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Ponto de Fuga
Menina má
A invenção do suspense, a progressão serena para o clímax, o contrabando das perversões eróticas; tudo isso evoca um forte e elevado espírito de Hitchcock
em "A Órfã"
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Nossa época sacraliza as
crianças. Elas viraram
anjos inocentes, sem
maldades nem sexualidade, vítimas potenciais de adultos
maus. Foram exploradas com
sentimentalismo pelo cinema
do Terceiro Mundo.
Ao contrário, Jaume Collet-Serra enfrenta com jubilação,
no filme "A Órfã", os clichês
politicamente corretos.
"A Casa de Cera", que foi seu
primeiro longa-metragem, corrompia as aparências, juntando
conto infantil e pesadelo surreal. Criava ali o duplo do mundo para modelar as mais estranhas inquietações. Um de seus
centros já era então a família e
o lar.
"A Órfã", um thriller, é bem
menos sanguinolento que "A
Casa de Cera". Mas os lugares,
os objetos, tudo vem habitado
por ameaças mudas. Os personagens, vividos por ótimos atores, como que vagueiam, vulneráveis e inconscientes.
Há algo de Hitchcock em "A
Órfã": certos detalhes, como o
buquê de flores, que remete ao
vestido de Rebecca [do filme
homônimo] e, sobretudo, a explicação do mistério, apoteose
de racionalismo delirante, que
lembra "Psicose".
Não se trata, porém, de semelhança estilística, nem de
homenagens, menos ainda de
vampirismo, como o de Brian
de Palma sobre a obra do grande mestre. Mas a invenção do
suspense (prodigiosa cena no
parquinho infantil); a progressão serena para o clímax de expectativa apavorada, tanto no
andamento geral como em cada episódio; o contrabando das
perversões eróticas; tudo isso
evoca um forte e elevado espírito hitchcockiano.
Sebo
Há um bom romance brasileiro cujo núcleo se assemelha
ao de "A Órfã": é "Angélica", da
Sra. Leandro Dupré [1898-1984]. Escritora de valor, hoje
esquecida, ela foi muito popular em outros tempos.
Bumbo
As batidas, as exclamações,
vibravam um ritual regrado.
Transformaram-se depois em
paisagens de brumas, ou de sedas, ou de azuis, flutuantes. Intensidade de ópera; matéria colorida do mais belo poema sinfônico. Era "Hiérophonie 5",
escrita em 1975, de Yoshihisa
Taïra (1937-2005), japonês de
nacionalidade francesa.
A obra encerrou o primeiro
concerto do 44º Festival Música Nova, no Sesc Consolação
(São Paulo). O resto do programa ficou aquém: composição
acadêmica (no sentido em que
a vanguarda engendra os seus
academismos) de Gérard Grisey; um pouco mais viva a de
Raphael Cendo; exploração de
timbres por Ed Campion.
Tudo bastante cerebral, com
jeito de exercício bem comportado, como ocorre tantas vezes
com a música contemporânea.
Os intérpretes, Les Percussions
de Strasbourg, são um conjunto
ilustre de virtuoses que aliaram
percussão e "conceito original
da linguagem contemporânea
de vanguarda", como trombeteia o programa. São fenomenais de precisão.
Não há nada de dionisíaco
em seus tambores, gongos, guizos, tímpanos e címbalos, nenhuma entrega de si; tudo é
controlado e exato: raras vezes
a música contemporânea se
embriaga.
Espuma
Cheio de boas intenções, o
filme alemão "A Onda" centra-se na tentação dos comportamentos nazistas. Tem bons
personagens e atores. Aplicado,
demonstrativo em suas simplificações, não compartilha nem
intensidade, nem mal-estar
com o espectador, que fica de
fora. Lembrar "Elefante", de
Gus van Sant ou, melhor ainda,
"O Senhor das Moscas", de Peter Brook, é reduzir "A Onda" à
sua real estatura.
Há, porém, dois pressupostos convincentes e pouco habituais: a ordem brotando da própria ordem, sem apoiar-se em
ideologia que a justifique, como
demônio engendrado por si
mesmo, dentro de seu próprio
vazio; e o caráter nazista infiltrado no cerne das competições
esportivas.
jorgecoli@uol.com.br
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