São Paulo, domingo, 13 de setembro de 2009

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Biografia autorizada

Retratando tanto os grandes líderes quanto pessoas comuns, a historiografia centrada em personagens reconquista prestígio

9.jun.09/Efe
Busto do imperador francês Napoleão 3º (1808-73), em exposição no museu Metropolitan, em Nova York

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

O gênero histórico-biográfico ganhou um extraordinário prestígio nas últimas décadas em todo o mundo ocidental. Mas convém ressalvar que a biografia nunca perdeu prestígio entre o público letrado, apesar da sua desvalorização nos meios acadêmicos.
Tudo se passa, no passado e no presente, como se o leitor, ao colocar na balança a famosa frase de Karl Marx no "Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", estivesse convencido de que o significado das ações humanas fosse muito maior do que os limites impostos pelas circunstâncias históricas herdadas do passado.
Além disso, concorre para o prestígio das biografias a curiosidade despertada por livros que tratam de derrubar do pedestal da glória figuras como o citado Marx, Freud, Roosevelt e tantas outras, desvendando aspectos íntimos de suas vidas.
Por último, vale lembrar, nos dias que correm, a intensificação do fascínio exercido pelos grandes personagens, desde um austero Pedro 2º ao atacante Cristiano Ronaldo, recebido como rei pelos torcedores do Real Madrid.
Por que o gênero biográfico foi desvalorizado aos olhos de quase todos os historiadores profissionais para ressurgir em anos recentes? Curiosamente, a desvalorização teve muito a ver com novos caminhos trilhados pelos especialistas, a partir das primeiras décadas do século 20.
Um ponto de referência sempre citado é a chamada Escola dos "Annales" [ligada à revista francesa "Annales d'Histoire Économique et Sociale", criada em 1929], em que se destacaram nomes como os pais fundadores Lucien Febvre, Marc Bloch e, sucessivamente, Fernand Braudel e Emmanuel Le Roy Ladurie.
Esses autores não tiveram por objetivo extrair leis da história, à semelhança das ciências naturais, na linha dos positivistas. Mas trataram de aprofundar o conhecimento histórico, criticando a chamada "história-batalha" e o excessivo interesse no estudo dos grandes personagens.
Tipicamente, Braudel [1902-85] voltou-se para o ritmo das mudanças mais lentas, para a história de longa duração, corporificada na história das mentalidades. Para que o leitor não tome essa transformação em termos absolutos, lembro que Lucien Febvre [1878-1956] escreveu uma excelente biografia de Martinho Lutero, explorando as características de sua mentalidade religiosa.
Ainda no âmbito da história acadêmica, uma preocupação constante, ontem como hoje, foi a de escrever biografias relevantes, no sentido de abranger texto e contexto; ou seja, o personagem e o mundo no qual ele viveu, de tal forma que o personagem se explica, sob certos aspectos, em função de sua época, cujo entendimento, por outro lado, mais se ilumina pelo prisma do biografado.

Novas roupagens
Ao mesmo tempo, a figura central ganha maior consistência ao se analisarem seus laços familiares, sua carreira, seus traços psicológicos, que incluem uma incursão no terreno movediço da psico-história.
O retorno impetuoso do gênero biográfico, nos meios acadêmicos, veio acompanhado de novas roupagens e do ingresso de novos personagens. Historiadores de primeira plana, como Ian Kershaw e Simon Sebag Montefiore, escreveram vários volumes sobre os dois maiores tiranos do século 20 -Hitler e Stálin. Aprofundaram, assim, os contornos de duas figuras execráveis e, a partir daí, empreenderam uma análise inovadora dos regimes nazista e comunista.
Novos personagens entraram em cena, ou seja, a gente simples, alterando a ênfase da história social que deixou, assim, um pouco à margem as grandes estruturas, os movimentos sociais, para se concentrar, por exemplo, na figura do camponês Martin Guerre, traçada por Natalie Zemon Davis ("O Retorno de Martin Guerre"), ou na do moleiro Menocchio, de Carlo Ginzburg ("O Queijo e os Vermes"), ambos de 1987, na tradução brasileira.
Curiosamente -lembro de passagem-, a malsinada "história-batalha" voltou a ganhar importância ao receber novo tratamento. É o caso do livro de Georges Duby "O Domingo de Bouvines", analisando um episódio militar crucial da história da França, datado de 1214, que firmou o poder da monarquia.

Engenho
Uma questão que o historiador tem de enfrentar, ao lidar com o gênero, é o critério de relevância. Como ele não se limita ao objetivo de escrever uma narrativa engenhosa, de que forma poderia estabelecer regras que distinguissem, nos pequenos fatos de vida do personagem, o que é relevante do que é mera fofoca, ou banalidade do cotidiano?
De fato, as regras não existem e aí abre-se para o historiador um campo seletivo em que o engenho, a arte e a intuição entram em grau ponderável.
Como me concentrei nas biografias acadêmicas, ressalto que não desprezo, de modo algum, as biografias escritas por outros profissionais, como é o caso dos jornalistas.
Em certos casos, a tendência a fazer passar por realidade o que é pura imaginação não é uma boa receita. Mas não faltam biografias de grande êxito e bom padrão escritas por jornalistas, contribuindo para fazer avançar o conhecimento histórico do grande público, a quem o historiador poucas vezes alcança.
Por fim, a boa biografia escrita por não profissionais encerra uma lição para os historiadores, ao oferecer uma narrativa em estilo límpido, sem os cacoetes do jargão disciplinar. Essa virtude não é pequena, se a gente se lembrar que, sem conter uma narrativa atraente, a biografia fracassa.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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