São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

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Superávit etário

AUMENTO DA EXPECTATIVA DE VIDA TORNARÁ PRIORITÁRIO, NO SÉCULO 21, O DEBATE SOBRE O SENTIDO DA EXISTÊNCIA

Peter Dejong - 8.nov.2007/Associated Press
Mulheres choram pelos jovens que foram vítimas de um atirador em escola de Tuusula (Finlândia)


RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Questões de valor são eminentemente filosóficas: constituem a matéria-prima da ética. Nos últimos anos, boa parte da discussão pública sobre o bem agir tratou de temas que colocam em foco a própria vida. Isso pode ter começado com a proposta de descriminar o aborto e depois passou para a pergunta sobre a boa morte.
Se há um ponto em comum entre as discussões sobre o aborto, a eutanásia (e as formas de morte voluntária digna) e o uso das células-tronco para pesquisa, é este: a vida se tornou objeto de intensa discussão ética.
Esse debate não é fácil, porque coloca em cena a vida que não virá à luz, no caso do aborto ou talvez dos embriões, ou a vida que tenha fim abreviado. Em outras palavras, é um debate sobre a vida que inclui a morte ou a não-vida. Daí que seja muito delicado, fácil de tomar pelas paixões.
Por exemplo, o caso dos embriões congelados, que serão descartados e que poderiam ser utilizados para curar doentes. Alega o ex-procurador-geral da República [Claudio Fonteles] que se trata de formas de vida, que serão exterminadas, para um uso científico que não é garantido e que, além disso, poderia ser obtido de outras formas.
Respeito plenamente o dr. Fonteles e acrescento que, se ele ou outros se inspiram para suas escolhas éticas em convicções religiosas, isso é legítimo; pois uma religião sem ética o que é? O que resta a uma religião se não tiver ética?

Muitas posições
Mas não concordo com ele nessa questão porque o embrião ainda não tem condições de viver. Ele é uma possível vida. Casais congelam geralmente vários embriões, para usar um ou poucos. Evidentemente, a questão não é o embrião ou o feto ser capaz de viver por si só (como alegam alguns adversários do dr. Fonteles).
Pois o recém-nascido ou mesmo a criança pequena dependem do adulto para viver, e só um monstro daria ao pai ou à mãe o direito de matá-los.
Mas o caso dos embriões não é o do aborto. Não devemos deixar que uma questão instrumentalize a outra.
Há pessoas que aceitam o uso dos embriões congelados que, não estando implantados no útero, ainda não estão a caminho de viver, mas não admitem o aborto. Outras defendem o direito ao aborto, como mal menor; outras o defendem, sem limites.
São muitas posições diferentes. Penso que o ponto decisivo a assegurar é que, mesmo convergindo todas essas questões no limite entre a vida e a morte voluntária, não sejam misturadas. O debate sobre os embriões tem-se confundido com o do aborto, o que só confunde as pessoas.
São questões distintas.

Passo adiante
Onde entra a morte voluntária? Com exceção de poucas culturas aristocráticas, como a romana e a japonesa, que lhe atribuíram alta dignidade moral, o suicídio assusta.
O judaísmo e o cristianismo o condenam -talvez porque a criatura toma em mãos uma decisão que caberia a Deus, ao destino ou ao acaso. Ele também pode, claro, ser sinal de um desespero enorme, de uma solidão insuportável.
Mas há mortes voluntárias que apenas expressam o cansaço com a vida, a sensação de ter completado uma existência, o desejo de não suportar a degradação física extrema.
Dessas mortes ainda pouco sabemos. Têm a ver com a expansão do tempo de vida, que dobrou no último século. Em breve, saltaremos a barreira dos 115 anos de vida, que é o recorde de vida no Cáucaso. Agüentaremos?
Simone de Beauvoir tem um belo romance, "Todos os Homens São Mortais". Um personagem vive séculos. Cansa-se.
Estaremos perto disso? Vivemos uma situação em que o estoque de vida possível ultrapassa a possibilidade de lhe atribuirmos valor, sentido, dignidade? Zombava-se, outrora, de padres horrorizados ante o número de espermatozóides descartados a cada ato sexual, ao perderem a batalha por fecundar o óvulo.
É claro que o espermatozóide sozinho não gera vida.
Mas o embrião já é um passo adiante. A vida longa em demasia também pode ser um avanço, um excedente, um superávit. Temos, social e ecologicamente, condições de alongar a ocupação humana da biosfera?
Hoje, já a herança perdeu sentido. É rara a pessoa que, com a herança proveniente da morte dos pais, constrói sua vida. Geralmente, herda-se quando já não se precisa disso.
Não temos mais a substituição do pai pelo filho, nem mesmo a do avô pelo neto. Quatro gerações sucessivas podem coexistir.
Há espaço para todos? Emprego, ar, água, comida? Questões sociais, sim, de intendência, sim, mas que repercutem em nossas escolhas.
Além disso, cada vez mais convivemos com idosos que, por qualquer razão, dizem que cansaram. Podem estar lúcidos, mas sem força física. Podem estar fortes, mas sem lucidez. Podem ter perdido a companheira, o trabalho, os entes queridos, enfim, o que lhes dava qualidade na vida.
Morrer será uma derrota? A morte será a verdade da vida? O suicídio dirá, em retrospecto, que uma vida falhou? Não. Uma vida longa pode ter uma sucessão de sentidos. Pode ter longos anos de felicidade e longos de tristeza.

Morte datada
Em várias religiões conta-se uma mesma história: que a poucas pessoas, extremamente sábias, Deus informou em que dia morreriam. Alguém precisa ser muito espiritualizado para suportar esse conhecimento.
Não é a mesma coisa que agonizar num hospital. Não é a morte como desenlace de uma vida morrente. Talvez esse seja o reverso da morte voluntária: a data conhecida da morte.
Disse que muitas religiões não suportam a morte escolhida. Mas nós mesmos provavelmente preferimos a morte como surpresa, a morte sem data marcada ou a morte como desfecho de uma doença horrível.
A associação de um destino inexorável, que recende a surpresa, com o conhecimento de que o dia fatal está conhecido, é talvez insuportável. Estas reflexões têm uma única moral: em tempos secularizados, leigos, discutir a não-vida é uma das formas mais apuradas de pensar a moral, o destino, talvez uma nova dimensão do mundo espiritual.


RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de ética e filosofia política na USP e autor de "O Afeto Autoritário" (Ateliê), entre outros livros. O autor dedica este artigo a seu pai, Benedicto Ribeiro.


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