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Biografia autorizada
Retratando
tanto os grandes líderes quanto pessoas comuns, a historiografia centrada em personagens reconquista prestígio
9.jun.09/Efe
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Busto do imperador francês Napoleão 3º (1808-73), em exposição no museu Metropolitan, em Nova York
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
O gênero histórico-biográfico ganhou
um extraordinário
prestígio nas últimas décadas em
todo o mundo ocidental. Mas
convém ressalvar que a biografia nunca perdeu prestígio entre o público letrado, apesar da
sua desvalorização nos meios
acadêmicos.
Tudo se passa, no passado e
no presente, como se o leitor,
ao colocar na balança a famosa
frase de Karl Marx no "Dezoito
Brumário de Luís Bonaparte",
estivesse convencido de que o
significado das ações humanas
fosse muito maior do que os limites impostos pelas circunstâncias históricas herdadas do
passado.
Além disso, concorre para o
prestígio das biografias a curiosidade despertada por livros
que tratam de derrubar do pedestal da glória figuras como o
citado Marx, Freud, Roosevelt
e tantas outras, desvendando
aspectos íntimos de suas vidas.
Por último, vale lembrar, nos
dias que correm, a intensificação do fascínio exercido pelos
grandes personagens, desde
um austero Pedro 2º ao atacante Cristiano Ronaldo, recebido
como rei pelos torcedores do
Real Madrid.
Por que o gênero biográfico
foi desvalorizado aos olhos de
quase todos os historiadores
profissionais para ressurgir em
anos recentes? Curiosamente,
a desvalorização teve muito a
ver com novos caminhos trilhados pelos especialistas, a
partir das primeiras décadas do
século 20.
Um ponto de referência sempre citado é a chamada Escola
dos "Annales" [ligada à revista
francesa "Annales d'Histoire
Économique et Sociale", criada
em 1929], em que se destacaram nomes como os pais fundadores Lucien Febvre, Marc
Bloch e, sucessivamente, Fernand Braudel e Emmanuel Le
Roy Ladurie.
Esses autores não tiveram
por objetivo extrair leis da história, à semelhança das ciências naturais, na linha dos positivistas. Mas trataram de aprofundar o conhecimento histórico, criticando a chamada
"história-batalha" e o excessivo
interesse no estudo dos grandes personagens.
Tipicamente, Braudel [1902-85] voltou-se para o ritmo das
mudanças mais lentas, para a
história de longa duração, corporificada na história das mentalidades. Para que o leitor não
tome essa transformação em
termos absolutos, lembro que
Lucien Febvre [1878-1956] escreveu uma excelente biografia
de Martinho Lutero, explorando as características de sua
mentalidade religiosa.
Ainda no âmbito da história
acadêmica, uma preocupação
constante, ontem como hoje,
foi a de escrever biografias relevantes, no sentido de abranger texto e contexto; ou seja, o
personagem e o mundo no qual
ele viveu, de tal forma que o
personagem se explica, sob certos aspectos, em função de sua
época, cujo entendimento, por
outro lado, mais se ilumina pelo prisma do biografado.
Novas roupagens
Ao mesmo tempo, a figura
central ganha maior consistência ao se analisarem seus laços
familiares, sua carreira, seus
traços psicológicos, que incluem uma incursão no terreno
movediço da psico-história.
O retorno impetuoso do gênero biográfico, nos meios acadêmicos, veio acompanhado de
novas roupagens e do ingresso
de novos personagens. Historiadores de primeira plana, como Ian Kershaw e Simon Sebag
Montefiore, escreveram vários
volumes sobre os dois maiores
tiranos do século 20 -Hitler e
Stálin. Aprofundaram, assim,
os contornos de duas figuras
execráveis e, a partir daí, empreenderam uma análise inovadora dos regimes nazista e
comunista.
Novos personagens entraram em cena, ou seja, a gente
simples, alterando a ênfase da
história social que deixou, assim, um pouco à margem as
grandes estruturas, os movimentos sociais, para se concentrar, por exemplo, na figura do
camponês Martin Guerre, traçada por Natalie Zemon Davis
("O Retorno de Martin Guerre"), ou na do moleiro Menocchio, de Carlo Ginzburg ("O
Queijo e os Vermes"), ambos de
1987, na tradução brasileira.
Curiosamente -lembro de
passagem-, a malsinada "história-batalha" voltou a ganhar
importância ao receber novo
tratamento. É o caso do livro de
Georges Duby "O Domingo de
Bouvines", analisando um episódio militar crucial da história
da França, datado de 1214, que
firmou o poder da monarquia.
Engenho
Uma questão que o historiador tem de enfrentar, ao lidar
com o gênero, é o critério de relevância. Como ele não se limita ao objetivo de escrever uma
narrativa engenhosa, de que
forma poderia estabelecer regras que distinguissem, nos pequenos fatos de vida do personagem, o que é relevante do que
é mera fofoca, ou banalidade do
cotidiano?
De fato, as regras não existem e aí abre-se para o historiador um campo seletivo em que
o engenho, a arte e a intuição
entram em grau ponderável.
Como me concentrei nas biografias acadêmicas, ressalto
que não desprezo, de modo algum, as biografias escritas por
outros profissionais, como é o
caso dos jornalistas.
Em certos casos, a tendência
a fazer passar por realidade o
que é pura imaginação não é
uma boa receita. Mas não faltam biografias de grande êxito e
bom padrão escritas por jornalistas, contribuindo para fazer
avançar o conhecimento histórico do grande público, a quem
o historiador poucas vezes
alcança.
Por fim, a boa biografia escrita por não profissionais encerra uma lição para os historiadores, ao oferecer uma narrativa
em estilo límpido, sem os cacoetes do jargão disciplinar. Essa virtude não é pequena, se a
gente se lembrar que, sem conter uma narrativa atraente, a
biografia fracassa.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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