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Uma era termina
HISTORIADOR
AFIRMA QUE
"GRANDE CICLO IDEOLÓGICO"
DA ECONOMIA ORTODOXA ESTÁ CHEGANDO
AO FIM
Ron Edmonds - 20.jan.09/Associated Press
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O ex-presidente dos EUA George W. Bush (à dir.) abraça o presidente Barack Obama no dia da transferência do cargo
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Para o historiador britânico Tony Judt, o
mundo assiste aos últimos momentos da
hegemonia dos economistas ortodoxos no debate
de políticas públicas.
O autor de "Pós-Guerra -
Uma História da Europa desde
1945" (ed. Objetiva) e professor
da Universidade de Nova York
chama a atenção para os "grandes e longos ciclos de linguagem política hegemônica na
história", dos quais, segundo
ele, ninguém escapa.
O mais recente deles, iniciado nos anos 70, privilegia argumentos estritamente financeiros, medidas de eficiência e
contribuições para o crescimento do PIB como critérios
de avaliação de decisões coletivas das sociedades.
Tal ideologia tem raízes na
cultura e na sociedade americanas, por um lado, onde prevalece a desconfiança de que
perdas individuais (em pagamentos de impostos, por
exemplo) possam levar a ganhos públicos e coletivos, e, por
outro, nas origens de um novo
pensamento liberal reativo às
grandes intervenções estatais
do fascismo e do nazismo.
Há sinais, ele diz, de que tais
parâmetros de debate estejam
se esgotando, mas tal "ciclo"
não chegará ao fim, defende
Judt, sem fazer uma última
grande vítima: a reforma do
sistema de saúde nos Estados
Unidos, proposta pelo presidente Barack Obama.
FOLHA - A que o sr. atribui as fortes
resistências que Obama tem enfrentado para levar adiante seu plano de
reforma na saúde nos EUA?
TONY JUDT - Se você fizer uma
pesquisa com os eleitores americanos, e questioná-los se querem uma cobertura médica
mais abrangente, eles dirão que
sim. Se perguntar se apoiam
medidas que aumentem a expectativa de vida da população,
dirão que sim. Se perguntar se
apoiam atendimento médico
para todos, mesmo para os que
tenham problemas financeiros,
dirão que sim.
O problema então é a disputa
retórica que cerca essa discussão. Os eleitores americanos
querem tudo o que o eleitorado
austríaco ou sueco quer em termos de saúde ou educação,
mas, se você perguntar a eles se
querem a social-democracia, se
querem a medicina estatal que
garante esses direitos e esses
sistemas, eles dirão que não.
Há duas razões para isso,
uma mais antiga, outra mais recente. A razão antiga tem a ver
com a resistência ideológica,
retórica à ideia de governo centralizado, em particular um governo centralizado tomando
dinheiro das pessoas para usá-lo nesses programas. Isso sempre foi combatido nos EUA.
Mas a razão mais nova é que
o centro de gravidade dos debates sobre políticas públicas migrou para longe das preocupações sociais e se aproximou do
discurso econômico, em que as
políticas são avaliadas por um
critério de ganho para o crescimento econômico ou por um
critério estrito de eficiência.
Estamos lidando com um tipo de padrão retórico que tem
grande dificuldade de discutir
os efeitos sociais de um programa sem antes perguntar pelos
critérios de eficiência desses
gastos, que obviamente não são
o melhor critério de avaliação.
FOLHA - Por que o sr. crê que a disciplina econômica ganhou essa predominância no debate político e intelectual nos EUA?
JUDT - Em parte porque as
condições que alimentavam o
debate entre os anos 20 e os
anos 60, de medo de revolta social, de medo em relação às possíveis consequências políticas
de injustiças sociais ou desigualdades econômicas, foram
em parte superadas.
Devemos lembrar do choque
que foram a Grande Depressão
e a Segunda Guerra Mundial
nas gerações que as experimentaram, e o impacto que tiveram
nas políticas públicas.
Creio que uma das razões por
que esse modo de ver a ação estatal foi abandonado nos EUA
tem a ver com o fato de que políticas públicas que se baseiam
em impostos e em um governo
central que redistribua em serviços o dinheiro recebido dependem de um alto grau de
confiança entre as pessoas -e
nos governos-, algo que funciona melhor em sociedades
menores e mais homogêneas,
como a Suécia ou a Holanda.
Esse modelo não funciona tão
bem em sociedades grandes,
heterogêneas e desiguais, como
os EUA, em que as pessoas lidam com outras em que não
necessariamente confiam.
Os EUA sempre foram marcados pela "política da suspeição", em que se diz que o mercado funciona melhor porque
maximiza os interesses individuais em benefícios públicos.
FOLHA - Então conta o fato de os
EUA serem uma sociedade multiétnica e desigual?
JUDT - Esse é um fator bastante importante. Também há
uma tendência cultural, que
provavelmente está diminuindo, de crença na melhora
pessoal, no avanço econômico
individual.
Na Europa, a grande maioria
das pessoas não espera que
seus filhos pertençam aos 5%
mais ricos. Quando questionados se gostariam de pagar impostos e ter garantias de que o
Estado protegerá a maioria dos
indivíduos de incertezas, os europeus dizem que sim. Porque
veem a si mesmos como os beneficiários dessas políticas.
Quanto aos americanos, eles
tendem a crer que, se pagarem
muitos impostos, outros serão
os beneficiários.
FOLHA - Do que o sr. diz, é possível
afirmar que a ideia de "homem econômico", que raciocina em termos
de ganhos pessoais, e a ideia de livre
iniciativa sem intervenção estatal,
que são pilares da economia ortodoxa hegemônica nas últimas décadas, têm raízes culturais nos EUA. Há
uma relação entre o sucesso dessas
ideias e o tipo de sociedade?
JUDT - Totalmente. Mas é preciso relacionar a força que essas
ideias tiveram a partir do grande economista austríaco [Friedrich von] Hayek, que inspirou
boa parte das teorias econômicas nos EUA, e sua experiência
política na Áustria do entreguerras.
Para ele, a intervenção estatal sempre leva à tirania política. Se você controla a economia, termina controlando a sociedade. Essas teorias econômicas ganharam força com Hayek, que atacava a social-democracia europeia, argumentando
que suas políticas de intervenção e bem-estar social levariam
ao fortalecimento do Estado, e
isso poderia levar ao fascismo.
FOLHA - Assim como aconteceu na
Alemanha nazista?
JUDT - Esse era o seu modelo,
claro, ou, melhor, seu antimodelo. Ele argumentava que a
principal razão para apoiar
uma economia de mercado
desvinculada do Estado não era
porque fosse o melhor modo de
prover bens e serviços ou distribuir a riqueza, mas sim porque era o melhor modo de evitar repressão política.
O que aconteceu nos EUA é
que uma geração de economistas, entre eles Milton Friedman [1912-2006, Prêmio Nobel
em 1976], se apropriou das conclusões de Hayek sem prestar
atenção a suas razões originais.
FOLHA - Mas, depois de Hayek e
dos economistas americanos, esse
tipo de pensamento e de discurso
dominou qualquer debate no mundo a partir dos anos 80. Na América
Latina, por exemplo, mas até mesmo na Europa continental. Por quê?
JUDT - O antigo modelo, social-democrata, começou a parecer
economicamente ineficiente.
Em segundo lugar, o modelo
em que o Estado era dono dos
meios de produção, no Terceiro
Mundo, por exemplo, dava
mostras de ser corrupto. O modelo americano era bastante
sedutor, mas guardava um paradoxo. Era bem-sucedido justamente porque o dólar era a
moeda padrão internacional, e
os EUA podiam lidar com sua
economia de um modo que nenhum outro país tinha condições de fazer.
Creio que existam grandes e
longos ciclos de linguagem política hegemônica na história,
dos quais ninguém consegue
escapar. De meados do século
19 até os anos 20, o liberalismo
clássico foi a linguagem das políticas nacionais e internacionais. Dos anos 30 aos 70, quase
todos os países desenvolvidos
-ou relativamente desenvolvidos- do mundo tiveram debates sobre políticas públicas formatados pela ideia de que o Estado é uma força necessária na
economia e na sociedade.
Desde os anos 70, vivemos
num mundo com uma linguagem política em que qualquer
coisa que não possa ser descrita
em termos econômicos não é
considerada. Os EUA criaram
um vocabulário que o resto do
mundo adotou.
Penso, no entanto, que estamos próximos do fim dessa
"era econômica".
FOLHA - Como assim o fim?
JUDT - Creio que, nos próximos
dez anos, veremos uma renovação das discussões de políticas
públicas que aceitam descrever
temas sociais e iniciativas de
governo sob perspectivas mais
amplas, mais éticas ou políticas, se quiser. O que acontece
agora nos EUA, o debate sobre
o sistema de saúde, talvez seja
uma das últimas consequências da onda economicista.
FOLHA - É possível prever o que
acontecerá nesse debate específico?
JUDT - Creio que, por causa dos
sérios erros de cálculo de Obama, o que teremos será uma
concessão do governo a esse
debate, que levará a alguma racionalização do sistema atual,
mas sem mudança radical.
FOLHA - E qual foi o erro de cálculo?
JUDT - Foram dois. O primeiro
foi extrapolar a lógica do discurso de campanha, que pregava a superação das divisões partidárias e ideológicas nos EUA,
para a estratégia de governo.
Obama foi eleito porque prometeu superar essas divisões, e
acredito que tenha se levado a
sério demais. Não é possível
criar uma ponte que supere as
radicais diferenças entre os que
acreditam na moderna astronomia e os que acreditam que a
Lua é feita de queijo. A proposta de reforma da saúde pintou
um debate cosmológico como
se fosse queijo.
O outro erro foi subestimar o
poder dos preconceitos dos
eleitores. Se ele tivesse dito diretamente para o público que o
sistema de saúde europeu tem
problemas, mas funciona, e que
tudo o que os eleitores dizem
querer na saúde só pode ser
fornecido pelo Estado se tivermos um sistema de saúde forte,
que custa dinheiro, mas que
precisa ser feito para que os
EUA sejam um país sério, tenho certeza de que teria tido
muito mais sucesso.
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