São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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Ponto de fuga

O coração do passado

Foi uma época em que os artistas mais formidáveis se mobilizavam pelo futuro de um país do Terceiro Mundo: é muito difícil imaginar, hoje, uma situação semelhante

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No início dos anos 1970, o Chile faz um apelo aos maiores artistas contemporâneos. Pede doações para uma expressiva coleção.
A política de Allende [presidente de 1970 a 73], marcadamente social, é vista com expectativa e simpatia em todos os meios progressistas.
Os artistas respondem ao convite com entusiasmo. Seus dons não são restos de ateliê, nem tirados de fundos de gavetas. São verdadeiras grandes obras, escolhidas a dedo ou feitas especialmente para o novo museu.
Elas estão na mostra do Museu da Solidariedade Salvador Allende (na Galeria de Arte do Sesi, em SP, até 24/6). Emanoel Araujo, o curador, como faz sempre, reforça a vitalidade isolada pelo modo vigoroso de conceber o conjunto.
A qualidade de cada obra vibra. Estão dispostas graças a uma intuição que as liga entre si, além das categorias em que os críticos e historiadores gostam de enfeixá-las. Soberbas, todas.
Provocam sensações complexas e maravilhadas, feitas de verdade, de sinceridade. Diferentes entre si, unificam-se na energia expressiva. Vivem de maneira intensa porque são admiráveis e porque procedem de uma história excepcional.
É curioso perceber como os textos pintados nas paredes (triste hábito que se arraigou faz algumas décadas em quase todas as exposições), tentando classificar, definir correntes de maneira esforçada, meritória e indigesta, são atropelados pelos poderes da arte, magnificamente suscitados.

Vendavais
Boa parte das obras expostas no Sesi não carrega nenhum traço político ou social: as de Frank Stella, de Miró, de Vasarely, entre tantos. Outras, ao contrário, tensas em suas inquietações diante das injustiças coletivas, exprimem-se de modo convicto, sem nunca descer ao panfleto.
São carregadas de fervores: a Equipo Crónica [grupo espanhol de arte pop], o "Diário Colonial", de Valerio Adami, a "Espera", de Gonzalo Cienfuegos, as meditadas imagens de Gérard Fromanger, a sutileza perversa de Velikovic, estes dois últimos com grande impacto naqueles anos, hoje menos lembrados do que deveriam.
Nas salas do Sesi, porém, essa divisão aqui traçada entre "soltos" e "engajados" não convence. Porque as energias invisíveis, coletivas e sociais, levam de arrasto. Uma litografia de Vieira da Silva, com quadradinhos e traços, lembra os movimentos de uma multidão que manifesta; o sol e a lua de Calder falam de luzes e de sombras; os chifres e pontas de Wilfredo Lam são demoníacos; as manchas negras de Tàpies encerram angústias e desesperos.
Até os ângulos acerados de uma escultura metálica feita por Lygia Clark ou as manchas negras de Soulages parecem se contaminar pelos grandes anseios e combates coletivos.
Os negros se tornam mais negros do que são, e os vermelhos, mais vermelhos. É uma incandescência única.

Banzo
Foi uma época em que os mais formidáveis artistas do planeta mobilizavam-se com entusiasmo pelo futuro de um país do Terceiro Mundo, por um governo generoso e novo. Muito difícil imaginar, hoje, uma situação semelhante.

Passado
O museu durou pouco; vieram os militares, veio Pinochet; as obras se dispersaram. Foram reunidas agora, e o museu se refaz. Parece, no entanto, fechar-se sobre a pulsação do que foi. Não traz notícia de presente ou de futuro, não diz se seu destino é apenas conservar ou ampliar-se e atualizar-se.
Talvez lhe baste um culto do passado, um passado tecido por generosidades, por solidariedades que não existem mais.

jorgecoli@uol.com.br


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