São Paulo, domingo, 13 de setembro de 2009

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Ponto de Fuga

Menina má


A invenção do suspense, a progressão serena para o clímax, o contrabando das perversões eróticas; tudo isso evoca um forte e elevado espírito de Hitchcock em "A Órfã"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Nossa época sacraliza as crianças. Elas viraram anjos inocentes, sem maldades nem sexualidade, vítimas potenciais de adultos maus. Foram exploradas com sentimentalismo pelo cinema do Terceiro Mundo.
Ao contrário, Jaume Collet-Serra enfrenta com jubilação, no filme "A Órfã", os clichês politicamente corretos.
"A Casa de Cera", que foi seu primeiro longa-metragem, corrompia as aparências, juntando conto infantil e pesadelo surreal. Criava ali o duplo do mundo para modelar as mais estranhas inquietações. Um de seus centros já era então a família e o lar.
"A Órfã", um thriller, é bem menos sanguinolento que "A Casa de Cera". Mas os lugares, os objetos, tudo vem habitado por ameaças mudas. Os personagens, vividos por ótimos atores, como que vagueiam, vulneráveis e inconscientes.
Há algo de Hitchcock em "A Órfã": certos detalhes, como o buquê de flores, que remete ao vestido de Rebecca [do filme homônimo] e, sobretudo, a explicação do mistério, apoteose de racionalismo delirante, que lembra "Psicose".
Não se trata, porém, de semelhança estilística, nem de homenagens, menos ainda de vampirismo, como o de Brian de Palma sobre a obra do grande mestre. Mas a invenção do suspense (prodigiosa cena no parquinho infantil); a progressão serena para o clímax de expectativa apavorada, tanto no andamento geral como em cada episódio; o contrabando das perversões eróticas; tudo isso evoca um forte e elevado espírito hitchcockiano.

Sebo
Há um bom romance brasileiro cujo núcleo se assemelha ao de "A Órfã": é "Angélica", da Sra. Leandro Dupré [1898-1984]. Escritora de valor, hoje esquecida, ela foi muito popular em outros tempos.

Bumbo
As batidas, as exclamações, vibravam um ritual regrado. Transformaram-se depois em paisagens de brumas, ou de sedas, ou de azuis, flutuantes. Intensidade de ópera; matéria colorida do mais belo poema sinfônico. Era "Hiérophonie 5", escrita em 1975, de Yoshihisa Taïra (1937-2005), japonês de nacionalidade francesa.
A obra encerrou o primeiro concerto do 44º Festival Música Nova, no Sesc Consolação (São Paulo). O resto do programa ficou aquém: composição acadêmica (no sentido em que a vanguarda engendra os seus academismos) de Gérard Grisey; um pouco mais viva a de Raphael Cendo; exploração de timbres por Ed Campion.
Tudo bastante cerebral, com jeito de exercício bem comportado, como ocorre tantas vezes com a música contemporânea.
Os intérpretes, Les Percussions de Strasbourg, são um conjunto ilustre de virtuoses que aliaram percussão e "conceito original da linguagem contemporânea de vanguarda", como trombeteia o programa. São fenomenais de precisão.
Não há nada de dionisíaco em seus tambores, gongos, guizos, tímpanos e címbalos, nenhuma entrega de si; tudo é controlado e exato: raras vezes a música contemporânea se embriaga.

Espuma
Cheio de boas intenções, o filme alemão "A Onda" centra-se na tentação dos comportamentos nazistas. Tem bons personagens e atores. Aplicado, demonstrativo em suas simplificações, não compartilha nem intensidade, nem mal-estar com o espectador, que fica de fora. Lembrar "Elefante", de Gus van Sant ou, melhor ainda, "O Senhor das Moscas", de Peter Brook, é reduzir "A Onda" à sua real estatura.
Há, porém, dois pressupostos convincentes e pouco habituais: a ordem brotando da própria ordem, sem apoiar-se em ideologia que a justifique, como demônio engendrado por si mesmo, dentro de seu próprio vazio; e o caráter nazista infiltrado no cerne das competições esportivas.


jorgecoli@uol.com.br


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