São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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+ Cultura

Um santo homem

Em ópera encenada em Londres, Philip Glass idealiza a figura de Gandhi, que, por meio de filmes e biografia,tem sido objeto de sérias revisões na Índia

SALIL TRIPATHI

Em abril de 1930, Mohandas Gandhi desafiou o império britânico ao erguer um punhado de sal do mar Arábico em Dandi, no Gujarat. Ele tinha acabado de liderar uma marcha de 380 quilômetros em protesto contra o imposto do sal.
Foi uma das maiores manifestações de "satyagraha", ou "a força da verdade", a técnica não-violenta de desobediência civil de Gandhi.
Winston Churchill não achou graça. Em 1931, disse que era "alarmante ver Gandhi, um advogado rebelde de Middle Temple, posando como um faquir de um tipo bem conhecido no Oriente, galgando seminu as escadas do palácio do vice-rei, enquanto continuava organizando e conduzindo uma campanha desafiadora de desobediência civil, para falar em termos iguais com o representante do rei-imperador".
Hoje o mundo não considera insubordinadas as táticas de Gandhi; ele é citado principalmente em termos sagrados. Fui ver a produção da Ópera Nacional Inglesa de "Satyagraha" [encerrada em 1ø/5], de Philip Glass, no Coliseum, em Londres.
Neste ano ocorre o 25ø aniversário do filme "Gandhi", de Richard Attenborough, que ganhou oito Oscars. A Sony lançou um DVD duplo especial do filme e, num irônico viés pós-moderno, um redator do site "Slate" chamou Gandhi de "o Malcolm X hindustani". Em janeiro de 2007 será o 60ø aniversário do assassinato de Gandhi. No Ocidente, está em curso a canonização do pai fundador da Índia.
"Satyagraha" começa com a imagem do advogado Gandhi sendo empurrado para uma plataforma de estação ferroviária em Pietermaritzburg, porque tinha a cor errada para estar num vagão de primeira classe, apesar de ter uma passagem válida.
Segue-se sua metamorfose em uma força espiritual diante de insultos, prisões e surras. Em certo nível, a história não precisa de palavras; em outro, exige ser constantemente recontada em nossos tempos violentos.

Imagens icônicas
Despida de vocabulário e drama, ela faz a vida de Gandhi parecer um quadro de imagens icônicas, em que o homem pacífico luta com uma série de criaturas grotescas.
A ópera de Glass nunca foi encenada na Índia, mas o filme de Attenborough foi exibido lá e provocou uma forte reação .
Gandhianos veteranos, incluindo Usha Mehta, que na época supervisionava o Museu Gandhi, em Mani Bhavan, sua casa, em Mumbai, me disseram: "Não estamos preparados para dar nosso Gandhi a qualquer um".
Essa possessividade decorria da apreensão de que um estrangeiro pudesse transformar sua história em um espetáculo hollywoodiano. O filme foi bastante apreciado. Na Índia, um amigo me disse: "Finalmente sinto orgulho de ser indiano".
Mas também houve desconfiança. Quando entrevistei Salman Rushdie em 1983, ele comentou: "A deificação é uma doença indiana. Por que Attenborough tinha de fazer isso?".
Sua tese era de que, para salientar a grandeza de Gandhi, Attenborough fez seus contemporâneos, todos políticos formidáveis, parecerem figuras menores.
Rushdie observou que algumas seqüências, como os motins de Kolkata, ocorridos antes da Independência, foram mostradas como ocorrendo depois. Foi licença artística ou o filme pretendeu reescrever a história?
Preocupados com essas dessas questões, importantes diretores indianos reagiram fazendo seus próprios filmes históricos.
Em 1993, Ketan Mehta fez "Sardar, the Iron Man of India" [Sardar, o Homem de Ferro da Índia], uma biografia de Vallabhbhai Patel, o primeiro ministro do Interior da Índia, que alguns achavam que deveria ter sido primeiro-ministro. "Dr. Babasaheb Ambedkar" (1998), dirigido por Jabbar Patel, foi sobre o líder dos "dalits" -ou os "intocáveis" da Índia.

Filho alcoólatra
Em 1996, "The Making of the Mahatma" [A Criação do Mahatma], de Shyam Benegal, examinou os anos de formação política de Gandhi na África do Sul, e, mais tarde, seu "Netaji Subhas Chandra Bose - The Forgotten Hero" [O Herói Esquecido, 2004] se concentrou em um líder bengalês que escolheu meios violentos para libertar a Índia.
"O Herói Esquecido" salientou como era complexa a reação de Gandhi à violência. Quando o revolucionário Bhagat Singh foi mandado para a prisão pelos britânicos, Gandhi disse: "O caminho dele não é o meu caminho, mas eu inclino a cabeça diante de alguém que está pronto a dar a vida pela liberdade de seu povo".
Gandhi e Bose se afastaram, porém, quando Bose decidiu buscar o apoio de Hitler e dos japoneses durante a Segunda Guerra, Gandhi disse que seus caminhos eram fundamentalmente diferentes, embora seu destino (a liberdade da Índia) "possa parecer, mas só parecer, o mesmo".
Mas artistas, escritores e cineastas indianos não apenas ressuscitaram heróis alternativos como também projetaram Gandhi em uma luz menos lisonjeira.
Isso se deveu em parte à ascensão, nos anos 1990, do Partido Bharatiya Janata (BJP), movimento nacionalista hindu cujos seguidores atacam Gandhi por sua política de concessões aos muçulmanos.
Um escritor de Gujarat, Dinkar Joshi, escreveu o romance "Prakash no Padchayo" [Sombra de Luz], sobre a relação disfuncional de Gandhi com seu filho mais velho, Harilal, que se tornou um alcoólatra.
O escritor marathi Ajit Dalvi escreveu uma peça baseada nesse livro, "Mahatma versus Gandhi", que foi um sucesso em 1998. Mais tarde, um diretor marathi ressuscitou "Mi Nathuram Godse Boltoy" [Sou Eu, Nathuram Godse, Falando], de Pradeep Dalvi, que contém um monólogo do assassino de Gandhi.
Essa peça usou a morte de Gandhi para articular a visão nacionalista hindu quando o antigo consenso secularista estava declinando. Gandhi, apesar de sua natureza profundamente religiosa, tornou-se o porta-estandarte da visão secularista que o BJP mais tarde tentou desacreditar.

Vida ética
Nos últimos anos, porém, surgiu uma abordagem mais madura. Gandhi é cada vez mais apresentado como um ser humano, em vez de um santo ou um deus.
No ano passado, o delicioso sucesso de Bollywood "Lage Raho Munnabhai" [Vá em Frente, Munnabhai] era sobre um bandido de Mumbai que se apaixona por uma DJ de rádio. Para agradá-la, ele finge ser um especialista na filosofia gandhiana.
Durante duas horas de diversão, Munnabhai se transforma em um homem da paz, conquistando o coração dela e ajudando a Índia a ver Gandhi com novos olhos -como líder formidável que levou uma vida bastante ética, que não era um deus nem um pacificador, mas um ser humano.
Uma nova biografia de Gandhi publicada este ano, "Mohandas - A True Story of a Man" [Mohandas - Uma Verdadeira História de um Homem, ed. Viking, 760 págs., 25,99 libras, R$ 92,50], o humaniza ainda mais.
Escrito por seu neto Rajmohan, o livro explora alguns de seus fracassos e descreve sua vida pessoal, que os indianos costumam dourar. Mohandas Gandhi disse que sua vida era sua mensagem; ele certamente aprovaria.


Este texto saiu na "New Statesman".Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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