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+ polêmica
O lingüista Carlos Alberto Faraco discute as questões levantadas pelo
deputado federal Aldo Rebelo em seu texto publicado no "Mais!" de 15 de abril
O maiúsculo e o minúsculo
Carlos Alberto Faraco
especial para a Folha
É lastimável quando alguém simplifica em demasia as realidades complexas: perde a proporção
dos fatos e se põe a fazer afirmações desprovidas
de qualquer fundamento. Enquanto essas simplificações permanecem nos limites estritos do idiossincrático (são mera crença ou opinião pessoal), parece
não haver maiores problemas, afinal cada um acredita
naquilo que bem lhe apraz. Contudo, quando essas
simplificações ultrapassam tais limites e começam a
sustentar ações com repercussão para além do idiossincrático, a situação se torna, no mínimo, preocupante.
É o que tem ocorrido ultimamente com uma certa
discussão em torno da língua. Nessa área, há, sem dúvida, questões maiúsculas a serem enfrentadas. O Brasil
precisa desencadear um amplo debate com vista à elaboração de uma nova política linguística para si, superando os efeitos deletérios de uma situação ainda muito
mal resolvida entre nós, como procurei mostrar no texto publicado no caderno Mais! de 25/3/2001.
Essa nova política deverá, entre outros aspectos, reconhecer o caráter multilíngue do país (o fato de o português ser hegemônico não deve nos cegar para as muitas
línguas indígenas, européias e asiáticas que aqui se falam, multiplicidade que constitui parte significativa do
patrimônio cultural brasileiro). Ao mesmo tempo, deverá reconhecer a grande e rica diversidade do português falado e escrito aqui, vencendo de vez o mito da
língua única e homogênea.
Será preciso incluir, nessa nova política, um combate
sistemático a todos os preconceitos linguísticos que afetam nossas relações sociais e que constituem pesado fator de exclusão social. E incluir, ainda, um incentivo
permanente à pesquisa científica da complexa realidade
linguística nacional e à ampla divulgação de seus resultados, estimulando com isso, por exemplo, um registro
mais adequado, em gramáticas e dicionários, da norma
padrão real, bem como das demais variedades do português, viabilizando uma comparação sistemática de
todas elas, como forma de subsidiar o acesso escolar
(hoje tão precarizado) ao padrão oral e escrito.
Apesar de termos essas tarefas maiúsculas à frente, foi
uma questão minúscula que, a partir de uma grosseira
simplificação dos fatos, acabou por tomar corpo em
prejuízo de todo o resto: a presença de palavras e expressões da língua inglesa em determinadas áreas do
nosso cotidiano.
Uma observação cuidadosa e honesta dos fatos nos
mostra que, proporcionalmente ao tamanho do nosso
léxico (composto por cerca de 500 mil palavras), esses
estrangeirismos não passam de uma insignificante gota
d'água (algumas poucas dezenas) num imenso oceano.
Mostra-nos ainda mais (e aqui um dado fundamental): muitos deles, pela própria ação dos falantes, estão
já em pleno refluxo (a maioria terá, como em qualquer
outra época da história da língua, vida efêmera).
Dinâmica do empréstimo Uma simples passada
de olhos, aliás, pela história do português (como de
qualquer outra língua) revela, com absoluta transparência, que os estrangeirismos nunca constituíram problema: os falantes, sem a tutela de ninguém e sem leis
esdrúxulas, sempre souberam gerir a dinâmica do empréstimo lexical. Se adotam, num determinado momento, pelas mais diversas razões (estéticas, culturais,
comerciais, pragmáticas, identitárias, estilísticas etc.),
um número grande de palavras estrangeiras, só conservam, com o passar do tempo, empréstimos sentidos como realmente necessários, descartando simplesmente
todo o resto. É por isso que desse processo resulta sempre enriquecimento e nunca empobrecimento da língua (sobre esse tema vale a pena ler o esclarecedor texto
dos professores Pedro Garcez e Ana Zilles, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicado no livro
"O Direito à Fala", pela editora Insular/Florianópolis).
Apesar da cristalina lição dos fatos de hoje e de ontem,
preferiu-se criar, por razões que nos escapam, um cenário apocalíptico, querendo-nos fazer crer que estamos a
assistir a uma verdadeira descaracterização da língua
portuguesa; que o português está hoje seriamente
ameaçado; que a nossa língua passa por uma transformação sem precedentes históricos. Essas afirmações,
embora retumbantes, são, todas elas, rigorosamente
falsas, conforme demonstrou, em bela argumentação
(sim, porque o bom debate democrático pede afirmações sustentadas e bem informadas, e não apenas asseverações categóricas), o professor José Luiz Fiorin, da
USP, em texto publicado pela Associação de Linguística
Aplicada do Brasil em seu "Boletim 4": não há nenhum
indício de que o léxico do português esteja minimamente afetado por esses estrangeirismos; muito menos
estão afetadas a fonologia, a morfologia e a sintaxe da
língua.
O que ocorre é o contrário: qualquer palavra que vem
de fora, incorporada definitivamente ou não, é, de imediato, submetida às regras do português; e isso não depende de nenhuma especial sabedoria: é a regra do jogo
em qualquer língua. O que pode demorar é a sua adaptação gráfica, ou porque essa adaptação acaba por não
se justificar (vide a palavra "show"), ou porque é desnecessário entupir o formulário ortográfico com palavras
cedo abandonadas.
Mas tudo isso é, por razões nunca reveladas, solenemente ignorado pelos arautos do apocalipse. Preferem
crer (e tentam nos fazer crer), a partir de uma precária
leitura da história, que os dominadores simplesmente
impõem sua língua aos dominados. Estabelecem aí
uma conveniente relação simplista de causa e efeito, esquecendo que a língua é poderoso elemento de identidade e, por conseguinte e em geral, de resistência à dominação. Os exemplos se multiplicam: os árabes dominaram a Península Ibérica por 700 anos e nem por isso
os povos ibéricos falam árabe. Os otomanos submeteram a Grécia a um domínio de 300 anos e nem por isso
os gregos falam turco.
Modernamente, para ficar num só exemplo, a China
invadiu o Tibete, violentou a cultura do país e vem impondo sua lei com mão-de-ferro há 50 anos -e os tibetanos continuam corajosamente a falar sua língua. Não
é bom, portanto, simplificar o que é complexo.
Sem argumentos minimamente razoáveis e perdidos
em afirmações categóricas (e, por consequência, autoritárias), os arautos do apocalipse buscam, por fim, passar a imagem do bom-mocismo: querem só coibir abusos (esquecem de nos dizer quem serão os grandes iluminados que dirão quando o uso é abuso e com quais
critérios); querem só proteger os brasileiros de humilhações (como se humilhações não houvesse, e muito
piores, em límpido português).
Todos queremos um português vigoroso no país e,
por isso, defendemos a construção democrática de uma
nova política linguística que enfrente, de fato e não apenas com vazias generalidades, as questões maiúsculas.
Jamais, porém, ao custo de ignorar a complexa realidade linguística do país e, muito menos, pelo reforço acrítico ao nocivo discurso da língua única, pura e homogênea que tanto estrago já nos causou.
Carlos Alberto Faraco é professor de linguística da Universidade Federal do Paraná e co-autor, com Cristovão Tezza, de "Prática de Texto
para Estudantes Universitários" (Vozes).
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