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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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O sociólogo alemão e o historiador inglês rebatem artigo escrito por Jürgen Habermas e Jacques Derrida e dizem que os dois filósofos confundiram Kant com Rousseau

A EUROPA E SEUS DESCONTENTES

Peter Macdiarmid - 15.fev.2003/Reuters
Londrinos protestam no último dia 15 de fevereiro contra um possível ataque ao Iraque


Poder-se-ia pensar que estamos vivenciando uma renascença do gaullismo com duas pequenas diferenças. Desta vez não se trata da glória da França mas do "núcleo da Europa". Além disso, há menos líderes políticos do que intelectuais erguendo o estandarte de uma identidade européia, que se definiria por contraposição à América. Mas Jürgen Habermas e Jacques Derrida em seu artigo [leia texto na pág. ao lado] concordam com Charles de Gaulle num ponto: eles encontram o encorajamento para seu projeto nas ruas, isto é, em uma espécie de "volonté générale" dos protestos antiguerra e anti-Bush, realizados nas principais cidades européias em 15 de fevereiro de 2003. Em sua argumentação, os dois filósofos apelam a um colega de estamento, Immanuel Kant. Ambos pensam, como considera Derrida na introdução, "em um espírito, se não em um sentido, que remete à tradição kantiana". E Habermas conclui seu texto com a "esperança kantiana em uma política interna mundial". Trata-se também de uma resposta ao neoconservador norte-americano Robert Kagan, que, em seu conhecido panfleto sobre o poder da América e a impotência da Europa, pretende coroar Immanuel Kant como o rei-filósofo da União Européia. Kant não tinha muita consideração por reis-filósofos, "visto que a posse do poder corrompe inevitavelmente o juízo livre da razão", mas, como precursor de uma união européia, ele tem realmente o seu lugar. Sim, nós somos kantianos! Mas, nas imagens de Kant feitas por Habermas e Kagan, pelos eurogaullistas e pelos neoconservadores norte-americanos, reforçando-se mutuamente, nós mal reconhecemos o grande iluminista. "Os europeus", diz Kagan, "saíram do mundo hobbesiano da anarquia em direção ao mundo kantiano da paz perpétua". O filósofo de Königsberg não podia suspeitar de que um dia alguém iria interpretar assim o título de seu opúsculo "À Paz Perpétua", ironicamente tomado de empréstimo de uma tabuleta comercial holandesa (para um cemitério).

Idílio
Não, ambos os autores confundem Kant com Rousseau. Immanuel Kant foi esculpido de uma madeira diferente, mais dura que o sonhador genebrino das arcádias. Kant não só sabia que o poder existe; ele agradecia também à natureza "pela insociabilidade, pela vaidade de competir com inveja, pela cobiça, nunca satisfeita, de ter ou mesmo de assenhorear". Só por meio da "insociável sociabilidade" dos homens, ou seja, da diversidade e do conflito, do "antagonismo", podem os homens escapar ao idílio arcádico, no qual, "com a concórdia perfeita, a moderação e o amor recíproco, todos os talentos permanecem eternamente ocultos em seus germes".
Somos kantianos. Assim como Kant, nós queremos uma sociedade civil e por fim cosmopolita administrando universalmente o direito, para sempre imperfeita e conflituosa, mas sobretudo aberta. Uma Europa renovada pode trazer uma grande contribuição para essa sociedade, como a América já faz reiteradamente há mais de 200 anos.
Todavia será uma Europa com traços diferentes dos que Habermas atribui ao presente e ao futuro europeus. Sua imagem da Europa lembra às vezes a Alemanha Ocidental antes do corte histórico de 1989. Certamente, as "experiências do regime totalitário do século 20" e também o "passado belicista" vinculam criminosos e vítimas.
Mas a religião é em toda parte da Europa realmente tão apolítica? Na Irlanda? Na Polônia? Na Inglaterra, onde até o Parlamento ora publicamente antes de iniciar suas atividades? E a "emancipação da sociedade civil da tutela de um regime absolutista" tampouco foi um fenômeno britânico, italiano ou suíço. A renovação da Europa é necessária. Mas ela jamais resultará da autodeterminação empenhada de uma Europa como não-América e menos ainda como anti-América. Toda tentativa de definir a Europa por contraposição à América não unirá a Europa, mas a dividirá. Foi o que mostrou a história da crise do Iraque. Habermas interpreta os protestos de 15 de fevereiro como resposta homogênea do povo europeu "àquela declaração de lealdade a Bush" que oitos chefes de Estado, conduzidos por José María Aznar [Espanha] e Tony Blair [Reino Unido], haviam publicado pouco antes em diversos jornais europeus. Em três aspectos, isso é igualmente errôneo: em primeiro lugar, porque os protestos não foram de fato uma reação à "Carta dos Oito"; em segundo lugar, porque aquela carta, assinada por estadistas europeus que são tão conhecidos por seu servilismo quanto Václav Havel, foi mais uma profissão de fé aos valores ocidentais e às relações transatlânticas do que a George W. Bush; em terceiro lugar, porque na realidade a carta surgiu imediatamente como reação à iniciativa independente franco-alemã contrária a uma segunda resolução da ONU. Desse modo, o avanço do "núcleo vanguardista da Europa" não unificou a Europa, mas a dividiu.

Iluminismo aplicado
Não, a força motriz da renovação européia tem de ser antes aquele iluminismo aplicado que vincula a Europa e a América e que no mundo ganha para si cada vez mais homens e Estados por seu êxito e por seu poder de convencer. A esperança kantiana na política interna mundial é o lado luminoso da globalização. Quanto a isso, são certamente consideráveis princípios e conquistas especificamente europeus. Eles podem ser também exemplares. Mencionamos apenas alguns. Em 1º de maio de 2004, a União Européia abrangerá 25 Estados. Quinze longos anos demasiado longos após o primeiro rasgo na Cortina de Ferro, um sonho começa a se realizar. O sonho da unificação da Europa, da cura da Europa ou, como à época o presidente George Bush sênior formulou de maneira sucinta e clara, de uma Europa "inteira e livre". Não ainda inteiramente tão inteira: de início, muitos que pertencem a ela permanecem ainda do lado de fora. Mas a clara maioria dos Estados europeus, que lutaram entre si de maneira sangrenta ao longo dos séculos, pertencerá pela primeira vez, com iguais direitos, a uma e mesma comunidade política e econômica pacífica (por ora, a Otan e os americanos cuidam da segurança externa). Isso nunca existiu antes na Europa. Isso não há em nenhum outro continente. Esses Estados querem também, até essa data, fechar um contrato constitucional. Não deveríamos declarar o 1º de maio de 2004 que nos une, em vez do 15 de fevereiro que nos divide, como data de nascimento? Um outro e mais importante princípio europeu está associado a essa ampliação; são os critérios políticos que o Conselho da Europa decidiu em 1993, na cidade de Copenhague, para os candidatos ao ingresso. Esses "critérios de Copenhague" exigem sobretudo instituições democráticas estáveis, o governo da lei, o respeito aos direitos humanos e a proteção das minorias. Acrescem a isso as regras da economia de mercado, incluindo a independência do Banco Central. Com isso a União Européia, bem além dos contratos da fundação, tornou-se um modelo para a constituição da liberdade, cuja adoção ela não hesitou em exigir dos dispostos ao ingresso. A Europa mostrou que está pronta para uma ordem liberal.

Rica diversidade
"Também os regimes europeus de bem-estar social", escreve Habermas, "foram exemplares por muito tempo" (note-se a forma do passado). De fato, sempre houve aqui grandes diferenças entre países que se permitem um caro Estado de Bem-Estar Social e outros que não podem fazê-lo -hoje se conta aí a maioria dos países do Centro e do Leste europeus, candidatos ao ingresso. Também a Nova Zelândia e o Canadá (e alguns Estados dos EUA) estão mais próximos do "modelo social europeu" do que muitos europeus.
Mas é verdade que a Europa desenvolveu uma rica diversidade de variantes do capitalismo democrático, funcionando mais ou menos bem. O que elas têm em comum é que buscam cumprir a tarefa central, formulada por Adair Turner, de "associar uma economia dinâmica e o efeito libertador da própria atividade econômica à meta de uma sociedade que inclua a todos, em vista daquilo que os mercados livres não podem operar".
Esses princípios conduzem mais uma vez a Kant. É o "propósito cosmopolita" de agir de tal modo que nossa ação possa ser pensada como princípio de uma sociedade de cosmopolitas administrando universalmente o direito. O caminho para esse objetivo pode ser longo, e o objetivo pode até ser inalcançável em toda sua extensão, mas orienta o que nós fazemos e o que nós não fazemos. Nem toda versão hoje defendida da União Européia nem toda administração em Washington seguem máximas semelhantes. No entanto elas descrevem a Europa e a América que nós queremos e, desse modo, as finalidades comuns de ambas.

Ralf Dahrendorf é sociólogo alemão. Foi reitor da London School of Economics e diretor do St. Anthony's College, em Oxford, e é autor de "Após 1989" (ed. Paz e Terra).
Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford. É autor de "Nós, o Povo" (Companhia das Letras).
Tradução de Luiz Repa.


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