São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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A escada atômica

A o fornecer assinaturas espectrais únicas para cada elemento, o método de Moseley permitia que qualquer brecha fosse vista de imediato e lhe permitiu "fazer a chamada dos elementos" -afirmar com confiança absoluta quantos existiam entre o hidrogênio e o urânio, que ordem deveriam ocupar e se ainda faltava algum para ser descoberto, mesmo entre os irritantes elementos terrosos raros.
Bohr sugeriu que havia uma sequência de configurações eletrônicas em cada período: um único elétron na casca externa dos elementos do grupo 1, dois elétrons no grupo 2 e assim por diante, até o máximo de oito elétrons nas cascas dos gases nobres. Ele acreditava que a grande estabilidade química desses gases podia ser interpretada como sendo devida à presença de uma casca "fechada", muito estável, de oito elétrons.
A valência e a reatividade química, os fatores que definiam os grupos de Mendeleiev, guardavam correlação exata com o número de elétrons de valência numa casca externa, de valência: com o máximo de oito elétrons de valência, o átomo era quimicamente inerte; com mais ou com menos, tenderia a ser mais reativo. Assim, faltava aos halogênios, que vêm logo antes dos gases nobres em cada período, um elétron em suas cascas externas, fato que os tornava ávidos por agarrar um elétron (ou seja, tornar-se íons negativos), e, ao fazê-lo, alcançarem uma configuração de gás nobre. Inversamente, os metais alcalinos, com um único elétron em suas cascas de valência, queriam livrar-se dele para se tornarem íons positivos, estabilizando-se à sua própria maneira.
Bohr propôs a hipótese de que o preenchimento dessas cascas era determinado por seus níveis energéticos, sendo que os elétrons ocupavam primeiro a órbita de mais baixa energia disponível.
Enquanto os elementos dos três primeiros períodos podiam ser definidos nesses termos com precisão, era preciso aduzir considerações adicionais no caso dos elementos de transição e terrosos raros, que formavam séries de elementos metálicos mais ou menos semelhantes interpostos nos períodos posteriores. Bohr postulou que esses elementos "atípicos" surgiam em função da presença de órbitas ou cascas internas nos átomos, a certa distância da casca externa, controladora da valência. O gradativo preenchimento dessas órbitas internas (com 1 a 10 elétrons, no caso dos elementos de transição, e 1 a 14, no caso dos elementos terrosos raros) explicava as propriedades especiais desses elementos -sua densidade e dureza, sua susceptibilidade magnética, seus sais muitas vezes vividamente coloridos.
A ordenação dessas cascas e de suas ocupações permitiu a Bohr criar uma tabela periódica eletrônica, na qual o posicionamento dos elementos podia ser visto, de maneira transparente, como consequência direta e sistemática de sua estrutura eletrônica. E ela mostrava, de maneira luminosa, o significado dos números misteriosos que governavam a tabela periódica -números estes que agora podiam ser entendidos como o número de elétrons em cada casca: 2, 8 (2'6), 8 (2'6), 18 (2'6'10), 18 (2'6'10), 32 (2'6'10'14).
Com isso, Bohr e Moseley confirmaram a tabela periódica, ancorando-a em termos de número atômico e configuração eletrônica. No entanto, essa tabela periódica eletrônica é basicamente idêntica às tabelas periódicas do século 19, postuladas sobre bases puramente químicas. Moseley e Bohr trabalharam de dentro para fora, com o mundo invisível dos átomos químicos, e Mendeleiev e seus contemporâneos trabalharam de fora para dentro, com as propriedades visíveis e manifestas dos elementos, mas acabaram chegando ao mesmo lugar. É nisso que consiste a beleza da tabela periódica: o fato de que ela olha tanto para fora quanto para dentro, unindo a química clássica e a física quântica numa síntese mágica.
Dadas as órbitas de diferentes níveis energéticos postuladas por Bohr, seria possível, em princípio, montar uma tabela periódica inteira adicionando-se um elétron a cada vez, ascendendo os degraus de uma escada atômica, do hélio ao urânio. Sobre isso, Bohr falou do princípio da construção, ou "aufbau", e chegou a imaginar centenas e milhares de elementos além dos que já são conhecidos. E foi por meio desse tipo de construção que pudemos criar novos elementos ausentes na natureza, tais como os 20 elementos (93-112) que hoje vêm depois do urânio na tabela periódica.
Esses átomos mais pesados não desobedecem em nada à regularidade da tabela periódica. (Assim, percebeu-se que uma nova série de 14 elementos, os chamados actinídeos, com números atômicos de 90 a 103 -a maioria dos quais foi descoberta em Berkeley por Glenn Seaborg e seus colegas- é análoga aos 14 elementos terrosos raros, e é seguida por uma outra série de elementos de transição, a começar pelo número 104, o ruterfórdio.)
Seaborg demonstrou que, em princípio, é possível calcular a tabela periódica até além do elemento 200 e prever algumas das propriedades de tais elementos. (Os elementos de números mais altos parecem tornar-se cada vez mais instáveis, e o elemento 112 tem sido inacreditavelmente difícil de criar; só se obtém um átomo a cada vez, e este desaparece em alguns milionésimos de segundo.) Mas, ao que tudo indica, o princípio da periodicidade não tem limites perceptíveis, e isso, como todas as outras confirmações obtidas neste século, teria dado enorme prazer a Mendeleiev.
Já se passaram mais de 50 anos desde que vi a tabela periódica pela primeira vez, ainda menino, e o maravilhamento que ela suscita em mim nunca diminuiu. Aos 130 anos de idade, ainda é o ícone da química; continua a ser a base pela qual se orientam as mais diversas pesquisas químicas, a sugerir novas sínteses, a permitir a previsão de propriedades de materiais nunca antes vistos. É um maravilhoso mapa da geografia total dos elementos.
As paredes de minha cozinha são forradas de tabelas periódicas de todos os tipos e tamanhos -oblongas, espiraladas, piramidais, em forma de cata-ventos. Uma de minhas favoritas fica na mesa da cozinha. É uma tabela periódica redonda, feita de madeira, que posso girar como a caixa cilíndrica giratória com orações gravadas que é usada pelos tibetanos, enxergando aspectos diferentes dela a cada vez. Carrego duas tabelas periódicas minúsculas em minha carteira -uma mendeleieviana clássica (as letras antigas parecem fazê-lo reviver) e uma linda tabela colorida e espiralada que mostra os elementos e seus números atômicos como uma grande nebulosa em espiral, girando, depois do urânio, em direção a um infinito desconhecido.


Tradução de Clara Allain


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