São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2000


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+ literatura
Leia texto inédito do mestre da narrativa curta, o francês Guy de Maupassant, que nasceu há 150 anos
Sobre as nuvens

Samuel Titan Jr.
especial para a Folha

De boêmio inconformista a embaixador da cultura francesa, tão lido quanto Anatole France, de autor escandaloso a peça de antologia, Guy de Maupassant teve uma passagem brilhante pela metrópole literária do século 19 -o que se chama por aí de "trajetória de sucesso". Nascido há século e meio, morto meros 43 anos mais tarde, o autor normando conquistou rapidamente a unanimidade absoluta: foi lido com esforço e alguma trepidação por gerações de estudantes de francês que finalmente deixavam para trás as tabelas de conjugação e suavam a camisa nas primeiras páginas de "Bola de Sebo" ou "Bel Ami", como foi objeto de um longo estudo do conde Tolstói, o mestre do romance que não dispensava a leitura do contista francês, tão diverso sob tantos aspectos.
Juntando-se ao coro, o Mais! publica nas págs. 16 e 17 uma crônica do autor francês desconhecida até há pouco. Em 1887, Maupassant lançara "Le Horla", novela de tom fantasmagórico cujo entrecho é desencadeado por um navio infecto que traz à França, via Rio de Janeiro, uma peste que então grassava na "province de San-Paulo"... Recolhido em volume no mesmo ano, o navio fantasma vem batizar um balão a gás que, sob o comando do capitão Jovis, faz um vôo promocional com a participação do autor. Os aeronautas partem de Paris e vão dar na fronteira com a Bélgica, e logo em seguida Maupassant recolhe suas impressões numa crônica, "De Paris a Heyst". O que não se sabia muito bem é que, no ano seguinte, Jovis e Maupassant aventuram-se novamente no Horla, agora com tempo nublado e trajetória mais curta. É a narrativa dessa ascensão que o Mais! reproduz: "Sobre as Nuvens".
O leitor de primeira viagem pode se entregar sem mais à elegância das frases e ao pitoresco do cenário. Já os aficionados não deixarão de perceber que a crônica jornalística logo deixa entrever o que é mais típico do Maupassant contista: a inspiração num "faits-divers" contemporâneo, a construção sucinta da situação dramática, o gosto bem comportado pelo suspense e pela tirada engenhosa ("Nossa Senhora das Fundições...").
É bem verdade que a redação de "Sobre as Nuvens" é apressada, há expressões e soluções que se repetem, para não falar no indisfarçável deleite na autopromoção mundana; nada que não se explique pela urgência e pela circunstância da publicação. Mas isso mesmo permitirá ao leitor espiar Maupassant de mangas arregaçadas, isto é, no próprio ato de desentranhar literatura dos dados brutos do real. Note-se, por exemplo, a verdadeira caça à metáfora que atravessa toda a crônica e que trará à memória achados felizes como o chicote do condutor em "Bola de Sebo", que se transforma em serpente veloz quando vibrado no ar. São indícios assim que fazem pensar na singularidade desse autor, próximo do conterrâneo Flaubert e do torrencial Zola, mas de ritmo, estilo e pendor tão únicos, afinal de contas.


Samuel Titan Jr. é doutorando em teoria literária na USP.


Leia abaixo a crônica "Sobre as Nuvens", em que o escritor francês Guy de Maupassant descreve a delirante viagem que fez em um balão sobre Paris e arredores
Quando entrei na fábrica de La Villete, percebi sobre a grama do pátio um exército de negros e monstruosos bicos de gás, o enorme balão amarelo, quase inflado, semelhante a uma abóbora colossal crescendo entre gasômetros numa horta de ciclope. Uma longa mangueira de tela envernizada, semelhante também àquele rabicho torto pelo qual as abóboras douradas sugam sua vida da terra, levava ao Horla a alma dos aerostatos. Ele palpitava e se levantava pouco a pouco, e uma dúzia de homens corriam a seu redor, transferindo a cada segundo os sacos de lastro pendurados à rede, de modo que o balão pudesse crescer. Um céu baixo e cinzento, um teto carregado de nuvens estendia-se sobre nossas cabeças. Eram 16h30, e a noite já parecia próxima. Curiosos e amigos chegavam à fábrica. Observavam, espantados, a pequenez da barquinha, o papel colado sobre os pequenos rasgos do balão, todos os preparativos para aquela viagem ao espaço. Julga-se ainda que as ascensões expõem os viajantes a grandes perigos, ao passo que oferecem tantos ou menos que um passeio de barco ou fiacre. Quando o material é bom e o aeronauta, prudente e experimentado, como são os senhores Jovis e Mallet, pode-se partir para uma excursão pelos céus com uma tranquilidade de alma mais completa do que se embarcássemos para a América, coisa que não passa por ser assustadora. Quatro homens vêm trazer a barquinha, grande cesto quadrado muito parecido às novas malas de viagem trançadas em vime. Em dois lados do veículo voador, lê-se em letras de ouro sobre placas de madeira: Horla. A barquinha é amarrada ao balão cativo, que vai levantando o lastro e o cacho de homens agarrados à rede, e levam-se para dentro dela o cesto de provisões, o cesto de ferramentas e os instrumentos: dois barômetros comuns, um barômetro registrador, dois termômetros e um par de binóculos marinhos. Tudo está pronto. Os amigos achegam-se; e os viajantes, servindo-se de uma cadeira como apoio, escalam o bordo da barquinha e saltam para o fundo. O senhor Mallet trepa até o escape do balão, acima de nossas cabeças, estreita boca de tela por onde sairá o excesso de gás, caso encontremos camadas de ar mais quente. O senhor Jovis, o outro aeronauta, calcula a força necessária à ascensão, de modo a fazer uma bela partida. Esvazia-se um saco de lastro; as mãos dos homens agarrados à rede soltam-na um pouco, e nos sentimos suavemente erguidos, logo depois retidos por todos aqueles dedos que se agarram novamente, e novamente libertados quando um outro saco é descartado. Um tenente da escola de aeronáutica militar de Meudon, que viera assistir à ascensão, quis auxiliar na partida. Segura entre as mãos a corda que nos mantém em terra, até que o senhor Jovis lança o grito: "Largar!". Subitamente, o grande círculo de amigos que nos cerca e nos fala, as roupas claras, os braços estendidos, os chapéus pretos, tudo escurece e desaparece como ar: partimos, voamos. Logo planamos sobre uma imensa cidade, sobre um descomunal mapa de Paris, igualzinho aos mapas em relevo das exposições, com os tetos azuis, as ruas retas ou tortuosas, o rio cinzento, os monumentos pontiagudos, o domo dourado dos Invalides, e mais adiante o campanário ainda inacabado de Nossa Senhora das Fundições, a torre Eiffel. Inclinados sobre o bordo da barquinha, ainda podemos ver no pátio da fábrica uma multidão de pequenos homens e mulheres que agitam os braços, os chapéus e os lencinhos brancos. Tão pequeninos, tão distantes, tão insetos, não se compreende como os deixamos há um instante, há oito ou dez segundos. "Vejam!", exclama Jovis com entusiasmo. "Não é bonito, meninos?"

Rumor de mil ruídos
Um rumor imenso sobe até nós, um rumor feito de mil ruídos, de toda a vida das ruas, do rodar das carruagens sobre o calçamento, do relinchar dos cavalos, do estalo dos chicotes, de vozes humanas, do rugir dos trens. Dominando tudo, próximos ou distantes, estridentes ou graves, os apitos das locomotivas parecem rasgar o ar de tão vibrantes e nítidos.
Em seguida, a planície ao redor da cidade, a planície verde cortada pelas estradas brancas, retas, cruzadas em todos os sentidos, inumeráveis. Mas de repente os detalhes da terra, tão claros, turvam-se um pouco como se suavemente apagados, esfumam-se por trás de uma bruma imperceptível, confundem-se inteiramente, quase desaparecendo. Penetramos nas nuvens.
De início, somos envolvidos por um véu leve e transparente. Ele se torna mais espesso, cinzento, opaco, fecha-se ao nosso redor, aprisiona, constrange. Mas logo essa muralha de neblina úmida e sombria se aclara, branqueia, ilumina. Deslizamos agora através de um algodão vaporoso, através de uma fumaça leitosa, através de um vapor argênteo. A cada segundo, uma luz misteriosa, ofuscante, vinda de cima, ilumina mais e mais as ondas brancas que atravessamos; e subitamente, bruscamente, emergimos em um céu claro, resplandecente de sol.
Nenhum delírio poderia criar um sonho semelhante ao que vimos. Voamos sempre mais alto, por cima de um caos ilimitado de nuvens que parecem neve. Estendem-se a perder de vista, fantásticas, inimagináveis, sobrenaturais.
Abaixo de nós, essas neves de brilho insuportável desdobram-se em todos os sentidos. Formam planícies, cumes, picos, vales. As formas desse universo novo, desse país feérico que só se vê do céu são desconhecidas em terra. Percebem-se províncias de campanários, de flechas, de torres de cristal, oceanos de ondas soerguidas, encapeladas, imóveis e furiosas, cuja espuma brilhante cega os olhos, precipícios violetas escavados pelas nuvens mais baixas e montanhas inverossímeis aprumando suas garupas monstruosas, de claridade enlouquecedora.
De repente, perto de nós -perto ou longe, não há como saber com precisão, pois perde-se a noção das distâncias-, surge no ar límpido uma mancha transparente, enorme, redonda, que flutua, que sobe, um balão, um outro balão, com sua barquinha, sua bandeira, seus viajantes. Ergo um braço e vejo que um dos passageiros dessa aparição ergue um braço também. Distinguem-se as nuvens, distingue-se o horizonte desmesurado através dessa sombra fantástica, como se ela não existisse; e, ao redor dela, desenha-se um grande arco-íris que a encerra por inteiro numa coroa luminosa e multicor.
Mais real que o navio-fantasma dos navegadores, esse balão-fantasma nos acompanha pelo espaço, acima do deserto ilimitado das nuvens; cingido por uma auréola resplandecente, parece demonstrar, no meio do céu inexplorado, a apoteose dos viajantes do ar. Chama-se esse fenômeno bem conhecido de "auréola dos aeronautas". A sombra do balão sobre as nuvens mais próximas explica essa aparição surpreendente; mas várias teorias foram propostas a fim de explicar a auréola que o circunda. A mais verossímil é a seguinte: O pano do qual é feito o aerostato, a despeito da qualidade do tecido e do verniz, é sempre muito permeável ao gás encerrado em seu interior. Dá-se, portanto, uma perda constante através de todo o envoltório, e cria-se em torno ao balão uma fina camada de umidade. Ao atravessar esse vapor, a luz do sol dá origem às cores do prisma como quando atravessa o chuvisco das cataratas, e projeta-as como uma coroa, seguindo a forma do balão, sobre a nuvem mais próxima. Ora, como subimos continuamente, o espectro vaporoso logo deixa de nos seguir e, menor a cada segundo, à medida que nos elevamos, permanece abaixo de nós, flutuando sobre o oceano das nuvens brancas. A luz oblíqua afasta-o ainda mais, lá para baixo, de onde segue todos os nossos movimentos, semelhante agora a uma bola de brinquedo que corre, que erra pelo deserto tumultuoso das neves.

Teto de tormentas
Quanto mais subimos, mais forte parece o calor e mais prodigiosa e insuportável torna-se a reverberação da luz sobre essa imensidão brilhante. O termômetro registra 26ºC, ao passo que tínhamos apenas 13ºC na superfície da terra, e o balão, muito dilatado, deixa sair pelo escape um jorro de gás que se espalha pelo ar como fumaça. Ultrapassamos os 2.000 metros, planamos agora a 1.500 metros acima das nuvens e não vemos nada além dessas ondas argênteas sem limites sobre o azul ilimitado do céu. De todos os lados, buracos violetas, abismos cujo fundo não se vê. Avançamos lentamente, impelidos por uma brisa que não sentimos, na direção de um desses rasgos. Dir-se-ia, de longe, que uma geleira naufragou na imensidão, abrindo entre duas montanhas uma fenda desmesurada. Tomo o binóculo para examinar o vazio azulado do precipício e percebo ao fundo uma nesga de pradaria, duas estradas, uma vila de bom tamanho. Logo estamos acima dela. Lá estão os carneiros no pasto, as vacas, as carroças! Como tudo é longínquo, pequeno, insignificante! Mas as nuvens que correm por baixo de nós fecham bruscamente o olho mágico aberto nesse teto de tormentas. O senhor Mallet agora repete a todo momento: "Mais lastro, joguem mais lastro!". O balão, desinflado pela dilatação do gás e esfriado com a aproximação da noite, cai como uma pedra. Ao nosso redor, as folhas de papel de cigarro, lançadas para se aferir as subidas e as descidas, esvoaçando como borboletas brancas. É o melhor método para se saber como anda um aerostato. Quando ele sobe, o papel de cigarro parece cair rumo à terra; quando desce, a folhinha parece alçar vôo rumo ao céu. "Mais lastro, joguem mais lastro!" Esvaziamos à mão os sacos de lastro, que se espalha sob nós como chuva loira dourada pelo sol. O Horla não pára de cair, e vemos reaparecer bem perto, como que vindo ao nosso encontro, o balão-fantasma em sua auréola. Agora roçamos o mar de nuvens, e nossa barquinha parece às vezes molhar-se na espuma das ondas, que se vaporiza ao redor. Novos buracos, pelos quais percebemos a terra, um castelo, uma velha igreja, mais estradas e prados verdes. À força de jogar lastro, acabamos por deter a queda; mas o balão, flácido e murcho, parece farrapo de tela amarela, emagrece a olhos nus, tomado pelo frio dos nevoeiros, que condensa o gás rapidamente. Novamente penetramos nas nuvens e mergulhamos nessas ondas de bruma. Os ruídos do mundo chegam até nós mais distintamente, latidos de cachorros, gritos de crianças, rodar das carruagens, estalos de chicotes. É a terra de novo, imenso mapa geográfico que pudemos ver por meio minuto à partida. Estamos a pouco mais de 600 metros dela, distinguimos os menores detalhes. Num grande pátio, as galinhas levantam vôo assustadas, tomando-nos sem dúvida por um monstruoso gavião planando sobre elas. Mas que animal estranho é esse que corre pelo campo? Será um peru branco, um carneiro, uma gansa? Não, é um garotinho de calções e camisa que nos viu e, de tanto olhar para cima, caiu e me permitiu reconhecer seu corpo humano. Lançamos apelos à terra com nosso megafone. Os homens respondem com gritos e nos acompanham, correndo pelo campo, deixando suas casas e seus trabalhos. Os condutores abandonam suas carroças nas estradas, e vemos em meio às plantações ainda verdes uma multidão trotando desenfreada.

Balão agonizante
O aerostato não pára de cair. Uma das cordas-guia arrasta-se sobre as árvores, uma outra está a ponto de tocar o solo quando alcançamos uma linha do caminho de ferro cujos fio telegráficos impedirão nossa passagem. "Precisamos saltar sobre a linha", grita Jovis, pois o telégrafo é a guilhotina dos aeronautas.
Ele lança o último saco de lastro de uma vez só, e o balão agonizante faz um esforço derradeiro, um último golpe de asas, transpõe o aterro bem no momento em que se aproxima um trem, cujo condutor nos saúda com um apito.
Estamos de novo a 30 metros do solo. Com um golpe de faca, Jovis corta a corda da âncora, que cai num campo de trigo. Livre desse peso, o Horla se ergue um pouco; mas puxamos com toda força a presilha da válvula, e a barquinha vem pousar em terra sem um único solavanco, no meio de um grupo de camponeses que a seguram e retêm.
E saltamos para fora, desolados por ver terminar essa curta e soberba viagem, esse inimaginável vôo através do espaço, num espetáculo feérico de nuvens brancas que nenhum poeta poderia sonhar.
Um gracioso proprietário de Thieux, onde pousamos, um certo senhor Gilles, que ele mesmo já fez várias ascensões, veio nos receber à descida para nos oferecer hospitalidade em sua casa, assim como um excelente jantar.


Tradução de Samuel Titan Jr.


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