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HISTÓRIA
O historiador Carlo Ginzburg fala sobre sua formação intelectual e defende que se faça hoje história política
Descobertas de um espectador
MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
especial para a Folha
Poucos historiadores hoje são
tão originais como Carlo Ginzburg, poucos escrevem tão bem
quanto ele e ainda menos compartilham de sua notável amplitude
de interesses. Ginzburg, que há
dez anos ensina na Universidade
da Califórnia e divide seu ano entre Los Angeles (EUA) e Bolonha
(Itália), nasceu em 1939 numa família judia estabelecida em Torino. Seu pai, Leone Ginzburg (russo de Odessa que emigrou ainda
criança para a Itália), foi professor
de literatura russa e morreu numa
prisão fascista romana quando
Carlo tinha cinco anos de idade;
enquanto sua mãe, Natalia Ginzburg, se tornou uma das mais famosas e respeitadas escritoras italianas deste século.
Desde cedo, a originalidade da
produção intelectual de Ginzburg
deixou a comunidade acadêmica
um tanto atônita. "Um intelectual
para se ficar de olho!", como alertou um resenhista americano no
início dos anos 70. De fato, seu
primeiro livro, publicado quando
tinha 27 anos, foi um trabalho polêmico e inovador.
O ponto de partida desse estudo
foi a desconcertante resposta dada
ao tribunal da Inquisição por um
grupo de camponeses italianos
acusados de feitiçaria: qualificando-se de "benandanti" ("Andarilhos do Bem", 1966, Companhia
das Letras), eles se diziam benfeitores que combatiam as bruxas
durante a noite armados de talos
de erva doce, enquanto estas empunhavam espigas de milho. Essa
resposta inesperada, que contradizia as expectativas dos inquisidores, foi a base de um trabalho
que deu uma notável contribuição
aos estudos sobre a feitiçaria.
No entanto, foi "O Queijo e os
Vermes" (1976, Companhia das
Letras), o estudo da cosmologia de
um moleiro do século 16 (também
interrogado pela Inquisição sob a
acusação de heresia), que tornou
Ginzburg internacionalmente famoso. Desde então, a despeito de
seu horror por etiquetas, ele ficou
conhecido como um dos líderes da
chamada "micro-história", termo que se tornou moda após ter
sido usado como título de uma série de livros editados por Ginzburg
e Giovanni Levi.
Seus outros livros -como o que
estuda a história da idéia do sabá
das bruxas ao longo de 2.000 anos
no mundo euro-asiático ("História Noturna", 1989, Companhia
das Letras) e o que reflete sobre
um capítulo trágico da história recente da Justiça italiana e sobre as
relações entre o papel do juiz e o
do historiador ("Il Giudice e lo
Storico", 1991)- são reveladores
da diversidade de temas e abordagens com que Ginzburg trabalha e
que o tornam um historiador difícil de classificar, coisa que, aliás,
muito o agrada.
Além de livros, Ginzburg tem
publicado grande parte do seu trabalho sob a forma de ensaios. O
mais famoso deles, traduzido em
12 línguas, tem o intrigante título
de "Spie" (Pistas) e fornece, ele
próprio, uma pista para o entendimento de toda a obra de Ginzburg.
Nesse brilhante ensaio, ele trata de
enfatizar a importância do detalhe
aparentemente sem importância,
de uma frase ou gesto aparentemente trivial, que leva o investigador -quer seja um detetive como
Sherlock Holmes, um psicanalista
como Freud ou um historiador como o próprio Ginzburg- a fazer
importantes descobertas.
É com esse especial talento detetivesco que, partindo quase sempre de detalhes aparentemente triviais, ele confronta com elegância,
verve e entusiasmo temas e áreas
de conhecimento sobre os quais
inicialmente nada sabe. Como ele
próprio diz, quando está diante de
algo que desconhece totalmente,
mas sobre o que está a ponto de
aprender, sente intensamente o
que chama de "a euforia da ignorância". Deve ser, como para um
esquiador, o prazer de esquiar na
neve fresca, afirma.
Foi em seu apartamento em Bolonha que Ginzburg recebeu a Folha. Extremamente simpático, espontâneo e expressivo, Ginzburg
discorreu longamente sobre sua
trajetória e opções intelectuais,
sua atitude diante da fama, sua visão sobre o papel do historiador,
sua opinião sobre Foucault, Borges e o pós-modernismo.
Folha - Quais os aspectos de sua
origem e formação considera cruciais para o entendimento de suas
idéias e interesses?
Carlo Ginzburg - São muitos,
mas devo dizer de antemão que,
como historiador, sou um pouco
cético sobre as explicações teleológicas que vêem os indivíduos como se fossem uma linha reta que
vai, sem desvios, da infância à maturidade. Revendo minha vida,
poderia me perguntar: quais foram as escolhas cruciais? De certo
modo, a vida é como um jogo de
xadrez, em que as jogadas cruciais
já ocorreram bem antes do xeque-mate.
Assim, quando seleciono um
momento em que penso ter feito
uma escolha decisiva, é possível
perceber que já havia limitações,
constrangimentos. Minha opção
pela história ilustra bem o que
quero dizer. Quando era adolescente, queria me tornar romancista como minha mãe, mas logo desisti ao perceber que seria um mau
romancista. No entanto, meu envolvimento com a arte da escrita é
algo que ainda faz parte de mim.
Diria que é como um dique ou um
fosso: quando se bloqueia a água,
ela se desvia com força para uma
direção vizinha.
Assim, minha paixão pela ficção
se tornou parte de minha paixão
pela escrita da história. O mesmo
aconteceu com o desejo de me tornar pintor, em que os elementos
que foram bloqueados se transformaram em um novo impulso. Tão
logo desisti da idéia, por perceber
que não passaria de um pintor medíocre, a paixão pela pintura também se tornou parte de mim, e até
pensei em me dedicar à história da
arte, o que acabei por fazer mais
tarde.
Folha - O que o despertou para o
estudo do passado?
Ginzburg - Comecei a me desviar da leitura de romances quando estava no fim do liceu, lendo
"A História da Europa no Século
19", de Benedetto Croce, livro de
que, na verdade, não gostei. Logo
depois, decidido a prestar concurso para a concorrida Scuola Normale de Pisa, passei o verão lendo
autores que ainda são cruciais para
o meu trabalho, como Erich Auerbach, Leo Spitzer, Gianfranco
Contini, ou seja, crítica literária
baseada em detalhes, em leitura
vagarosa e meticulosa de passagens de livros e poemas extensos.
Quando fui aceito em Pisa, comecei me dedicando à crítica literária, mas logo ocorreu o encontro
que foi decisivo para mim: conheci
Delio Cantimori durante uma semana de visita à Pisa, onde ele deu
um seminário sobre "Weltgeschichtliche Betrachtungen"
(Considerações sobre a História
Universal), de Jakob Burckhardt.
Essa foi uma experiência diferente
e crucial para mim. De surpresa,
ele perguntou quem de nós sabia
ler alemão; e então nos mandou
comparar o texto de Burckhardt
com traduções em várias línguas.
Após uma semana havíamos lido
umas 12 linhas. Isso foi algo marcante, que ainda hoje me inspira.
Recentemente comecei um seminário na Universidade da Califórnia dizendo aos meus alunos: "Na
Itália há um novo movimento chamado "Slow Food", em oposição à
"Fast Food". Meu seminário será
em "Slow Reading" (leitura lenta)".
Outro historiador proeminente e
fascinante que conheci nessa época, por relações familiares, foi
Franco Venturi, amigo de meu
pai... Foi nessa ocasião que me defrontei novamente com uma escolha que, retrospectivamente, se revelaria crucial em minha vida intelectual: trabalhar com Venturi, um
especialista do século 18, ou com
Cantimori, um especialista nos heréticos do Renascimento? Os dois
eram diferentes em todos os aspectos, inclusive o político.
O primeiro havia desempenhado
um grande papel na resistência antifascista (quando conhecera meu
pai) e se tornara também profundamente anticomunista. Já Cantimori, havia sido fascista, para depois se tornar comunista. E eu escolhi trabalhar com Cantimori!
Hoje reconheço que o que me
atraiu foi o que nele havia de muito
complexo, de não-familiar, de distante, de dolorosamente distante
de mim. Sim, acredito que aprendemos mais com o que é distante.
Ao não escolher Venturi estava,
inconscientemente, reagindo contra uma fidelidade estreita ao antifascismo, ao que era, em suma, o
âmago de minha formação. Com
Cantimori (e com as reflexões de
Gramsci sobre a vitória do fascismo) aprendi que as coisas não são
tão simples como parecem!
Folha - Quem são seus principais
interlocutores?
Ginzburg - Meus pais são, de
certo modo, uma dupla à parte.
Meu pai é uma presença invisível,
que sinto fortemente, mas com o
qual não discuto meu trabalho. Já
minha mãe, que foi uma figura
crucial em minha formação geral,
lia e comentava muito do que escrevia e sinto que me dirijo a ela
quando escrevo para uma maior
audiência, não profissional.
O ato de escrever, no meu entender, é algo que está profundamente relacionado ao ato de comunicar algo a alguém, o que pode parecer óbvio, mas não é, já que há
muita coisa escrita (não só por historiadores) que parece ignorar
completamente o público, como
se a escrita fosse por si só suficiente. Mas, se por um lado, a interação com pessoas é algo importante, por outro lado, acho que muita
comunicação é também um mal,
causa uma espécie de entropia e,
num certo sentido, mata a comunicação.
Senti isso de perto quando me vi
transformado, mais ou menos da
noite para o dia, em historiador da
moda. Até meados dos anos 70 eu
tinha a impressão de estar totalmente isolado, envolvido em
questões com que nenhum historiador se importava -meu primeiro livro, "Os Andarilhos do
Bem" (1966), não teve audiência-, e há, sem dúvida, algo muito bom em se estar isolado. Mas,
quando escrevi "O Queijo e os
Vermes" (1976), que teve sucesso
imediato, percebi que a audiência
já existia. O mesmo aconteceu com
a publicação de meu ensaio sobre
"pistas" ("Spie - Radici di un Paradigma Scientifico"), publicado
em 1978. Durante duas semanas
fui inundado com telefonemas de
toda parte da Itália, convidando-me para falar sobre o assunto
em Catânia, Milão, e assim por
diante. Lembro-me de pensar que
corria sério risco de perder o que
há de bom no isolamento e de me
ver engolido por uma espécie de
fluxo de comunicação.
Folha - Seu trabalho revela, algumas vezes, um mundo em que o
entrelaçamento de textos, traduções e tradições é muito forte, algo
que lembra os contos de Jorge Luis
Borges. O senhor se inspirou, em
algum grau, nesse autor?
Ginzburg - Não, penso que não.
Devo confessar que li Borges no
início dos anos 60, gostei bastante
e acho alguns de seus contos muito
poderosos. Todavia o considero
um escritor superestimado em demasia. No meu entender, ele não é
um autor de primeira classe, mas
um excelente escritor de segunda
classe. Mas, dito isso, é possível
que eu tenha sido influenciado por
Borges - sem saber e sem ser agora capaz de reconhecer- via Italo
Calvino, um escritor e um homem
extraordinário com quem muito
aprendi e que foi muito influenciado por Borges, especialmente em
suas últimas obras.
Um autor é, no meu entender,
alguém capaz de nos tornar conscientes de certas dimensões de realidade. Há, por assim dizer, algo de
kafkiano na realidade, especialmente na do século 20, que Kafka
foi capaz de nos revelar. Esse lado
cognitivo da literatura me é muito
importante, e aprendi isso com
minha mãe e com Calvino.
Em meu último livro, "Occhiacci di Legno", há um ensaio intitulado "Ecce", em que desenvolvo
um tópico totalmente desconhecido até então por mim. Baseando-me em pesquisas prévias de
outros autores e as desenvolvendo
em certas direções, comecei a refletir sobre um fato que os estudiosos conhecem, mas sobre o qual
não se fala: o fato de Jesus ter nascido de uma virgem ser o resultado
de uma profecia que foi mediada
por um erro de tradução. Se pensarmos nos santuários em todo o
mundo, no culto à Virgem Maria,
em tudo, enfim, que decorreu daquela profecia, vemos que, paradoxalmente, um erro de tradução
pode ser uma força propulsora e
gerar a realidade. Poder-se-ia dizer: ora, isso é Borges! Na verdade,
não é Borges, isso é a realidade,
mas certamente ele pode nos ajudar a ver isso.
Folha - O senhor já confessou
que gosta de estar na periferia,
não só da profissão de historiador,
mas na periferia de tudo. Muitas
vezes, como diz, vai para o seu escritório encontrar-se com alunos
como se estivesse indo ao cinema.
Diria, então, que procura se relacionar com o mundo como se fosse
um espectador?
Ginzburg - O advogado do diabo que há em mim já me fez essa
pergunta. Percebo as virtudes e
potencialidades intelectuais de se
olhar as coisas à distância, como
um estranho. E, de certo modo,
desde que passei a viver seis meses
em Los Angeles e seis meses em
Bolonha, dupliquei minhas possibilidades de ser um espectador. No
entanto, ao lado de vantagens vejo
também perigos nessa posição. E,
estranhamente, devo dizer que
consegui contrabalançar esses perigos pouco depois de dividir meu
ano entre os Estados Unidos e a
Itália, quando me envolvi no julgamento de meu amigo Adriano
Sofri, condenado à prisão por um
crime que não cometeu.
Essa foi a primeira vez que me vi
pessoalmente comprometido, enquanto historiador, com questões
atuais, percebendo que o que escrevesse poderia fazer diferença, o
que infelizmente não ocorreu.
Mas, se reconheço que há perigo
em se adotar a posição de um permanente espectador, por outro,
sou cético também quanto a idéia
de ser um historiador engajado.
Penso que escolher tópicos só porque são os de "nossa época", porque dizem respeito ao "hoje",
significa ter uma visão míope e
provinciana da história; mesmo
porque o que parece totalmente
distante da atualidade pode se tornar, repentinamente, o seu foco.
Folha - John Elliot criticou "O
Queijo e os Vermes" por ter encorajado a atomização do passado.
Como responderia a essa crítica?.
Ginzburg - Sou grato a Elliot
por ter chamado atenção para meu
trabalho e acredito que ele não era
tanto contra o livro em si, mas
contra a possibilidade de a abordagem que utilizei se transformar na
única abordagem da história. Sei
que desempenhei, ao lado de outros, o papel de abre-alas a um tipo
de trabalho que busca trazer para o
centro da história fenômenos até
então considerados periféricos,
como, por exemplo, a feitiçaria a
partir da visão dos feiticeiros e o
mundo visto por um moleiro.
Mas, por outro lado, muito cedo
percebi que aquilo não era o suficiente. Em outras palavras, tendo a
batalha sido ganha, o problema
era evitar os clichês. Daí não ter argumentado contra Elliot, pois, de
certo modo, concordo com ele. A
idéia de se opor a chamada micro-história à macro-história não
faz sentido, assim como também é
absurda a idéia de se opor história
social à história política. Na verdade, há alguns anos alguém me perguntou qual era a área mais promissora da história. E eu respondi:
a política, pois acredito que se deve
escrever história política, se bem
que de um novo modo.
Folha - Está querendo dizer que a
chamada "história vista de baixo"
foi longe demais?
Ginzburg - Sim, pois os arquivos estão cheios de histórias de
pessoas desconhecidas. Então, a
questão que se coloca, e que exige
muita reflexão, é: por que esta história e não outra, por que este documento e não outro? Tenho muito medo de um movimento intelectual se transformar num slogan,
pois há sempre o perigo de auto-complacência intelectual, ou
seja, de se acreditar no caminho
correto, verdadeiro. Não me agrada, em absoluto, a idéia de transformar a história vista de baixo
num tipo de slogan, pois, se a idéia
é substituir uma abordagem ortodoxa por outra, tudo se torna totalmente desinteressante.
Essa é a razão pela qual tenho
trabalhado sobre temas variados e
a partir de pressupostos variados.
Diria que minha própria expectativa consiste em desapontar todas
as possíveis expectativas geradas
pelos meus trabalhos; caso contrário, eu cairia num tipo de clichê e
seria transformado num padre,
papel que detesto. Não gosto de
pregar, e especialmente para pessoas já convertidas. E nada está
mais distante de mim do que idéia
de ter uma audiência composta de
jovens estudantes de esquerda
apaixonados pela história vista de
baixo e aguardando de mim uma
mensagem nessa direção.
Folha - O senhor se refere ao
seu gosto pelo "detalhe de contador de história" e é muito elogiado por seu estilo narrativo.
Diria que seu talento para a "narração compulsiva" está relacionado ao romancista que queria
ter sido? Qual é a relação entre
os historiadores e romancistas?
Ginzburg - Penso que sim,
mas, por outro lado, isso mostra
como os constrangimentos não
trabalham em uma só direção.
Você pode se transformar tanto
num ateu quanto num santo por
ser filho de um padre. O fato de
ser filho de Natalia Ginzburg poderia, pois, funcionar tanto como um impulso positivo quanto
como um impulso para a resistência. Quanto à narrativa, devo
dizer que a noção de narrativa
em história tem se moldado nos
romances do século 19, mas, se
pensarmos em romances do século 20, como os de Proust ou
Joyce, fica evidente que a distinção entre ficção e não-ficção se
torna muito pouco clara. A esse
respeito, uma idéia que muito
me atrai é a da relação entre história e ficção como envolvendo
competição e desafios mútuos. A
história tem sido um desafio para romancistas como Balzac, por
exemplo, que reagiu dizendo:
"Serei o historiador do século
19!". E então, depois dele, temos
Stendhal, Flaubert e outros,
criando desafios para os historiadores. A relação entre história
e ficção envolve, pois, aprendizado mútuo, com os gêneros se
desafiando e respondendo um
ao desafio do outro.
Folha - O senhor já sugeriu que
não se deve esperar do estudo
passado a solução para os nossos problemas. De que modo, no
seu entender, o estudo do passado é relevante para nós?
Ginzburg - A história pode
nos despertar para a percepção
de culturas diferentes, para a
idéia de que as pessoas podem
ser diferentes e, com isso, contribuir para a ampliação das fronteiras de nossa imaginação. Disso decorreria uma atitude menos
provinciana em relação ao passado e ao presente. Dito isso, devo lembrar, no entanto, que é
praticamente impossível prever
a reação das pessoas e que a
"química intelectual" envolvida na recepção da leitura é extremamente complicada. Posso
ilustrar isso com a reação à minha própria obra. "Os Andarilhos do Bem" ("I Benandanti",
em italiano), por exemplo, se
tornou parte da redescoberta da
identidade regional de Friuli e
soube que hoje há agora, lá, uma
banda de rock chamada Benandanti Electronics!
Folha - O senhor parece não
apreciar muito o trabalho de Michel Foucault e já o criticou como populista. Poderia explicitar
melhor suas reservas a ele?
Ginzburg - Devo dizer inicialmente que o considero muito
mais interessante do que seus seguidores. O que é especialmente
desinteressante nestes é que eles
tomam as metáforas de Foucault
como explicações, o que é um
absurdo. E diria ainda mais: o
próprio Foucault antes das metáforas é muito mais interessante. Fiquei surpreso com um volume publicado há uns dois anos
com o resumo das aulas que ele
deu no Collège de France. Pois
elas revelam um Foucault muito
melhor, sem todas aquelas metáforas, aquela ostentação.
O que quero dizer é que havia
vários Foucaults, e um deles era
muito, muito brilhante, mas, no
meu entender, pouco original.
Sob esse ponto de vista, diria que
Foucault é um autor extremamente superestimado, pois em
grande parte ele nada mais é do
que uma nota de rodapé a
Nietzsche. O que, afinal, não é
grave, se considerarmos que há
tão poucos pensadores realmente originais. É inegável, no entanto, que ele descobriu novos
tópicos, novas áreas do conhecimento e teve também algumas
idéias interessantes, como, por
exemplo, a idéia da microfísica
do poder -outra metáfora-,
que poderia, no entanto, se tornar problema de pesquisa, pois
há muito a ser feito nessa direção; o que infelizmente nem
Foucault e muito menos seus seguidores fizeram.
Pessoalmente ele era extremamente agressivo -de fato, a pessoa mais agressiva que jamais
encontrei- e egocêntrico de um
modo maníaco, o que lhe permitia vender sua própria imagem
com grande eficiência. Lembro-me de estar uma vez num
café de Paris conversando com
E. P. Thompson e começamos a
falar sobre Foucault. Foi quando
Thompson disse algo que pensei
ter ouvido errado: "Foucault é
um charlatão!". Pedi que repetisse, tal minha surpresa, e era isso mesmo. Concordo que certamente havia muito de charlatão
em Foucault, mas não só. Muito
de sua obra -a da retórica vazia- vai realmente desaparecer,
mas há também coisas interessantes que merecem ser preservadas. Seria, pois, extremamente importante se alguém isento
se empenhasse em estudar Foucault seriamente, começando
com esses resumos de sua aulas.
Muito lixo já foi escrito sobre ele,
e todos os elogios exacerbados
feitos por seus seguidores só
contribuíram para depreciá-lo.
Está na hora de alguém livrar
Foucault dessa tola idolatria.
Maria Lúcia G. Pallares-Burke é professora
de história da educação da USP, autora de "The
Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural"
(ed. Hucitec).
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