiota" [de Dostoiévski", quando algo ocorre ao príncipe Mishkin, enquanto vaga pelas ruas de São Petersburgo: "Ocasionalmente ele observava os passantes com grande curiosidade. Entretanto, ainda mais frequentemente, não se dava conta quer dos passantes, quer para onde estava se dirigindo, precisamente. Ele estava atormentadamente tenso e inquieto e, ao mesmo tempo, sentia uma extraordinária necessidade de solidão. Ele desejava estar só e se entregar a esse sofrimento, completamente, passivamente, sem buscar nenhuma escapatória. Ele relutava em solucionar as questões que inundavam a sua alma e o seu coração. "Sou eu o culpado de tudo, então?", murmurava para si mesmo, quase sem ter consciência de suas palavras".
O príncipe oscila entre a vigilância e a auto-absorção, apoiando-se imediatamente na realidade externa -observando os passantes- e perdido em seus próprios pensamentos e sentimentos (tentar "solucionar as questões que invadiam a sua alma e o seu coração" significaria se distanciar daquelas mesmas questões). Repentinamente, tudo o que ele pode fazer é conversar consigo mesmo.
Num certo sentido, o destino de Rogozhin e Nastasya Filippova é tudo aquilo por que ele se sente momentaneamente responsável, mas todo o sofrimento e confusão do mundo, que ele acredita, como diz a si próprio, ser sua culpa, também o são. Não é raro as pessoas se sentirem repentinamente responsáveis pelo horror das coisas. E, claro, é reconfortante acreditar que há alguém a quem culpabilizar, que, em algum lugar, há um agente responsável. Mas o príncipe Mishkin murmura isso a si mesmo, "quase sem ter consciência de suas palavras". O narrador sugere que podemos ter consciência de nossas palavras, mas o que significa termos consciência de nossas palavras?
Não ter consciência de nossas próprias palavras é uma boa descrição do relato de um sonho. Todas as palavras que usamos provavelmente têm referentes conhecidos e, ainda assim, o que relatamos não faz sentido nenhum. Não só isso: estamos descrevendo algo que vimos, mas não com os nossos olhos. Falar e não ter consciência de nossas palavras mais se parece com um estado de transe, como se, naquele momento, o príncipe, como o sonhador, fosse o meio, em vez do "instigador", do que se tem a dizer. Ele está estarrecido, como dizemos, porque não se reconhece em seu discurso. "Algo", escreve o narrador, "certamente o perseguia". Isso, da perspectiva de Freud, é o eu em sua essência, em seu estranhamento em relação a si próprio. Na mitologia de Freud, o inconsciente é a fonte fictícia das notícias. É de onde brotam as surpresas, as surpresas cujo estatuto moral é sempre ambíguo. Pensamentos e sentimentos que vêm da área inconsciente do eu têm consequências indeterminadas. Eles são a matéria dos sonhos, não do cotidiano.

Pensamento e linguagem
Por que razão Dostoiévski descreveu o príncipe murmurando aquela frase para si próprio, em vez de descrevê-la simplesmente como um pensamento que havia atravessado a sua mente? E por que Madox Ford descreveu o pensamento repentino de Tietjens como aquele em relação ao qual tudo o que ele podia fazer era conversar consigo mesmo? Ambas as situações chamam a nossa atenção -razão pela qual eu as descrevo como momentos freudianos- para a diferença entre algo estar acontecendo a alguém, alguém estar tendo um pensamento perturbador, e esse pensamento estar sendo falado, mesmo que para nós mesmos. A criação freudiana da psicanálise como uma terapia -ou como um novo tipo de conversa- se faz sobre essa diferença. Ele convidou seus pacientes para, de fato, conversarem consigo mesmos, mas em voz alta, na sua presença, para se sentirem quase inseguros de suas palavras -ou seja, para associarem livremente, para dizer o que quer que lhes venha à mente, sem censura. Freud sugere que não há nada mais defensivo do que compreender o que estamos dizendo. De forma resumida, a psicanálise se baseia na idéia de que falar é diferente de pensar: mas também que se surpreender ou se chocar na presença de uma outra pessoa é algo de valor, que tais surpresas produtivas só se tornam possíveis por meio da presença de um outro. O objetivo, a intenção do inaceitável em nós mesmos, é tornar-se conhecido. O proibido, o transgressivo, é sempre um aviso. É uma demanda feita, no mínimo, a um outro sujeito. Freud criou um "setting" terapêutico, denominado psicanálise, no qual esse eu pudesse ser escutado. A prova foi o que se seguiu àquela escuta. Distinta da confissão, a psicanálise oferece, no melhor dos casos, uma redescrição essencialmente imprevisível do que foi dito. O psicanalista, esse novo personagem que Freud criou, é alguém com modos de conversação incomuns. Ele responde ao que seus supostos pacientes lhe dizem de forma bastante inusitada. E isso porque ele tem dois objetivos, que estão mais distantes entre si do que Freud estava preparado para admitir. Por um lado, ele tem como objetivo a cura, mitigar o sofrimento, ajudar a fazer com que uma vida valha a pena ser vivida ainda mais. Por outro, ele tem como objetivo o que é conhecido tecnicamente como "simbolização máxima". Podemos dizer que ele quer responder de modo a facilitar a expressão do desejo inconsciente. Ele quer deixar o inconsciente falar: transformar as defesas do sujeito em relação ao que tem a dizer e em relação ao que tem de escutar a si próprio dizendo. A questão é -e essa é, claro, uma questão política: uma fala mais livre, a articulação de desejos a mais honesta possível, oferece aos sujeitos uma vida que eles prefiram ou constroem um mundo melhor? Ao criar a psicanálise, Freud criou um laboratório para a avaliação dos efeitos de uma fala livre e de uma escuta livre. E, surpreendentemente, talvez nem todo mundo goste ou tenha gostado do que escutou. As pessoas só desejam falar livremente acerca do que não devem falar.

Articular os desejos
Da perspectiva de Freud, a pergunta que o sujeito moderno parece estar se fazendo é se é possível compatibilizar seus desejos com sua sobrevivência (psíquica). Para Freud, falar é o mesmo que articular nossos desejos, é tornar conhecido para si próprio o que lhe falta, o que de significado está faltando em nossas vidas. E a performance do desejo em relação à disposição, à linguagem, à ação coloca nossas vidas em perigo. Há o perigo de punição por desejar o proibido, a que Freud se refere, de forma infame, como castração, e há o perigo de uma dependência admitida, e o potencial para a perda. Não podemos viver, não poderíamos ter sobrevivido, sem desejar e sem ter alcançado algum sucesso nisso. Mas o desejo, que é o nosso percurso de vida, nos arremessa num conflito interminável: nos envolve inelutavelmente com os outros e com nós mesmos. "Originalmente", escreve Freud em "Mal-Estar na Civilização", a renúncia às pulsões foi o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciamos às nossas satisfações pulsionais a fim de não perder o amor. Há a urgência, a emergência do desejo, e há o medo da perda do amor como uma paixão dominante. Uma pessoa começa, nos diz Freud, com medo de perder o amor de seus pais e, tendo internalizado a sua autoridade, termina por temer (e cortejar) a perda de seu amor-próprio. E esse ódio por si mesmo, que pode ser obsceno na sua voracidade, é denominado culpa. Não podemos evitar sermos feridos por aquilo que não podemos evitar desejar. Temos a moralidade para nos proteger de nós mesmos.

A tarefa do sujeito moderno é encontrar novas formas de desejar que mantenham o desejo vivo, mas com o conhecimento de que desejar é uma espécie de risco


Mas Freud redescreve as categorias. "Deus", agora, significa segurança e satisfação, ou satisfeito o bastante. "Mal" significa estar privado para além de nossas necessidades. "Deus" significa, como sempre significou, desejável, mas, agora, desejável também significa proibido. O que é bom é contra a Lei. "Mal", agora, significa traumático, mas "trauma" é outra palavra que significa "viver a vida". Dito de outra forma, para Freud, nós estamos traumatizados: a nossa infância é mais do que temos condição de suportar. Estamos todos nos recuperando por termos sido, um dia, crianças.

Palavras sobre as feridas
Ao rastrear, em seu trabalho clínico, os caminhos pelos quais as soluções antiquadas da infância se tornaram repetições, na vida adulta, a repetição como uma resistência à rememoração, e com a memória cheia de esconderijos, chamou a atenção de Freud o fato peculiar de que o sofrimento pode ser transformado quando palavras são aplicadas sobre as feridas. Falar para um outro pode ser um ato de esperança.
A tarefa do sujeito moderno, como Freud a entende, é a de encontrar novas formas de desejar que mantenham o desejo vivo, mas com o conhecimento de que desejar é uma espécie de risco. Depois de Freud, o que se tornou conhecido como a teoria psicanalítica é uma enciclopédia de riscos modernos. E, geralmente, desejo é a palavra contemporânea para o risco não-arriscado: a vida não-vivida que parece ser a única que merece ser vivida. As pessoas ainda não se deram conta de que o "princípio de realidade" foi a idéia mais estimulante de Freud.
Assim, Freud nos deixa com uma questão que nos atravessa: o que é uma vida boa para sujeitos que têm a noção do incesto como nós, sujeitos que não devem ter o que realmente desejam, sujeitos cujo amor fértil por seus pais transformou o amor numa paixão irrealizável? Devemos começar, Freud parece estar nos dizendo, por ironizar os controles da mente. Não devemos nos esconder a fim de nos proteger. Devemos aprender a desejar com malícia e sem esperança, a amar de forma conflituosa, em vez de trair nosso desejo com fantasias de harmonia. Resumidamente, nós devemos ter prazer onde nos for possível. E falar tanto quanto pudermos daquilo que nós desejarmos.

Adam Phillips é psicanalista e escritor britânico, autor de, entre outros livros, "Monogamia", "Beijo, Cócegas e Tédio" e "O Flerte" (todos pela Companhia das Letras). Este texto foi publicado originalmente no "London Review of Books".
Tradução de Giovanna Bartucci.


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