São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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A fênix vermelha

Para o crítico americano Marshall Berman, marxismo pode estar ressurgindo na China

MARSHALL BERMAN

As grandes manifestações na praça Tiananmen, em Pequim, em 1989, foram discussões poderosas com um governo que saudara a queda do autoritarismo maoísta, mas nunca chegou a reconhecer seu povo como pessoas ou cidadãos livres. O governo de hoje parece ser tão resoluto quanto o de ontem quando se trata de conservar fechadas as portas à democracia e aos direitos humanos. Mas o governo de hoje vem tendo êxito brilhante na abertura da economia nacional e na capacitação da China para participar da vida econômica global. As fábricas do sul da China hoje são as maiores produtoras mundiais não apenas de bens relativamente simples, como roupas e calçados, mas também de máquinas cada vez mais sofisticadas: computadores pessoais, aparelhos de DVD, fotocopiadoras e máquinas fotográficas digitais. Não apenas a China dominou as técnicas de produção em massa como vem demonstrando uma queda impressionante pelas altas finanças. Enquanto isso, desenvolveu uma cultura cinematográfica brilhante -um cinema que lembra o neo-realismo italiano e que vem levando ao mundo uma visão tanto do espaço maravilhoso das ruas quanto das pressões internas que movem as vidas chinesas. O aumento vertiginoso do poder da China e seu desenvolvimento acelerado formam uma das histórias mais instigantes do final do século 20. O governo fala em um discurso triunfalista, que, na realidade, é um eco notável da linguagem da Inglaterra do século 19, na época áurea daquilo que, mais tarde, os historiadores aprenderam a chamar de "Revolução Industrial". A Inglaterra, na época, desfrutava de um crescimento industrial tremendo e, a cada ano que passava, dominava uma parte maior do mundo. Seus meios de comunicação de massa estavam unidos numa orgia de autocelebração. No entanto seu nível de sofrimento humano também era assustadoramente alto. A Inglaterra vitoriana era líder mundial em termos de poder produtivo mas também de miséria humana. Muitas pessoas tinham consciência dessa miséria, mas, quando pensavam criticamente, criticavam a vida moderna como um todo: desejavam "livrar-se das artes modernas para livrar-se dos conflitos modernos". Marx era mais complexo: ele queria afirmar e celebrar o progresso humano mas também combater seus custos humanos ultrajantes.

Discurso da contradição
Seu pensamento pode ser descrito como um discurso da contradição. "Em nossos tempos, tudo parece conter em si seu contrário. Vemos as máquinas, dotadas do poder de diminuir e frutificar a mão-de-obra humana, impelindo essa mão-de-obra à fome e a sobrecarregando de trabalho. As fontes modernas de riqueza se transformam em fontes de carência, como sob o efeito de um feitiço estranho. As vitórias da arte parecem ser compradas pela perda do caráter." Existem bons motivos para dizer que, na China de hoje, "tudo parece conter em si seu contrário". É irônico que, durante décadas, uma paródia de marxismo tenha sido imposta a uma China atrasada e camponesa, que não podia de maneira nenhuma digeri-la. É apenas agora, quando a China passa por um processo de desenvolvimento dramático e explosivo, que o discurso da contradição de Marx pode ser uma poderosa visão crítica de sua vida real. Quando apresento esse argumento, falo na condição de alguém formado pela nova esquerda americana e européia. Nosso movimento, pós-Stálin e anti-stalinista, nasceu em 1956, quando eu era jovem. Hoje, meio século depois, talvez devêssemos ser descritos como a esquerda usada. É possível que não restem muitos de nós; é provável que nunca tenhamos sido muitos. Mas temos algo proveitoso a dizer. Para nós, a visão de subjetividade moderna de Marx é seu tema central. Marx compartilha a idéia de Hegel de que "o princípio do mundo moderno é a liberdade da subjetividade". Argumentamos que Marx parte dessa idéia e a aprofunda. A liberdade da subjetividade é o cerne vital da crítica que Marx faz ao capitalismo moderno. Marx pressupõe o Iluminismo e suas idéias centrais, os direitos humanos universais e a democracia política. Ele pressupõe as revoluções Inglesa, Americana, Francesa; ele vê o comunismo como uma maneira de essas revoluções cumprirem suas promessas rompidas de cidadania democrática e direitos humanos. Entre as gerações que fizeram as revoluções Russa e Chinesa, houve milhões de homens e mulheres que imaginaram o triunfo dessas revoluções, em 1917 e 1949, como uma oportunidade de cumprir essas promessas em suas próprias vidas. Mas as elites de Estado e partido que assumiram o controle da União Soviética e da República Popular da China eram, na melhor das hipóteses, indiferentes a essas liberdades e, com freqüência, agressivamente hostis a elas. As massas soviéticas e chinesas ansiavam pelo cumprimento das promessas da vida moderna. Mas as novas elites negaram que tais promessas alguma vez tivessem sido feitas. Os modelos políticos que significavam mais para elas eram os das comunas camponesas, dos mosteiros religiosos e dos impérios militares, todos coletividades avassaladoras que esmagavam o eu individual. O comunismo dos dirigentes foi formulado com mais clareza e simplicidade tosca no "Livrinho Vermelho" de Mao, nos anos 1960: "O eu não é nada; o coletivo é tudo". O que Marx queria dizer com comunismo não pode nem sequer ser imaginado até que o stalinismo e o maoísmo fossem derrubados. Apenas então é que sujeitos modernos podem emergir e agir.

Visão irônica
A visão de Marx da vida moderna é saturada de ironia. A primeira grande ironia de Marx é trágica: o capitalismo moderno promete a liberdade subjetiva, mas aliena as pessoas delas mesmas. As pressões da sociedade de mercado distorcem o indivíduo, convertendo-o em máquina de dinheiro (algumas dessas máquinas geram bem mais dinheiro do que outras). Mas descobrimos que os trabalhadores têm o poder de superar sua alienação, graças à segunda grande ironia de Marx, que é cômica. No "Manifesto", ele escreve: "A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e, com isso, as relações de produção, e, com elas, todas as relações da sociedade. [...] O revolucionar constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação duradouras distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e congeladas [...] são varridas e todas as recém-formadas se tornam antiquadas antes de conseguirem se ossificar. Tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é forçado a enfrentar [...] suas verdadeiras condições de vida e suas relações com os outros homens". O capitalismo é o único sistema social que oprime as pessoas de uma maneira que realmente as torna mais fortes e mais inteligentes. Crescendo e tentando viver em meio à perturbação ininterrupta, à incerteza e agitação constantes, com tudo se desfazendo no ar, todos os trabalhadores ganham uma educação gratuita e obrigatória naquilo que a velha gíria americana chamava de "a escola dos golpes duros". Que os trabalhadores se organizem, que criem sindicatos radicais não é apenas uma vitória política mas uma vitória da subjetividade.

Nostalgia iluminista
Parece existir, entre os intelectuais chineses de hoje, uma grande melancolia e nostalgia do demasiado breve "Iluminismo" chinês, desde a queda da Gangue dos Quatro [grupo de líderes do partido comunista chinês preso após a morte de Mao e apontado como responsável pela violência durante a Revolução Cultural] até as grandes manifestações da praça Tiananmen e um sentimento de amargura desesperançada em relação à repressão ao pensamento ocorrida após o massacre de Tiananmen. O que tudo isso tem a ver com Karl Marx? O "Manifesto Comunista" inclui duas sentenças incisivas que nos ajudam a enxergar a conexão. "A burguesia", diz Marx, "destituiu de seu halo todas as ocupações anteriormente honradas e vistas com respeito reverente. Ela converteu o médico, o advogado, o sacerdote, o poeta, o homem de ciência em seus assalariados pagos". Segundo essa visão, os intelectuais continuam presentes, mas foram rebaixados, incapacitados, destituídos de suas habilidades, afundados no proletariado, onde sobrevivem vendendo seus cérebros para finalidades puramente técnicas. Para Marx, porém, reconhecer-se como proletário, como membro da "moderna classe trabalhadora", é apenas o primeiro capítulo numa história dialética. Em sua narrativa, assim como em algumas das maiores obras da literatura mundial ("Édipo Rei", de Sófocles, "O Rei Lear", de Shakespeare), o herói é atirado do topo da sociedade para seu patamar mais baixo -e então se reergue. O homem que é "destituído de seu halo", de seu poder sobre as velhas idéias, desenvolve o poder de gerar novas idéias. Ser "proletarizado" é um destino terrível. Mas o capitalismo possui o poder irônico de oprimir as pessoas de uma maneira que as torna inteligentes e fortes. Assim, o intelectual que é expulso de sua classe pode aprender uma nova maneira de enxergar a sociedade como um todo, de estabelecer conexões entre seres humanos que possuem um horizonte mais amplo e mobilizam emoções mais profundas do que banqueiros e burocratas são capazes de conceber. Quando ele "reforma sua cabeça", alimentando sua subjetividade ferida, pode aprender uma nova solidariedade com outros sujeitos tão feridos quanto ele. Eles podem imaginar um mundo em que "o livre desenvolvimento de cada um é a base do livre desenvolvimento de todos". Será que eles podem realmente criar tal mundo? Será que alguém pode? Não sei. Mas o poder de pelo menos imaginar um mundo em que as pessoas sejam sujeitos livres juntos, em lugar de máquinas de gerar dinheiro, é capaz de alimentar e enriquecer o mundo em que vivemos hoje. No momento em que a China se recobre de máquinas de fazer dinheiro, a história de Karl Marx na China pode estar apenas começando.


MARSHALL BERMAN é professor na Universidade da Cidade de Nova York e autor de "Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar" e "Aventuras no Marxismo" (ambos pela Cia. das Letras).
Tradução de Clara Allain.


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