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Luciana Stegagno Picchio, a mais importante especialista em Murilo Mendes, situa o poeta fora da tradição literária brasileira
O visionário distante
Maurício Santana Dias
da Redação
Enquanto viveu, Murilo Mendes sempre foi considerado com uma certa suspeição, embora seu
nome nunca tenha deixado de constar das antologias e listas de "maiores poetas brasileiros". Nas
palavras de Manuel Bandeira, ele era "talvez o mais
complexo, o mais estranho e seguramente o mais fecundo poeta desta geração". Para alguns, porém, Murilo nunca deixara de ser o "enfant terrible" dos poemas-piada de "História do Brasil" (1932), livro que ele mesmo iria rejeitar mais tarde. Para outros, era simplesmente o autor de longas composições cristãs, o poeta
arcaizante da "Contemplação de Ouro Preto" (1949-50). Permeando essas duas visões, um mar de anedotas
contribuiu para transformá-lo numa figura excêntrica
-cuja maior excentricidade, aos olhos de seus patrióticos leitores, foi ter se fixado em Roma a partir de 1957.
Só muito recentemente o autor de "A Poesia em Pânico" e "Convergência" tem sido apreciado de forma
mais séria. E grande parte desse renovado interesse por
Murilo Mendes deve-se ao trabalho de Luciana Stegagno Picchio, que em 1994 organizou o volume "Poesia
Completa e Prosa" e agora está editando, na Itália, a coletânea "L'Occhio del Poeta" (O Olho do Poeta), que colige textos sobre artistas plásticos escritos por Murilo
em italiano.
Colega do poeta na Universidade de Roma e autora de
uma das melhores histórias da literatura brasileira que
há ("História da Literatura Brasileira", ed. Nova Aguilar), Luciana Stegagno Picchio fala nesta entrevista sobre suas predileções, comenta as várias dimensões da lírica muriliana e diz que o poeta mineiro foi uma voz
isolada na tradição literária brasileira. "Murilo, com a
sua violenta frequentação do visionário, o seu estado de
bagunça transcendente, representa um dos aspectos extremos e mais originais do modernismo brasileiro."
Enquanto a senhora organizava a edição das obras de Murilo Mendes, grande parte da crítica e dos leitores no Brasil o
desconhecia ou o considerava um poeta católico ultrapassado. Hoje isso mudou. Por quê?
Foi sem dúvida a publicação da poesia completa e dos livros de
prosa, que ainda se desconheciam, a razão da mudança de
opinião por parte do público em relação a Murilo Mendes. Foi
a divulgação inteligente dessa obra "a nível da mídia", como se
costuma dizer hoje, a reaproximar o poeta "estrangeirado" do
seu público natural. Foi a divulgação da obra do Murilo nas escolas e junto a um público jovem que fez explodir a carga de
misticismo irracional próprio do poeta mineiro. Foi a redescoberta um tanto anedótica de uma vida marcada pela poesia a
divulgar a silhueta de uma personagem que podia ser imediatamente reconhecida até pelas crianças.
Pela sua familiaridade com o sobrenatural, que não excluía
as imagens mais audaciosas em relação não só à Igreja Católica, vista como uma mulher "toda em curvas", mas também às
próprias pessoas da Divindade, Murilo se diferenciava completamente de todos os chamados poetas católicos. É o que o
público, todos os públicos, procura agora, na entrada do novo
milênio. Os nossos pais tinham certezas positivas e positivistas. O público de agora, incerto e decepcionado, volta a descobrir o mistério, o irracional, a magia e os magos. E o poeta Murilo Mendes, de Juiz de Fora, argonauta das nuvens, poderá ser
um dos magos do nosso futuro.
Em seu período italiano, Murilo se ressentia de "ter sido esquecido" pelos brasileiros -como Drummond acusou em
uma de suas crônicas?
Não. No período italiano, Murilo sofria enormemente pela situação de ditadura em seu Brasil. Não pensava ter sido esquecido pelos brasileiros. Sabia que, infelizmente, os brasileiros tinham outras coisas em que pensar e se sentia impotente a fazer qualquer coisa.
Mário de Andrade disse do poeta: "O que fixou Murilo Mendes foi a religião". Foi a religião que o distanciou de seus
contemporâneos?
Talvez, com referência ao que dissemos antes, a religião como
a entendia Mário de Andrade fosse outra coisa de como a entendia Murilo Mendes. Sem contar que a própria religião de
Murilo foi evoluindo nos anos. E que a religiosidade do Murilo
romano, que nós conhecemos, fosse outra coisa da religiosidade do Murilo dos tempos imediatamente sucessivos à morte
de Ismael Nery.
Que espécie de cristianismo era o de Murilo, capaz de versos
como "intimaremos Deus/ a não repetir a piada da criação"?
Era o cristianismo pobre, centrado na figura divina e humaníssima do Cristo que permitia ao crente qualquer direta e irreverente apóstrofe ao Pai todo-poderoso.
Murilo sempre dizia que na sua formação de poeta influíram
sobretudo três "fenômenos": Halley (o cometa), Nijinski (o
bailarino) e Ismael Nery (o pintor-poeta). Por quê?
Os três "fenômenos" correspondem a três momentos da vida
de Murilo que ele próprio marcou, distinguiu, com uma anedota: a infância, com a chamada à poesia pela visão do cometa
Halley; a adolescência contestadora, com a fuga do colégio e a
visão de Nijinski dançando no arco-íris; a crise religiosa-existencial da maturidade, com a morte de Ismael. No
Brasil, cada pessoa que conheceu Murilo ou que ouviu
falar nele conta uma anedota da sua vida. E é esse rosário de anedotas que alimenta o atual "mito" do fabuloso Murilo.
Quais os pontos de contato entre o misticismo surrealista
de Murilo e a tradição literária brasileira?
Não conheço predecessores do "misticismo surrealista" do
Murilo na tradição literária brasileira. Como Ismael Nery,
durante muitos anos Murilo recusou a etiqueta de poeta surrealista: recusava qualquer automatismo à Breton. Só no final, perante a evidência, acabou por aceitar ter professado
"um surrealismo à brasileira". Os predecessores do élan místico de Murilo devem ser procurados melhor na tradição
francesa do catolicismo pobre de um Albert Béguin.
A seu ver, quais os pontos mais altos da lírica de Murilo?
A poesia de Murilo, assim como sua personagem, tem várias
faces e várias fases. Poderíamos dizer: a modernista dos poemas-piada e da "História do Brasil", a visionária e apocalíptica do "Visionário", do "Tempo e Eternidade", dos "Quatro
Elementos", de "A Poesia em Pânico", a neo-romântica da
"Contemplação de Ouro Preto", a descritiva da "Siciliana" e
do "Tempo Espanhol", a experimental da "Convergência".
Mas todas as etiquetas só serviriam para fragmentar arbitrariamente um conjunto poético extremamente unitário e
sempre marcado pela invenção, pelo "excesso" poético que é
o sinal inconfundível de Murilo Mendes.
Em cada um desses livros há poemas de uma pureza, de
uma "cristalinidade", que poderiam ser escolhidos como
pontos altos dessa poesia. Mas, ao meu gosto, se devêssemos,
entre todos, escolher um livro, eu diria "Poesia Liberdade",
em que a poesia, perante o espetáculo da guerra, encontra
seu dorido equilíbrio entre o trasborde poético e o compromisso humano e civil ("E estes mortos do Brasil, da China, da
Inglaterra/ Estendidos no meu coração").
Embora fosse um melômano, apreciador sobretudo de Mozart, o poeta cultivava um verso fragmentário, "desmusicalizador de nossa linha lírica", segundo José Guilherme
Merquior. De onde vem esse contraste?
Murilo não era um melômano apreciador de qualquer ópera
lírica e do "bel canto". Era um competentíssimo amante de
música erudita, com um centro em Mozart, mas com uma
trajetória que chegava até os nossos dias. Além de Mozart,
sabia escutar a música dodecafônica e todas as dissonâncias
da música moderna. Admirava João Cabral, que não fazia
sonetos, mas que sabia construir a sua própria dimensão
poética. Murilo sabia fazer sonetos, embora brancos, e romances tradicionais, como os poemas da "Contemplação de
Ouro Preto". Não há contraste entre a sua forma de ser poeta
e a de apreciador de música.
Como Murilo se situava em relação ao modernismo brasileiro?
Poetas como Bandeira ou como Mário e Oswald de Andrade
chegaram ao modernismo. Murilo, como Drummond, nasceu modernista. Não participou da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 22, pois ele, que naquela altura tinha 21
anos e estrearia em 1930, ainda vivia em Minas. Mas ele nunca escreveu um verso que não fosse já e totalmente modernista. Pode-se até dizer que Murilo, com a sua violenta frequentação do visionário, o seu estado de bagunça transcendente, representa um dos aspectos extremos e mais originais
do modernismo brasileiro.
Havia um projeto muriliano de desmonte da nossa tradição realista?
Os projetos de Murilo, quando ele vivia em Roma, eram
sempre mais poéticos e subversivos. Um deles era dinamitar
o monumento ao Soldado Desconhecido da Piazza Venezia.
Toda a vida do Murilo era uma negação do realismo. Mas ele
nunca falava de escritores realistas. Só a quem lhe perguntava qual livro levaria para a ilha deserta, respondia: "O mais
belo livro do mundo, "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa".
Murilo certa vez escreveu: "Não sou meu sobrevivente e
sim meu contemporâneo". Quem seriam seus contemporâneos hoje?
O meu mestre Roman Jakobson dizia que cada um de nós escolhe os seus contemporâneos. Nesse sentido eu, agora, sinto-me muito mais contemporânea de Dante (1265-1321) do
que, por exemplo, de D'Annunzio (1863-1938). Murilo procurava em cada momento ser contemporâneo de si mesmo.
Reservava-se o direito de modificar a cada reimpressão os
seus textos, mostrando um variantismo de autor que constitui hoje um dos encantos do estudo diacrônico da sua poesia. Hoje, talvez, Murilo, poeta católico de um catolicismo
das origens, julgasse seu contemporâneo muito mais o bondoso papa João 23 do que o atual João Paulo 2º.
No apartamento de Murilo se reunia boa parte das intelectualidades européia e brasileira. Como eram aqueles encontros? Quem eram os frequentadores mais assíduos e o
que mais se discutia ali?
Já muitas vezes, por exemplo, no prefácio à minha edição da
"Poesia Completa e Prosa", de Murilo, falei dos amigos que
se reuniam na mítica casa romana da Via del Consolato 6.
Recentemente, ao organizar finalmente o livro, a sair em breve, aqui em Roma, com o título "L'Occhio del Poeta" -que
reúne os textos publicados em italiano por Murilo, como
prefácios e catálogos de exposições de arte-, escrevi que ele
privilegiava os artistas plásticos, que eram eles, ao lado dos
escritores, atores e músicos, o núcleo forte e colorido dos
seus amigos.
Murilo sempre foi tido como um exemplo de polidez. Lembra-se de alguma vez o ter visto sair do sério?
Ele era de fato um exemplo de polidez e organizava os jantares na sua casa com extremo cuidado. Numa noite, com a
mesa pronta, as luzes acesas e os hóspedes a chegar, telefona-lhe um jovem diplomata convidado: "Murilo, não vou. Estou
resfriado". Murilo, que tinha graduado milimetricamente as
afinidades entre as pessoas convidadas, um homem e uma
mulher alternados, pálido, desata: "Está resfriado? É pouco,
muito pouco! Da próxima vez, parta uma perna".
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