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Obra fundamental da crítica literária do século 20, "A Teoria do Romance" ganha sua primeira tradução brasileira, que chega às livrarias no início de setembro
A forma angustiada de Lukács
José Antonio Pasta Jr.
especial para a Folha
Para saudar a primeira e autêntica
tradução brasileira do belo livro
de Georg Lukács, escrito em 1914-1915, o melhor talvez seja colocá-lo desde já sob a rubrica, mais que estética, ético-política que lhe conferiu o próprio autor, no célebre prefácio de 1962:
""A Teoria do Romance" não é de caráter
conservador, mas subversivo". Ao fazê-lo, o Lukács dos anos 60 não apenas distinguia a negatividade do "jovem Lukács", anterior ao seu marxismo, das
simpatias regressivas pela "miséria alemã", estado de espírito corrente naqueles inícios do século, mas principalmente
reconhecia e reiterava a extraordinária
vibração radical desse livro precursor.
Lê-lo ou relê-lo agora permite constatar que essa vibração não se esgotou e parece longe de esgotar-se. Antes, talvez,
ressalte mais nítida, até em virtude de
sua relativa abstração, contra o pano de
fundo sombrio de um conformismo maciço e sem saída à vista.
Fluxo de eloquência
É difícil, para
quem acaso ainda conserve o coração do
lado certo, manter-se de todo alheio a esse impressionante fluxo de eloquência,
no qual as correntes do trabalho do conceito e do ímpeto poético confluem para
dar voz à exigência absoluta da vida autêntica. Mesmo sua relativa ingenuidade,
reconhecida depois pelo autor, não lhe
retira a força, porque ela própria, a ingenuidade, revela-se novamente, agora,
como recurso contra a generalização regressiva das malícias do intelecto, em
que tantos se especializam (pouco antes
de morrer, Brecht dizia a seus amigos:
"Precisamos de uma nova categoria estética: a ingenuidade").
Estaria enganado, assim, quem esperasse encontrar em "A Teoria do Romance", conforme o título poderia sugerir, apenas
uma pacata recensão de
teoria da literatura, que
incursionasse escolarmente por essa modalidade literária tão importante quanto difícil de definir. Ao contrário, nesse livro de Lukács, a incomensurabilidade
do romance, a impossibilidade essencial
que constitui o fundamento paradoxal
de sua forma, é tomada no que tem talvez de mais profundo, como a recusa do
meramente existente e a exigência de sua
transformação real, não mais apenas
simbólica.
Nele, entretanto, esse resgate do elemento de negatividade do romance não
se esgota em si mesmo, mas toma corpo
no movimento de dedução conceitual rigorosa da forma romanesca. À maneira
dos "clássicos" alemães, em particular
com numerosos ecos da correspondência entre Goethe e Schiller, Lukács irá fazê-lo no âmbito necessariamente comparativo de uma teoria dos gêneros, todavia de caráter não-formalista, uma vez
que nela os gêneros não são meras formas fixas, mas se definem pela determinação recíproca de configurações formais e "condicionamentos histórico-filosóficos". Por seu lado, o trabalho do
conceito, longe de reduzir o etos da negatividade, dá-lhe espessura e multiplica
seu poder de choque, ao comunicá-lo ao
conjunto da herança cultural.
O inimigo por excelência de "A Teoria
do Romance" será, assim, o filisteu.
Nietzsche diz, em "A Gaia Ciência", que
todo livro que se preza expulsa já em
suas primeiras páginas os leitores que
julga indignos de si. O livro de Lukács
põe porta afora o filisteu, aquele que pratica "a acomodação a qualquer ordem
exterior, por mais vazia de idéias que ela
seja, apenas porque é a ordem dada", segundo sua própria definição. Anterior à
fase marxista do autor, "A Teoria do Romance" não designa ainda o "inimigo de
classe", mas algo como um inimigo... do
espírito. Tudo se passa, nesse momento,
como se o combate fundamental de nosso tempo se desse ainda entre o capitalismo e o espírito, e não entre o capitalismo
e proletariado, para adaptar um dito famoso de Benjamin.
Mas mesmo aí, onde se
acusam o arcaísmo e o caráter abstrato da "recusa"
do jovem Lukács, no essencial persistentes, pode-se encontrar um aspecto
inesperado de sua atualidade. Pois é hoje que os
verdadeiros filisteus florescem. Diante do recuo ou da mudança
de sentido do que já se chamou de luta de
classes, a adesão ao "poder estéril do que
meramente existe" (Lukács) assume pose de senso de realidade e de investidura
ética. Consumado como forma histórica,
o filisteu perde agora todo o pudor. Pode-se vê-lo mais facilmente na renovada
ferocidade com que subalternos e clones
de toda ordem, viciados pela própria forma-mercadoria na compulsão mimética, aderem com enorme bravura a toda e
qualquer forma de poder, do inspetor de
quarteirão à indústria cultural, passando
pelo chefe da repartição.
A virtualidade fascista que se enrosca
nessa atitude encontra-se prefigurada,
em negativo, no livro do jovem Lukács.
Nele, a arte já surge como uma "forma
enfática da verdade", como dirá depois o
Adorno da "Teoria Estética", de todo incompatível com a regressão mimética
própria da adesão indiferenciada ao
mundo degradado. Como ressalvar, então, nesse contexto, o elemento mimético constitutivo de toda arte e primacial
na esfera épica, de que participa o romance? Esse paradoxo, que só mais tarde
o assim chamado marxismo ocidental
trará inteiramente à luz, bem vistas as
coisas, já está presente em "A Teoria do
Romance".
A unidade essencial
Por isso, o livro começa com sua famosa evocação,
de tinturas nostálgico-poéticas, das "culturas fechadas". Nela, o autor localiza
apenas em um passado remoto, principalmente em uma Grécia germanicamente sonhada, o tempo feliz, a Idade de
Ouro, o momento em que a mimese, a
adesão ao existente, não era regressão,
mas a pura manifestação da unidade essencial entre o eu e o mundo, expressa
como um cosmo completo e harmônico
de correspondências:
"Afortunados os tempos para os quais
o céu estrelado é o mapa dos caminhos
transitáveis e a serem transitados, e cujos
rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo
lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto sua posse. O mundo é
vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da
mesma essência que as estrelas (...)".
Em Lukács, essas estrelas não são as de
Kant, cujo céu estrelado "brilha somente
na noite escura do puro conhecimento e
não ilumina mais os caminhos de nenhum dos peregrinos solitários (...)", como ele dirá adiante.
São antes aquelas evocadas por Hegel,
no prefácio à "Fenomenologia do Espírito", para lembrar um tempo em que não
era necessário um "zelo ardente" para
forçar os homens, agora presos ao vulgar, a mirar as estrelas: "Houve um tempo em que os homens tinham um céu
dotado dos vastos tesouros dos pensamentos e das imagens. Então a significação de tudo o que é se encontrava no fio
de luz que o ligava ao céu (...)".
No prefácio de 1962, Lukács já advertia
que o jovem autor de "A Teoria do Romance" se encontrava "no processo de
transição de Kant para Hegel". Como este último, ele verá no romance a epopéia
da era burguesa, a persistência do sopro
épico, porém já em um mundo degradado, do qual todo sentido se exilou. Em
Lukács, mais especificamente, o romance herda da epopéia a exigência de dar
forma à "totalidade extensiva da vida"
(por oposição à tragédia, que daria forma à "totalidade intensiva da essencialidade"). Como fazê-lo, tendo em vista
que a cisão entre o eu e o mundo se encontra consumada e qualquer totalidade
é desde já impossível? Na sustentação
dessa contradição, a rigor insolúvel, ele
identifica tanto a matriz da incurável angústia formal do romance quanto o garante de sua grandeza ético-estética.
O romance seria assim a forma que simultaneamente mantém a exigência de
uma "imanência do sentido à vida" (e
com ela a "naturalidade" ou "normatividade" da mimese épica) e a recusa de dá-la como consumada apenas em efígie.
Ao pôr e revogar, simultânea e incansavelmente, a organicidade do mundo épico, o romance, no seu próprio remate
formal sempre inacabado, obriga-nos a
medir a distância que nos separa do sentido: ele assim indica "com um gesto eloquente o sacrifício que se teve de fazer, o
paraíso eternamente perdido que foi
buscado, mas não encontrado, cuja busca infrutífera e desistência resignada dão
fecho ao círculo da forma". Por isso, o romance será "a forma da virilidade madura, em contraposição à puerilidade normativa da epopéia".
Aqui se dá a ver, além da aproximação,
também o afastamento entre o autor de
"A Teoria do Romance" e Hegel. Conforme assinalou Jameson em "Marxismo e
Forma", para Hegel a plenitude da arte
nunca está em uma certa forma de arte,
"mas na sua autotranscendência, na
transformação da arte em filosofia".
Centrado na épica e nas formas de narração, esse Lukács, ao seu modo, reconduz
a arte a si mesma e demanda que "o céu
baixe sobre a terra", que o sentido não
exista apenas nas alturas da pura essencialidade, mas que seja coextensivo à vida mesma.
Perfeita pecaminosidade
No fundo, vê-se que o jovem Lukács, no próprio
momento em que se impregnava do
"Curso de Estética" (Edusp) de Hegel,
recusava-se radicalmente à hegeliana
"reconciliação com a realidade". Michael
Löwy, em "Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários", vê nessa renitência lukacsiana a persistência de elementos herdados da tradição poética
húngara (Ady, em particular) e a fixação,
no hegeliano recente, de elementos de
uma ética fichtiana, o que o próprio Lukács parece corroborar, neste livro, ao
caracterizar finalmente o romance como
"a forma da época da perfeita pecaminosidade, nas palavras de Fichte".
É também Lukács quem irá ressaltar,
naquela sua nova feição, o lastro persistente das "ciências do espírito", salientando em particular as marcas de Dilthey, mas também aquelas de Simmel, de
Max Weber. Mais notável, todavia, talvez
seja a maneira brilhante pela qual enriqueceu e retemperou as lições do "Curso
de Estética" hegelianas com as percepções de Schiller e Goethe e com as reflexões provenientes do romantismo alemão, notadamente de Schlegel, e ainda
com as de Solger.
Sob esse aspecto, é particularmente rica a refacção a que submete o conceito de
ironia, renovando-o pela sua inserção na
problemática específica do romance, tal
como ele a desenha. Para Lukács, o mandamento da objetividade épica, essencial
à forma do romance, é permanentemente contraditado pela sua condenação à
síntese meramente subjetiva, própria do
indivíduo isolado. Todo esforço em direção à objetividade seria, assim, frustrado,
não fosse o recurso do romancista à ironia, por meio da qual a subjetividade se
reconhece e, designando a si mesma como tal, restaura em parte a qualidade objetiva do mundo configurado. Assim, nele, a ironia -para tantos apenas um
abismo da subjetividade- "é a objetividade do romance".
A segunda parte do livro desdobra essas definições em um ensaio de tipologia
da forma romanesca.
É talvez seu aspecto hoje mais vulnerável. Porém, como muitas vezes acontece,
diante de Lukács o desprezo fácil pode
fazer jogar fora tesouros de percepção
que os próprios desprezadores estarão
muito longe de atingir. Assim é que entre
nós ele se encontra sempre largamente
superado, sem prejuízo de não ter sido
ainda nem sequer compreendido.
Ele mesmo encarrega-se de apontar o
caráter limitado de suas definições do romance do "idealismo abstrato", de que o
modelo principal seria o "Dom Quixote", e do "romantismo da desilusão", cujo romance-tipo seria "A Educação Sentimental". Não lhe escapa, todavia, que
na análise desse livro de Flaubert "A Teoria do Romance" fora capaz de formular
sem equívoco, com base na duração
bergsoniana, a nova função do tempo no
romance, antes mesmo que a própria
evolução do gênero a consumasse, uma
vez que lhe são posteriores o aparecimento ou a circulação das obras decisivas de Proust, Joyce e Thomas Mann.
Em vista das questões que "A Teoria do
Romance" põe em cena, entretanto, o
ponto de convergência mais alto dessa tipologia talvez seja o capítulo sobre o paradigma do "Bildungsroman": "Os Anos
de Aprendizado de Wilhelm Meister", de
Goethe. Por seu caráter mesmo, o romance de formação goethiano estrutura-se como tensão entre os pólos opostos da
reconciliação com a realidade e da recusa
de seu estreitamento. Por isso, a tentativa
de síntese que ele representa, ao encenar
as possibilidades de uma vida plena no
âmbito da evolução burguesa, põe em jogo os próprios limites ético-estéticos de
"A Teoria do Romance".
Lição fundamental
O balanço final
de Lukács, notável pelo equilíbrio e em
grande parte ainda não superado, tende
ao deceptivo, se não ao melancólico. Naquele momento, era já muito escassa sua
confiança nas possibilidades da "Bildung" individual como via de acesso à
vida verdadeira. Ele só retomará esse caminho, em outro patamar, já então coletivo e histórico, em "História e Consciência de Classe". Ao final de "A Teoria do
Romance", livro cuja riqueza extraordinária não cabe em uma resenha, seus
olhos já estavam postos em outra parte:
na Rússia de Tolstói e Dostoiévski, onde,
em 1915, como tantos outros, ele pressentia os sinais de um cataclismo que pudesse "nos salvar da civilização ocidental" e preparar o terreno para a vida digna desse nome.
O que viria depois talvez tenha feito o
"velho Lukács", já vivido e experimentado nos desastres da União Soviética, relembrar a lição fundamental do romance, conforme ele mesmo a distinguira: a
coragem de medir e de sustentar a distância entre o imperativo da vida autêntica e a realidade degradada.
A Teoria do Romance
234 págs., preço a definir
de Georg Lukács. Tradução de
José Marcos Mariani de Macedo. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP
01455-000, SP, tel. 0/xx/11/
816-6777).
José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura
brasileira na USP, autor, entre outros, de "Trabalho
de Brecht" (Ed. Ática).
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