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Em entrevistas, Edward Said, Tariq Ali e Noam Chomsky
se voltam uma vez mais contra a hegemonia dos EUA
A santíssima trindade
LUIZ WERNECK VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Contragolpes", uma
seleção de artigos da
"New Left Review"
coligidos por Emir
Sader em edições publicadas entre 2002 e 2004,
mais "Ambições Imperiais", de
Noam Chomsky, "A Nova Face
do Império", de Tariq Ali, e
"Cultura e Resistência", de Edward Said -estes três últimos,
coletâneas de entrevistas concedidas pelos autores, no mesmo espaço de tempo, ao jornalista David Barsamian, que
mantém há vários anos um
programa radiofônico na Alternative Radio (EUA)- , compõem um painel homogêneo e
altamente representativo da
opinião de intelectuais que, em
meio a uma cultura de crescente especialização de suas atividades, persistem na posição de
uma intelligentsia clássica.
Chomsky, Said e Tariq Ali. O
primeiro é um cientista de renome internacional na área de
estudos lingüísticos, professor
no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT). O segundo, crítico literário e consagrado teórico da cultura, igualmente professor em um centro
destacado de pesquisa, a Universidade Columbia. E o último é um romancista e ensaísta
de sucesso.
Homens já bem passados dos
60 anos -Said morreu em
2003, com 68 anos, depois de
nove anos de luta contra uma
forma insidiosa de leucemia.
Com efeito, sem nunca terem abandonado suas atividades científicas ou culturais,
eles se lançaram ao mundo como cavaleiros do justo e da justiça, em particular na denúncia
das condições opressivas que
vitimam povos como os do
Haiti, da Palestina e do continente africano.
Não são políticos -o mais
parecido com um deles talvez
seja Tariq Ali-, e o seu espaço é
menos o do Estado-nação de
cada qual do que o cenário que
vem surgindo da globalização.
Vínculos com a periferia
Embora nada formalize suas
intervenções -nem partido
político ou uma mera associação nem uma concepção sistematicamente ordenada como
forma de agir no mundo-, são a
primeira floração da intelligentsia nessa hora de globalização, que parece ressurgir, desde
que se proclamou o seu ocaso
em algum momento dos anos
1960, também em personagens
tão diversos deles -como é o
caso de Habermas.
No caso desses três intelectuais, trabalha a favor da autenticidade de suas posições o fato
de que todos eles, de um modo
ou de outro, possuem vínculos
com a periferia do mundo, quer
pela origem nacional -Tariq
Ali é paquistanês, Said nasceu
na Palestina-, quer por traços
identitários culturais, como no
caso de Chomsky, um judeu-americano, filho de um professor de hebraico e criado, em
suas palavras, em um "gueto"
encravado em solo ianque.
O ponto de vista da periferia,
para esses grandes personagens da cultura ocidental, não
lhes é, portanto, estrangeiro.
Não por acaso, David Barsamian, o entrevistador, é um
americano filho de armênios
exilados do genocídio turco.
O seu antiimperialismo provém, basicamente, desse ângulo particular com que se defrontam com o mundo.
São recorrentes as referências a Joseph Conrad, Rudyard
Kipling e George Orwell, cujas
literaturas testemunham a
ação do antigo Império Britânico nas colônias submetidas ao
seu domínio.
Se, antes, o império se apresentava como o portador de
uma missão civilizadora -o
fardo do homem branco de que
falava Kipling-, hoje, sob sua
versão norte-americana, tal
missão seria a de difundir os valores e as instituições da democracia, e, no jargão retórico do
presidente dos EUA, George W.
Bush, garantir a supremacia do
bem contra o mal, identificado
ao terrorismo qualquer ato de
resistência ao seu domínio.
É de Said a caracterização:
"Todo império faz duas coisas:
começa dizendo que não é igual
a nenhum dos impérios do passado [...], não fala em termos de
destruição, mas, na verdade, fala o contrário. [Ele] traz esclarecimento e civilização, paz e
progresso [...]. Os apologistas
do império nunca dizem isso
abertamente, mas para eles os
conquistados são inferiores.
Portanto, temos que levar essas
coisas maravilhosas para eles.
Era verdade nos tempos de Conrad há cem anos, e é verdade
hoje em dia".
Falência do socialismo
Para os três entrevistados, a
dificuldade no enfrentamento
do domínio imperial hoje dominante estaria na falência do
socialismo de Estado, na perda
de substância do Estado-nação
como idéia-força e na corrosão
da inteligência, que, com as
correntes pós-modernas, ter-se-ia afastado da herança do
Iluminismo e da história "como grande narrativa".
Chomsky, tratando dessa herança e do valor das doutrinas
liberais clássicas, ressalva que a
apropriação contemporânea
deve ser contextualizada, mas
afirma que "devemos ter grande respeito pelos ideais do Iluminismo -racionalidade, análise crítica, liberdade de expressão, liberdade de investigação",
horizonte que, segundo ele,
desde o ex-presidente dos EUA
Jimmy Carter vem sendo perdido pela sociedade americana
com a emergência do fundamentalismo religioso.
Tariq Ali, remetendo-se à
guerra entre civilizações, que,
para Samuel Huntington, tenderia a se travar entre o Oriente
e o Ocidente, a traduz ironicamente como "um choque entre
um minúsculo fundamentalismo religioso, bastante retrógrado, e a matriz de todos os
fundamentalismos, o fundamentalismo imperial americano", que se serviria da sua força
política e militar a fim de "remodelar o mundo segundo suas
necessidades e interesses".
Mas, diagnosticam, o império não pode se sustentar apenas na força. Ele é força e consenso, e uma chave do poder está, nas palavras de Chomsky, na
"engenharia do consentimento". Essa intelligentsia incorpora, como se vê, o léxico gramsciano e se concebe em uma
guerra de posições, uma vez
que o império não poderia ser
derrotado militarmente.
Ele deve ser objeto de um assédio intelectual e moral, em
que a opinião pública internacional, a que não pode faltar o
peso decisivo da opinião pública norte-americana, consiste
em ator.
Nesse sentido, faz parte do
arsenal dessa intelligentsia a
luta pelo melhor argumento ao
estilo habermasiano, na disputa pelo direito e nas controvérsias históricas, na cena das esferas públicas nacionais e internacionais. Ademais, em sua
base, o império conhece fissuras: no Oriente árabe, no Afeganistão, na América Latina.
O "projeto" gramsciano da
intelligentsia quase ganha organicidade com a institucionalização dos fóruns sociais mundiais sob a palavra de ordem
"um outro mundo é possível"
-em que, ao menos em
Chomsky, parecem ecoar antigas lições libertárias de John
Dewey, inspirador pedagógico
da escola em que foi educado.
A seleção de artigos de "Contragolpes" pode ser lida como
um aprofundamento das análises dos pontífices dessa intelligentsia, salvo o brilhante e original artigo do chinês Qin Hui,
que se dedica à análise da questão agrária na China. Mas é no
igualmente brilhante artigo de
Perry Anderson, editor da
"New Left Review", que as concepções dessa intelligentsia ganham nitidez conceitual.
Anderson sustenta com propriedade que a teoria da hegemonia -uma síntese de mecanismos de "dominação" e de
"direção"-, tal como formulada por Gramsci, deve ser estendida ao sistema internacional.
E, nesse plano, algumas antinomias são constitutivas: a potência hegemônica tem de possuir uma força superior em armas, "atributo nacional que
não pode ser alienado ou compartilhado", enquanto, por outro lado, os elementos de "direção" supõem um movimento
de generalização.
Tal generalização, contudo,
tem como base a matriz específica da história nacional da potência dominante, que, como
inevitável, não necessariamente se encaixa nas matrizes dos
Estados-nação expostos à sua
hegemonia; exemplares os casos da França e da Alemanha.
Essa é uma outra fissura.
Mas, se assim é, não se compreende bem porque não "lamentar que o governo Bush tenha eliminado o pobre simulacro do Tribunal Penal Internacional ou varrido as folhas de
parreira murchas do Protocolo
de Kyoto" [acordo internacional para reduzir a emissão de
gases que causam o efeito estufa]. Temas como esses, tão caros aos europeus, assim como o
dos direitos humanos, portadores de uma vocação de universalização, não deveriam fazer
parte de uma agenda contra-hegemônica?
LUIZ WERNECK VIANNA é cientista político e
professor no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
AMBIÇÕES IMPERIAIS
Autor: Noam Chomsky
Tradução: C.E. de Andrade
Editora: Ediouro (tel. 0/xx/21/
3882-8200)
Quanto: R$ 34,90 (200 págs.)
A NOVA FACE DO IMPÉRIO
Autor: Tariq Ali
Tradução: Barbara Duarte
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 34,90 (216 págs.)
CULTURA E RESISTÊNCIA
Autor: Edward Said
Tradução: Barbara Duarte
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (230 págs.)
CONTRAGOLPES
Organizador: Emir Sader
Tradução: Maria Beatriz de Medina
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/
3875-7250)
Quanto: R$ 39 (264 págs.)
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