São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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10 COISAS PARA FAZER ANTES DE MORRER

DE VIRAR MÃE-DE-SANTO E APRENDER A ANDAR DE BICICLETA A LER AS OBRAS COMPLETAS DE DOSTOIÉVSKI, DE VER O CORINTHIANS CAMPEÃO E COMPOR UM MUSICAL COM MARX E ENGELS A NASCER DE NOVO, 12 PERSONALIDADES DAS ARTES, FILOSOFIA, PSICANÁLISE, CRÍTICA, LITERATURA, PUBLICIDADE, HISTÓRIA E TEATRO FAZEM A LISTA DE SEUS ÚLTIMOS DESEJOS

Maria Rita Kehl

Muitos anos antes de morrer já estou convencida de que finjo que a vida é literatura. Não vou mudar isso justamente antes de morrer. Quem sabe, no máximo, melhorar o enredo. E transitar melhor entre os gêneros.
1. Viver a vida de uma outra mulher, muito diferente de mim. Uma mulher da roça, como eu gostava de brincar na infância. Das que acordam antes do sol, trabalham na horta, dormem ao escurecer, sem luz e sem televisão. Fogão de lenha, bichos no quintal, solidão sem abandono. A mulher que nunca fui na roça que não há.
2. Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
3. Gravar um CD cantando, sozinha, as músicas que mais gosto de cantar. Ou, radicalizando, mudar de profissão. Virar cantora. De boate, se é que ainda existem.
4. Ficar amiga do Chico Buarque. Só amiga. Andar a pé pelo Rio conversando com ele, horas a fio. Recordar letras de música, sambas antigos. Contar e ouvir coisas da vida.
5. Conhecer um compositor (não precisa ser o Chico Buarque) que me peça letras para as músicas dele. Virar parceira, ouvir nossos sambas no rádio.
6. Virar artista plástica. Trocar a noite pelo dia em um ateliê enorme, brincando com os materiais, com as tintas, com o peso e a densidade da matéria. Encontrar o estranho silêncio da matéria. Desintoxicar a mente do excesso de palavras.
7. Virar escritora de ficção. Acordar todos os dias com saudades de meus personagens, ansiosa para entrar mais uma vez na vida deles.
8. Queimar -isso é urgente- todos os meus diários, dos 15 aos 45 anos. Uma fogueira e tanto.
9. Ir a um pai ou mãe-de-santo para me iniciar no candomblé; virar mãe-de-santo também, receber entidades, aprender a jogar búzios. Gostaria de ter acesso à experiência do inconsciente pré-freudiano -o inconsciente revelado a contrapelo da psicanálise.
10. Saber como é a morte. Ficar acordada até o fim. Despedir-me de tudo. Dizer a meus filhos, como o Coelho, de John Updike: "Não é tão mau assim".


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.


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