São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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+ polêmica

O lingüista Carlos Alberto Faraco discute as questões levantadas pelo deputado federal Aldo Rebelo em seu texto publicado no "Mais!" de 15 de abril

O maiúsculo e o minúsculo

Carlos Alberto Faraco
especial para a Folha

É lastimável quando alguém simplifica em demasia as realidades complexas: perde a proporção dos fatos e se põe a fazer afirmações desprovidas de qualquer fundamento. Enquanto essas simplificações permanecem nos limites estritos do idiossincrático (são mera crença ou opinião pessoal), parece não haver maiores problemas, afinal cada um acredita naquilo que bem lhe apraz. Contudo, quando essas simplificações ultrapassam tais limites e começam a sustentar ações com repercussão para além do idiossincrático, a situação se torna, no mínimo, preocupante.
É o que tem ocorrido ultimamente com uma certa discussão em torno da língua. Nessa área, há, sem dúvida, questões maiúsculas a serem enfrentadas. O Brasil precisa desencadear um amplo debate com vista à elaboração de uma nova política linguística para si, superando os efeitos deletérios de uma situação ainda muito mal resolvida entre nós, como procurei mostrar no texto publicado no caderno Mais! de 25/3/2001.
Essa nova política deverá, entre outros aspectos, reconhecer o caráter multilíngue do país (o fato de o português ser hegemônico não deve nos cegar para as muitas línguas indígenas, européias e asiáticas que aqui se falam, multiplicidade que constitui parte significativa do patrimônio cultural brasileiro). Ao mesmo tempo, deverá reconhecer a grande e rica diversidade do português falado e escrito aqui, vencendo de vez o mito da língua única e homogênea.
Será preciso incluir, nessa nova política, um combate sistemático a todos os preconceitos linguísticos que afetam nossas relações sociais e que constituem pesado fator de exclusão social. E incluir, ainda, um incentivo permanente à pesquisa científica da complexa realidade linguística nacional e à ampla divulgação de seus resultados, estimulando com isso, por exemplo, um registro mais adequado, em gramáticas e dicionários, da norma padrão real, bem como das demais variedades do português, viabilizando uma comparação sistemática de todas elas, como forma de subsidiar o acesso escolar (hoje tão precarizado) ao padrão oral e escrito.
Apesar de termos essas tarefas maiúsculas à frente, foi uma questão minúscula que, a partir de uma grosseira simplificação dos fatos, acabou por tomar corpo em prejuízo de todo o resto: a presença de palavras e expressões da língua inglesa em determinadas áreas do nosso cotidiano.
Uma observação cuidadosa e honesta dos fatos nos mostra que, proporcionalmente ao tamanho do nosso léxico (composto por cerca de 500 mil palavras), esses estrangeirismos não passam de uma insignificante gota d'água (algumas poucas dezenas) num imenso oceano.
Mostra-nos ainda mais (e aqui um dado fundamental): muitos deles, pela própria ação dos falantes, estão já em pleno refluxo (a maioria terá, como em qualquer outra época da história da língua, vida efêmera).

Dinâmica do empréstimo Uma simples passada de olhos, aliás, pela história do português (como de qualquer outra língua) revela, com absoluta transparência, que os estrangeirismos nunca constituíram problema: os falantes, sem a tutela de ninguém e sem leis esdrúxulas, sempre souberam gerir a dinâmica do empréstimo lexical. Se adotam, num determinado momento, pelas mais diversas razões (estéticas, culturais, comerciais, pragmáticas, identitárias, estilísticas etc.), um número grande de palavras estrangeiras, só conservam, com o passar do tempo, empréstimos sentidos como realmente necessários, descartando simplesmente todo o resto. É por isso que desse processo resulta sempre enriquecimento e nunca empobrecimento da língua (sobre esse tema vale a pena ler o esclarecedor texto dos professores Pedro Garcez e Ana Zilles, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicado no livro "O Direito à Fala", pela editora Insular/Florianópolis).

Apesar da cristalina lição dos fatos de hoje e de ontem, preferiu-se criar, por razões que nos escapam, um cenário apocalíptico, querendo-nos fazer crer que estamos a assistir a uma verdadeira descaracterização da língua portuguesa; que o português está hoje seriamente ameaçado; que a nossa língua passa por uma transformação sem precedentes históricos. Essas afirmações, embora retumbantes, são, todas elas, rigorosamente falsas, conforme demonstrou, em bela argumentação (sim, porque o bom debate democrático pede afirmações sustentadas e bem informadas, e não apenas asseverações categóricas), o professor José Luiz Fiorin, da USP, em texto publicado pela Associação de Linguística Aplicada do Brasil em seu "Boletim 4": não há nenhum indício de que o léxico do português esteja minimamente afetado por esses estrangeirismos; muito menos estão afetadas a fonologia, a morfologia e a sintaxe da língua.
O que ocorre é o contrário: qualquer palavra que vem de fora, incorporada definitivamente ou não, é, de imediato, submetida às regras do português; e isso não depende de nenhuma especial sabedoria: é a regra do jogo em qualquer língua. O que pode demorar é a sua adaptação gráfica, ou porque essa adaptação acaba por não se justificar (vide a palavra "show"), ou porque é desnecessário entupir o formulário ortográfico com palavras cedo abandonadas.
Mas tudo isso é, por razões nunca reveladas, solenemente ignorado pelos arautos do apocalipse. Preferem crer (e tentam nos fazer crer), a partir de uma precária leitura da história, que os dominadores simplesmente impõem sua língua aos dominados. Estabelecem aí uma conveniente relação simplista de causa e efeito, esquecendo que a língua é poderoso elemento de identidade e, por conseguinte e em geral, de resistência à dominação. Os exemplos se multiplicam: os árabes dominaram a Península Ibérica por 700 anos e nem por isso os povos ibéricos falam árabe. Os otomanos submeteram a Grécia a um domínio de 300 anos e nem por isso os gregos falam turco.
Modernamente, para ficar num só exemplo, a China invadiu o Tibete, violentou a cultura do país e vem impondo sua lei com mão-de-ferro há 50 anos -e os tibetanos continuam corajosamente a falar sua língua. Não é bom, portanto, simplificar o que é complexo.
Sem argumentos minimamente razoáveis e perdidos em afirmações categóricas (e, por consequência, autoritárias), os arautos do apocalipse buscam, por fim, passar a imagem do bom-mocismo: querem só coibir abusos (esquecem de nos dizer quem serão os grandes iluminados que dirão quando o uso é abuso e com quais critérios); querem só proteger os brasileiros de humilhações (como se humilhações não houvesse, e muito piores, em límpido português).
Todos queremos um português vigoroso no país e, por isso, defendemos a construção democrática de uma nova política linguística que enfrente, de fato e não apenas com vazias generalidades, as questões maiúsculas. Jamais, porém, ao custo de ignorar a complexa realidade linguística do país e, muito menos, pelo reforço acrítico ao nocivo discurso da língua única, pura e homogênea que tanto estrago já nos causou.


Carlos Alberto Faraco é professor de linguística da Universidade Federal do Paraná e co-autor, com Cristovão Tezza, de "Prática de Texto para Estudantes Universitários" (Vozes).


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