São Paulo, domingo, 13 de julho de 2008

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Alta estima

Reedição de "O Pai de Família", reunião de ensaios do crítico Roberto Schwarz sobre literatura, cinema e teatro, mantém complacência com o passado

KATHRIN ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Roberto Schwarz é um documento -característico, agudo, precioso- do seu tempo.
Nove ensaios publicados em revistas e jornais entre 1966 e 1976, mais dois inéditos, escritos provavelmente após 1977.
São análises de literatura, cinema, jornalismo político, teatro, cultura. Três ensaios de crítica literária emolduram um conjunto de reflexões que dizem respeito não somente ao significado de textos e obras, mas também a sua função e sua recepção naquele momento crítico do Brasil.
O primeiro ensaio, "Sobre "O Amanuense Belmiro'", coloca o conjunto no horizonte da transformação do Brasil antigo e rural em Estado moderno.
Dá o tom a era "da extinção do "brilho rural'", patriarcal e autoritário. Schwarz presencia a fase de máxima aceleração desse extinguir-se que traz, com o milagre econômico, a rebarba de paradoxais dissonâncias: o progresso moderno e vanguardista não deixa de produzir surpreendentes florações de velhos males que vão da cordialidade ao autoritarismo, à repressão da guerrilha armada e à tortura.
Schwarz assume a tarefa nada fácil de orientar-se nos "Sertões" deslocados agora para os conflitos intelectuais e ideológicos, políticos e sociais dos grandes centros urbanos.
O ensaio "Sobre o Raciocínio Político de Oliveiros S. Ferreira" é um exemplo da presença de espírito analítico.
Nesse texto, escrito em 1964, Schwarz torna transparente o equívoco do uso oblíquo e eclético de referenciais heterogêneos ("as lições de Lênin, Trótski e Gramsci" com o ideário do "livre choque dos interesses patronais e operários").
Se Oliveiros prega uma (ilusória) possibilidade de conciliação desses referenciais para o maior bem do Brasil, Schwarz rastreia suas incompatibilidades e denuncia a "dialética circular" que não supera nem concilia, mas tão-somente perpetua uma confusão do entendimento que permite manter a boa consciência e o status quo.
O estilo preciso e agudo da intervenção pode tornar saudosos certos leitores, suscitando a nostalgia desse tipo de análise lúcida e sua aplicação às práticas híbridas e ao pensamento eclético de hoje.
A reedição de "O Pai de Família" tantas décadas após a época crucial exigiria, aliás, uma introdução ou um posfácio situando as diferenças, analogias e os desafios da intelectualidade do século 21.
Schwarz sabe, é claro, do papel devastador do tempo -na (crítica da) literatura, como na experiência social e política.
Passados cinco ou dez anos, nem a história nem os autores estarão necessariamente de acordo com seus próprios escritos e produções. Schwarz menciona esses efeitos de deslocamento errante em notas que precedem dois ensaios.
Em menos de dez anos, as previsões podem revelar-se erradas, mas, mesmo assim, o autor assume o risco dessa errância, pois "de uma perspectiva dialética um descaminho publicado é melhor que nada".
O livro como um todo gravita em torno dos intelectuais e artistas e mapeia, além dos conteúdos das obras, os lugares que autores e obras ocupam na sociabilidade.
Nessa perspectiva, é relevante a homenagem a Anatol Rosenfeld, cujo percurso permite ver as mudanças de posturas críticas e dos referenciais -que passam dos "clássicos" para os "engajados".
Na moldura literária (Cyro dos Anjos, Kafka e Paulo Emílio Salles Gomes), é sedutora a tradução comentada do conto de Kafka que dá seu título ao livro -"O Pai de Família".
Schwarz vê na enigmática figura Odradek (fuso esfarrapado e sinistro, vivo-imortal, sem finalidade e impossível de pegar) "o impossível da ordem burguesa".
A análise apóia-se nas alegorias benjaminianas do drama barroco alemão (referencial talvez um tanto pesado e anacrônico).
Mas admite com certo tom lacônico a possibilidade de uma leitura metafísica.
E provavelmente admitiria também que outros se deixariam convencer pelo próprio Kafka do valor da brincadeira gratuita. Schwarz até diz que "há qualquer coisa desproporcionada e antipoética em invocar a todo momento a sociedade de classes para explicar a graça de um livro" (pág. 128), mas os tempos exigiam, ao que parece, esse rigor militante.
Assim, o engajamento do crítico explica por que todas as obras são invariavelmente filtradas pelo critério da "classe social" -o termo retorna como um refrão e abrange no uso de Schwarz sentidos diversos (ora econômicos, ora ideológicos, ora partidários, ora culturais) e equações cujo viés injurioso (burguês = abastado = fascista = cretino) é, em certos momentos, evidente.
No âmbito do engajamento ideológico e artístico, é compreensível também a longa análise das novelas "Três Mulheres de Três PPPês", de Paulo Emílio Salles Gomes. A conturbada carreira desse crítico de cinema representa de modo exemplar os riscos da vida artística e intelectual no Brasil entre os anos 1930 e 1970.
Mas, no ensaio de Schwarz, é talvez contraproducente a comparação do autor paulista com Marcel Proust e desproporcional a pesada artilharia analítica usada na análise dessas novelas, que brilham antes de tudo pela irreverência com a qual escancaram as hipócritas e confusas indecências de pacatos burgueses....
Complacente com a época, a reedição mantém a aura idealizada do passado: "Foram tempos de áurea irreverência", diz Schwarz, tempos nos quais "o país estava irreconhecivelmente inteligente".


KATHRIN ROSENFIELD é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Desenveredando Rosa" (Topbooks).

O PAI DE FAMÍLIA
Autor: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 39,50 (176 págs.)



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