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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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Oralidade nos bancos da academia

Peter Burke

Universidades são geralmente associadas a livros e ao ato de escrever, seja à mão, datilografado ou digitado no computador. De qualquer forma, as universidades, assim como o mundo do aprendizado em geral -institutos de pesquisa, grupos de estudo, conferências acadêmicas-, são lugares de intensa oralidade, onde ocorrem palestras, seminários, debates, comitês, conversas durante o cafezinho ou o almoço, encontros nos corredores. Por isso, foi excelente a idéia da francesa Françoise Waquet, autora de um livro muito aclamado sobre a história do latim ["O Latim ou o Império de um Signo"], de pesquisar o lugar do discurso no mundo do aprendizado no período entre o século 16 e o presente. Seu estudo, "Parler comme un Livre" ("Falar como um Livro", ed. Albin Michel), é uma leitura fascinante. Os historiadores tenderam a associar o modo de comunicação oral às sociedades primitivas e à cultura popular. Os intelectuais deixaram de estudar as suas próprias formas de falar -ou o que pode ser chamado de "oralidade acadêmica". Tal estudo pode ter um valor prático, bem como um interesse histórico. Ter em mente o fato de que as palestras foram inventadas na universidade medieval porque os livros, escritos em pergaminho, eram extremamente caros pode incentivar os professores a pensar nos objetivos de suas palestras hoje, na era do xerox e da internet.

Guias
Pode-se ter acreditado que o mundo oral do passado tivesse desaparecido para sempre sem deixar nenhum vestígio, pelo menos antes do advento do gravador, mas é possível reconstruir essa oralidade ou partes dela com base em cartas, anotações de estudantes, estatutos universitários, estudos biográficos, descrições feitas por viajantes e introduções ao mundo acadêmico que vão desde a obra "Polyhistor" (1688), do estudioso alemão Daniel Morhof, até publicações recentes, tais como o "Guia do Cientista para Apresentações de Cartazes" (1999). Há relativamente pouco a dizer a respeito dos séculos anteriores a 1800 pelo fato de que as fontes, com raras exceções, fornecem poucas informações sobre o estilo oral das palestras, dos debates, ou das sessões de academias eruditas -apesar de uma carta maravilhosamente vívida escrita em 1766 por um italiano que visitou a Academia Francesa de Ciências descrever os acadêmicos lendo seus relatórios em voz alta "com uma voz nasal e irritante" enquanto a audiência dormia. Considerando que os sermões geralmente duravam duas horas ou mais naquele tempo, aparentemente sem cansar a audiência ou parte dela, seria interessante saber se os palestrantes das universidades poderiam esperar a mesma atenção por parte de seus alunos. Provavelmente, não. Foi somente no século 19 que as fontes passaram a fornecer regularmente o tipo de detalhes que estamos procurando. Eles nos permitem distinguir entre uma variedade de gêneros orais praticados em locais acadêmicos, incluindo o seminário, inventado na Alemanha no século 19, o congresso internacional, que foi criado no final do século 19 e cuja amplitude e frequência se tornaram cada vez maiores desde então; a pequena conferência, idealizada nos anos 1930 como uma solução para a falta de comunicação nos grandes congressos, e a chamada "sessão cartaz", uma invenção da década de 1970 em que um aluno ou um erudito fica em pé ao lado de um cartaz que resume sua pesquisa, esperando encontrar pessoas com interesses semelhantes e responder às perguntas delas. Outro gênero acadêmico, mais ou menos restrito a Oxford e Cambridge, é o "tutorial", uma sessão de uma hora semanal em que um ou dois alunos, confortavelmente sentados em poltronas ou sofás, discutem um tema sobre o qual os estudantes escreveram pequenas dissertações. Waquet descreve e analisa esses diferentes gêneros orais atentando para os diferentes estilos de desempenho e as diferentes formas de sociabilidade. Ela cita, por exemplo, a frequência na qual os trabalhadores em um laboratório ou os participantes de uma conferência distinguem entre ocasiões formais e informais, dizendo que o aprendizado é maior a partir de conversas casuais e espontâneas travadas nos corredores ou durante o cafezinho. Ela também faz a distinção entre a palestra mais hierárquica, com o orador em pé em uma tribuna (ou sentado em uma espécie de trono, como fiquei certa vez na Universidade de Catânia), e os seminários mais igualitários, com mais espaço para o debate. Por essa razão o antropólogo francês Marcel Mauss se recusou a falar em um anfiteatro, preferindo uma sala onde pudesse sentar-se ao redor de uma mesa com os estudantes, enquanto a antropóloga americana Margaret Mead recomendou o uso de uma mesa redonda, para criar um clima que incentivasse o debate.

Expulso por desatenção
Há ainda muito a ser dito sobre os estilos individuais de desempenho oral, analisados por Waquet no caso do grande historiador francês Jules Michelet, que gostava de pensar em voz alta em vez de apresentar um discurso totalmente preparado. Em Oxford, onde estudei, o filósofo Gilbert Ryle falava devagar, mas não era para nos ajudar a tomar notas. Ao contrário, ele nos disse que, se pegasse alguém tomando notas, iria expulsá-lo "por desatenção". Ele queria que a audiência se concentrasse no desenvolvimento de seu pensamento. Sir Isaiah Berlin, por sua vez, não proibia as anotações. Ele não precisava fazê-lo, uma vez que falava tão rápido que era difícil acompanhar o que ele estava dizendo e praticamente impossível anotar qualquer coisa. Eu costumava sonhar em gravar as palestras e ouvir as fitas na metade da velocidade. Outro tema que merece ser analisado mais extensamente é o estilo ou estilos das provas orais, ainda conhecidas na Inglaterra como "vivas", porque o candidato é avaliado "pela viva voz". Na Inglaterra, essa prova oral é meramente um complemento para os trabalhos escritos. Na Rússia do século 19, por outro lado, era a única forma de avaliação. Tolstói fez um relato vívido de uma prova de história sob esse sistema em sua autobiografia ficcional -ou ficção autobiográfica-, "Juventude", descrevendo os professores sentados a uma mesa "embaralhando as tiras de papel com as perguntas como se fossem cartas de baralho" e chamando um por um os candidatos. A diferença entre estilos nacionais de oralidade erudita é outro tema que pode ser futuramente abordado com detalhes e profundidade. Existem as culturas nas quais é comum ler em voz alta em um tom baixo e monocórdio a partir de um texto escrito, com olhadelas ocasionais para conferir se a audiência está acompanhando, e as culturas nas quais pode-se esperar um desempenho teatral, com contato visual com a audiência, mudanças frequentes de tom e apenas uma olhada ocasional no texto, se houver um. Há também a questão das diferentes atitudes em relação ao tempo. Uma das mais frequentes causas de desentendimento em conferências internacionais diz respeito à extensão permissível de uma contribuição individual. "Meia hora" não tem o mesmo significado para um italiano, por exemplo, ou para um sueco. Há também um contraste óbvio entre os seminários alemães, mais formais e hierárquicos, e os americanos, em que as pessoas se sentam em qualquer lugar e dizem o que querem independentemente da hierarquia.

Cochicho
O papel da audiência também é desempenhado de diferentes formas em diferentes lugares. Em alguns países, incluindo a Inglaterra, cochichar no ouvido do vizinho que está lendo jornal ou virar as costas para o orador durante uma palestra ou uma conferência é considerado ultrajante, mas em outros lugares -como na Itália,- isso é virtualmente aceito. Em minhas palestras em Cambridge, digo às pessoas da audiência que elas terão a oportunidade de fazer perguntas no final. Quando chega a hora, há geralmente um momento de silêncio, porque os estudantes britânicos relutam em fazer a primeira pergunta.
Minha esperança é de que haja algum italiano ou americano para quebrar o gelo. Quando faço palestras no Brasil, por outro lado, não é necessário incentivar as intervenções. Elas acontecem o tempo todo, e as contribuições do público são ao mesmo tempo mais longas e têm um tom mais pessoal do que aquelas a que estou acostumado no meu país.
Em outras palavras, a geografia da oralidade acadêmica tem um contorno evidente, bem como sua sociologia ou antropologia. Sua história, no entanto, é mais difícil de ser definida. Françoise Waquet mostrou o caminho. Quem irá seguir o exemplo dela?


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Leslie Benzakein.


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