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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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A ARTISTA PLÁSTICA ROSÂNGELA RENNÓ, QUE TERÁ A MAIOR MOSTRA DEDICADA A SEU TRABALHO ABERTA NO DIA 28, EXPLICA POR QUE GOSTA MAIS DE TRABALHAR COM A AMNÉSIA DO QUE COM A MEMÓRIA

PARTÍCULAS ELEMENTARES

free-lance para a Folha

Em Veneza, representando o Brasil, ela evoca as fotografias que todos têm nos álbuns de família -e o caráter traiçoeiro da memória de quem folheia esses álbuns- com sua série "Vermelha", que ficará exposta até novembro no pavilhão brasileiro da 50ª Bienal. No Rio, no dia 28 de julho, Rosângela Rennó inaugura a mais extensa mostra já dedicada a seu trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), amplificando o alcance de sua arquivística e o diálogo com a história da fotografia, verdadeira matéria-prima de toda a sua produção. Ao lado de obras já famosas -há desde a instalação "Hipocampo" (1995), em que textos de jornal reproduzidos na parede com tinta fosforescente só podem ser lidos no escuro, até imagens da série "Vulgo" (1998), em que destaca em vermelho os redemoinhos e cicatrizes das cabeças dos presos nas fotografias apropriadas do arquivo da Penitenciária do Estado de São Paulo, ou da própria série "Vermelha" (2000)-, a artista apresenta trabalhos novos, como "Bibliotheca" (2002) e o inédito "Corpo de Alma" (2003). (Juliana Monachesi)

Colecionismo, apropriação, acumulação são operações que perpassam e definem sua produção artística. São estratégias que se pode rastrear na história da arte como em outras áreas do conhecimento ou em práticas cotidianos. Em que campos você localiza a gênese dos seus procedimentos como artista?
Eu acho que, de forma geral, eu sempre gostei, sempre privilegiei a história da fotografia, não a história da arte. O ponto de partida de toda a minha investigação é o território fotográfico. Até quando eu faço vídeo, sinto que o trabalho tem uma espécie de abordagem fotográfica, porque é como se eu usasse o vídeo a partir de elementos de uma linguagem de imagens estáticas. Mas como é que você faz para investigar esse território? O que eu busco dentro da história da foto, o que eu tento trabalhar, não de uma forma sistemática, é o fato de que a história da fotografia está imbricada com toda a evolução tecnológica dos séculos 19 e 20 e com todas as questões científicas e tecnológicas, então é impossível você lidar com a fotografia ou com a história da fotografia sem se dar conta ou sem trabalhar os usos e funções sociais e científicas que a imagem tem. Se você analisa isso, quanto da produção fotográfica está relacionado com outras disciplinas, em comparação com a fotografia usada simplesmente como uma impressão artística? Para mim, é muito mais saboroso lidar com a história, tentando incorporar essa interdisciplinaridade no trabalho. A fotografia modernista eu acho muito chata, sempre achei, é muito mais legal você enveredar, por exemplo, pelo campo da imagem acusadora desenvolvida no século 19, em cima da questão da fotografia de identidade criminal. As pesquisas todas que se fizeram quando se descobriu que a fotografia podia imitar certos recursos, por meio de múltiplas exposições, o desfoque, quer dizer, associar isso a estados da alma, isso é muito mais saboroso para mim do que a fotografia moderna. E uma coisa que eu costumo dizer é que, se em algum projeto meu eu não tenho que lidar com outras disciplinas ao mesmo tempo, eu invento disciplinas. Ou eu simulo mesmo, como na obra "Bibliotheca", por exemplo, em que todo um trabalho de arquivística é inventado.

A imagem fotográfica é trabalhada ao longo de toda a sua trajetória como um ready-made, tanto no começo, com a utilização das fotos de família, depois com a utilização de arquivos coletivos públicos e mesmo quando você substitui a imagem pelo texto, que também são textos apropriados. Por que essa opção por trabalhar com uma visualidade de segunda mão, ao invés de criar suas próprias imagens?
A coisa partiu, no início, de uma provocação, porque eu achei que eu poderia ser tão subversiva com relação aos cânones da imagem, fazendo apropriação quanto criando imagens novas. E nunca tive muito apreço pela idéia da fotografia de autor, aquela coisa de fotoclubismo, que era muito comum. E aí o que aconteceu também é que, como eu trabalhava muito em cima das questões do universo fotográfico, da história da fotografia, eu achava interessante assumir um certo aspecto didático, quer dizer, ensinar o espectador a olhar para a minha foto. Então, uma forma engraçada de fazer isso é provocar o espectador, mostrando para ele uma imagem que ele já viu e mostrando de novo de outra forma, querendo dizer: "Presta atenção, essa imagem não é tão transparente quanto você pensa". Ela é permeada de códigos. Enfim, nada é tão simples quanto parece, não é?

Em um trabalho mais recente, o "Espelho Diário" [videoinstalação inspirada em histórias reais de mulheres com o mesmo nome da artista, recolhidas do noticiário de jornal], parece haver uma ruptura com isso, porque você talvez esteja se colocando mais na sua própria obra...
Tem gente que diz que, com esse trabalho, realmente, eu me coloco mais presente. O engraçado é que ele parte da apropriação de histórias alheias.

Mas você empresta a sua imagem para verbalizá-las.
Sim, mas isso não deixa de seguir mais ou menos os mesmos princípios. Foi um momento importante para que eu desse a cara para bater. Agora, tem uma outra coisa que eu acho que faz sentido nessa instalação: eu sempre me expus muito nos trabalhos, mas desta vez foi menos filtrado, digamos. Eu acho que eu sempre me expus muito, mas outros aspectos da prática artística contemporânea eram mais evidentes do que o espelhamento.

Em várias das séries de trabalhos que têm uma temática de memória, tanto na série dos presidiários como em séries em que você trata ou de massacres ou de assassinatos, é meio inevitável um paralelo com o trabalho do fotógrafo francês Christian Boltanski . Quando você afirmou que, se algum projeto não trazia a interdisciplinaridade, você procurava inventar uma, isso implica que, como nos trabalhos do Boltanski, também nas suas obras o limite entre a verdade e a ficção seja um tanto borrado?
Eu não tenho isso assim tão evidente quanto no trabalho de Boltanski, que deixa isso muito claro. Ele pode muito bem fazer um inventário de objetos e fotos verdadeiros e falsos. Eu não sei até que ponto ou quando é que ele explicita isso. De forma diferente, eu também proponho esse tipo de jogo, por exemplo na série "Vermelha", que é, na verdade, uma outra forma de agir em cima da questão da opacidade da imagem. Em "In Oblivionem", que foi exposto na Bienal de São Paulo de 94, as fotos eram quase todas pretas. O vermelho, na verdade, é mais dramático, mas essa idéia de ter uma imagem que ou está sendo mergulhada pela superfície do papel ou está saindo dela é uma forma de convidar o espectador a buscar essa imagem dentro dela, dentro daquela superfície. Se você pensa que aquela imagem nada mais é do que uma superfície e, atrás, os traços daquilo que ficou sobre aquela superfície, porque a imagem está quase desaparecida ali dentro, você acaba atuando com seu esforço. Você é convidado a misturar a sua memória com a do outro. Então, a mesma coisa que acontece com Boltanski, na verdade, acontece aí, mas é mais um convite. Quer dizer, eu não proponho uma história falsa, proponho que você misture a sua própria com a que estou mostrando. Isso é engraçado, porque era uma coisa que eu tinha como princípio, ou seja, gostaria que o espectador tivesse bastante dificuldade em apreender aquela imagem e que, então, ele pudesse projetar alguma coisa de si próprio nela. Mas, quando eu pensei isso como uma forma, ou seja, como um conceito para elaborar tecnicamente, percebi que não poderia controlar isso. Como vou saber se isso vai acontecer ou não? E muitas pessoas dizem para mim que acontece, e é aí que mora a mistura da fantasia com a realidade.

Em um livro chamado "Seduzidos pela Memória", Andreas Huyssen fala que essa cultura da memória teria provocado uma musealização generalizada. E então ele mostra como esse bombardeio de memória é inevitavelmente acompanhado de um esquecimento muito forte.
Isso está presente nos meus trabalhos de alguma forma porque eu sempre achei, e costumo dizer, que eu gosto mais de trabalhar com a amnésia do que com a memória. Por quê? Porque da memória cuidam os historiadores, e existe uma história oficial, mas é nas pequenas amnésias, nas amnésias institucionais, que você reconhece os pequenos fatos, aquilo que deixou de ser contado e, às vezes, é mais valioso do que o que foi dito. E a gente sabe que as pessoas registram tudo o que vêem, mas filtrando sempre. Então não tem nada mais traiçoeiro do que a memória, e é óbvio que o poder institucionalizado se utiliza disso, usa a memória como instrumento de poder.

O interessante no seu trabalho é que, em vez de vermos um monumento aos presos, aos militares ou ao que seja, em vez de vermos reforçada a lembrança, ali se vê muito mais reforçado o esquecimento, não é?
É verdade. A "Bibliotheca" é sobre isso.

Essa obra seria uma síntese da sua arquivologia?
Não é bem isso, não. Esse trabalho eu pensei em fazer depois de voltar da Austrália, em 1999, onde eu fiquei muito impressionada com um museu que funciona na antiga Casa de Triagem dos presos, um lugar que assumiu, com o passar do tempo, outras funções, como a de asilo de velhinhas. Depois de ficar desativado e abandonado por quase cem anos, resolveram fazer uma obra para recuperar esse prédio para fins culturais. Durante as obras, descobriram que entre os vigamentos havia um mundo de pequenos objetos que foram levados até esses buracos por ratos, que "colecionaram" os vários objetos das velhinhas, dos presos, ao longo de anos: pedaços de pano, óculos, bilhetes, cartas, pedaços de cerâmica. E eles então fizeram um museu com esses restos... Eu prestei muita atenção nisso e resolvi criar o meu próprio museu, tudo feito com os álbuns e as coisas que eu colecionei ao longo de dez anos. Então comecei a brincar com essas classificações, com categorias de acondicionamento, de apresentação. Decidi expor tudo em vitrines, para jogar com a idéia de museu como depósito de objetos. Por serem divididas segundo a origem do material, acabei criando continentes, então é uma espécie de nova cartologia.


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