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A fênix vermelha
Para o
crítico
americano
Marshall Berman,
marxismo pode estar ressurgindo na China
MARSHALL BERMAN
As grandes manifestações na praça Tiananmen, em Pequim, em 1989, foram discussões poderosas com um governo que
saudara a queda do autoritarismo maoísta, mas nunca chegou
a reconhecer seu povo como
pessoas ou cidadãos livres. O
governo de hoje parece ser tão
resoluto quanto o de ontem
quando se trata de conservar
fechadas as portas à democracia e aos direitos humanos.
Mas o governo de hoje vem
tendo êxito brilhante na abertura da economia nacional e na
capacitação da China para participar da vida econômica global. As fábricas do sul da China
hoje são as maiores produtoras
mundiais não apenas de bens
relativamente simples, como
roupas e calçados, mas também de máquinas cada vez
mais sofisticadas: computadores pessoais, aparelhos de
DVD, fotocopiadoras e máquinas fotográficas digitais.
Não apenas a China dominou as técnicas de produção
em massa como vem demonstrando uma queda impressionante pelas altas finanças. Enquanto isso, desenvolveu uma
cultura cinematográfica brilhante -um cinema que lembra o neo-realismo italiano e
que vem levando ao mundo
uma visão tanto do espaço maravilhoso das ruas quanto das
pressões internas que movem
as vidas chinesas.
O aumento vertiginoso do
poder da China e seu desenvolvimento acelerado formam
uma das histórias mais instigantes do final do século 20.
O governo fala em um discurso triunfalista, que, na realidade, é um eco notável da linguagem da Inglaterra do século
19, na época áurea daquilo que,
mais tarde, os historiadores
aprenderam a chamar de "Revolução Industrial".
A Inglaterra, na época, desfrutava de um crescimento industrial tremendo e, a cada ano
que passava, dominava uma
parte maior do mundo. Seus
meios de comunicação de massa estavam unidos numa orgia
de autocelebração. No entanto
seu nível de sofrimento humano também era assustadoramente alto. A Inglaterra vitoriana era líder mundial em termos de poder produtivo mas
também de miséria humana.
Muitas pessoas tinham consciência dessa miséria, mas,
quando pensavam criticamente, criticavam a vida moderna
como um todo: desejavam "livrar-se das artes modernas para livrar-se dos conflitos modernos". Marx era mais complexo: ele queria afirmar e celebrar o progresso humano mas
também combater seus custos
humanos ultrajantes.
Discurso da contradição
Seu pensamento pode ser
descrito como um discurso da
contradição. "Em nossos tempos, tudo parece conter em si
seu contrário. Vemos as máquinas, dotadas do poder de diminuir e frutificar a mão-de-obra
humana, impelindo essa mão-de-obra à fome e a sobrecarregando de trabalho. As fontes
modernas de riqueza se transformam em fontes de carência,
como sob o efeito de um feitiço
estranho. As vitórias da arte parecem ser compradas pela perda do caráter."
Existem bons motivos para
dizer que, na China de hoje,
"tudo parece conter em si seu
contrário". É irônico que, durante décadas, uma paródia de
marxismo tenha sido imposta a
uma China atrasada e camponesa, que não podia de maneira
nenhuma digeri-la. É apenas
agora, quando a China passa
por um processo de desenvolvimento dramático e explosivo,
que o discurso da contradição
de Marx pode ser uma poderosa visão crítica de sua vida real.
Quando apresento esse argumento, falo na condição de alguém formado pela nova esquerda americana e européia.
Nosso movimento, pós-Stálin e anti-stalinista, nasceu em
1956, quando eu era jovem. Hoje, meio século depois, talvez
devêssemos ser descritos como
a esquerda usada. É possível
que não restem muitos de nós;
é provável que nunca tenhamos
sido muitos. Mas temos algo
proveitoso a dizer. Para nós, a
visão de subjetividade moderna de Marx é seu tema central.
Marx compartilha a idéia de
Hegel de que "o princípio do
mundo moderno é a liberdade
da subjetividade". Argumentamos que Marx parte dessa idéia
e a aprofunda. A liberdade da
subjetividade é o cerne vital da
crítica que Marx faz ao capitalismo moderno.
Marx pressupõe o Iluminismo e suas idéias centrais, os direitos humanos universais e a
democracia política. Ele pressupõe as revoluções Inglesa,
Americana, Francesa; ele vê o
comunismo como uma maneira de essas revoluções cumprirem suas promessas rompidas
de cidadania democrática e direitos humanos.
Entre as gerações que fizeram as revoluções Russa e Chinesa, houve milhões de homens e mulheres que imaginaram o triunfo dessas revoluções, em 1917 e 1949, como uma
oportunidade de cumprir essas
promessas em suas próprias vidas. Mas as elites de Estado e
partido que assumiram o controle da União Soviética e da
República Popular da China
eram, na melhor das hipóteses,
indiferentes a essas liberdades
e, com freqüência, agressivamente hostis a elas.
As massas soviéticas e chinesas ansiavam pelo cumprimento das promessas da vida moderna. Mas as novas elites negaram que tais promessas alguma vez tivessem sido feitas.
Os modelos políticos que significavam mais para elas eram
os das comunas camponesas,
dos mosteiros religiosos e dos
impérios militares, todos coletividades avassaladoras que esmagavam o eu individual. O comunismo dos dirigentes foi formulado com mais clareza e
simplicidade tosca no "Livrinho Vermelho" de Mao, nos
anos 1960: "O eu não é nada; o
coletivo é tudo".
O que Marx queria dizer com
comunismo não pode nem sequer ser imaginado até que o
stalinismo e o maoísmo fossem
derrubados. Apenas então é
que sujeitos modernos podem
emergir e agir.
Visão irônica
A visão de Marx da vida moderna é saturada de ironia. A
primeira grande ironia de Marx
é trágica: o capitalismo moderno promete a liberdade subjetiva, mas aliena as pessoas delas
mesmas. As pressões da sociedade de mercado distorcem o
indivíduo, convertendo-o em
máquina de dinheiro (algumas
dessas máquinas geram bem
mais dinheiro do que outras).
Mas descobrimos que os trabalhadores têm o poder de superar sua alienação, graças à segunda grande ironia de Marx,
que é cômica.
No "Manifesto", ele escreve:
"A burguesia não pode existir
sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e, com isso, as relações
de produção, e, com elas, todas
as relações da sociedade. [...] O
revolucionar constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação
duradouras distinguem a época
burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e
congeladas [...] são varridas e
todas as recém-formadas se
tornam antiquadas antes de
conseguirem se ossificar. Tudo
que é sólido se desmancha no
ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é forçado a
enfrentar [...] suas verdadeiras
condições de vida e suas relações com os outros homens".
O capitalismo é o único sistema social que oprime as pessoas de uma maneira que realmente as torna mais fortes e
mais inteligentes.
Crescendo e tentando viver
em meio à perturbação ininterrupta, à incerteza e agitação
constantes, com tudo se desfazendo no ar, todos os trabalhadores ganham uma educação
gratuita e obrigatória naquilo
que a velha gíria americana
chamava de "a escola dos golpes duros". Que os trabalhadores se organizem, que criem
sindicatos radicais não é apenas uma vitória política mas
uma vitória da subjetividade.
Nostalgia iluminista
Parece existir, entre os intelectuais chineses de hoje, uma
grande melancolia e nostalgia
do demasiado breve "Iluminismo" chinês, desde a queda da
Gangue dos Quatro [grupo de
líderes do partido comunista
chinês preso após a morte de
Mao e apontado como responsável pela violência durante a
Revolução Cultural] até as
grandes manifestações da praça Tiananmen e um sentimento de amargura desesperançada em relação à repressão ao
pensamento ocorrida após o
massacre de Tiananmen.
O que tudo isso tem a ver com
Karl Marx? O "Manifesto Comunista" inclui duas sentenças
incisivas que nos ajudam a enxergar a conexão. "A burguesia", diz Marx, "destituiu de seu
halo todas as ocupações anteriormente honradas e vistas
com respeito reverente. Ela
converteu o médico, o advogado, o sacerdote, o poeta, o homem de ciência em seus assalariados pagos".
Segundo essa visão, os intelectuais continuam presentes,
mas foram rebaixados, incapacitados, destituídos de suas habilidades, afundados no proletariado, onde sobrevivem vendendo seus cérebros para finalidades puramente técnicas.
Para Marx, porém, reconhecer-se como proletário, como
membro da "moderna classe
trabalhadora", é apenas o primeiro capítulo numa história
dialética.
Em sua narrativa, assim como em algumas das maiores
obras da literatura mundial
("Édipo Rei", de Sófocles, "O
Rei Lear", de Shakespeare), o
herói é atirado do topo da sociedade para seu patamar mais
baixo -e então se reergue.
O homem que é "destituído
de seu halo", de seu poder sobre
as velhas idéias, desenvolve o
poder de gerar novas idéias. Ser
"proletarizado" é um destino
terrível.
Mas o capitalismo possui o
poder irônico de oprimir as
pessoas de uma maneira que as
torna inteligentes e fortes. Assim, o intelectual que é expulso
de sua classe pode aprender
uma nova maneira de enxergar
a sociedade como um todo, de
estabelecer conexões entre seres humanos que possuem um
horizonte mais amplo e mobilizam emoções mais profundas
do que banqueiros e burocratas
são capazes de conceber.
Quando ele "reforma sua cabeça", alimentando sua subjetividade ferida, pode aprender
uma nova solidariedade com
outros sujeitos tão feridos
quanto ele. Eles podem imaginar um mundo em que "o livre
desenvolvimento de cada um é
a base do livre desenvolvimento de todos". Será que eles podem realmente criar tal mundo? Será que alguém pode?
Não sei. Mas o poder de pelo
menos imaginar um mundo em
que as pessoas sejam sujeitos livres juntos, em lugar de máquinas de gerar dinheiro, é capaz
de alimentar e enriquecer o
mundo em que vivemos hoje.
No momento em que a China se
recobre de máquinas de fazer
dinheiro, a história de Karl
Marx na China pode estar apenas começando.
MARSHALL BERMAN é professor na Universidade da Cidade de Nova York e autor de "Tudo
Que É Sólido Desmancha no Ar" e "Aventuras
no Marxismo" (ambos pela Cia. das Letras).
Tradução de Clara Allain.
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