São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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...ENTRE O ENIGMA E A NEGATIVIDADE

ARTIGOS DE "INTERVENÇÕES", DE LUIZ COSTA LIMA, FAZEM UM BALANÇO CONSISTENTE DA LITERATURA E DA CULTURA BRASILEIRAS DESDE O SÉCULO 19

Intervenções
428 págs., R$ 44,00 de Luiz Costa Lima. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, 6º andar, CEP 05508-900, SP, tel. 0/xx/11/3091-4008).

Alcir Pécora
especial para Folha

Intervenções" é o novo livro de Luiz Costa Lima, professor titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica-RJ. O volume reúne artigos que, com alterações, foram produzidos no período de 1993-2001, em diversas circunstâncias de sua militância crítica: a aula para a defesa da titularidade; os artigos para a "Revista USP"; para as cariocas "Inimigo Rumor" e "Tempo Brasileiro"; para o Centro de Estudos Murilo Mendes, de Juiz de Fora; para a "Revista Colóquio/Letras", de Lisboa; para o Mais! e para o "Idéias", do "Jornal do Brasil". Não se trata, contudo, de crítica ligeira. A maioria dos textos, conquanto curtos, gera reflexões consistentes, não raro brilhantes, que podem ser divididas em três grupos principais de matérias. O primeiro e, a meu ver, o melhor deles, coleta artigos sobre a poesia de Bandeira, Cabral e Murilo Mendes. Em relação a Bandeira, mostra que a sua poesia transforma a expressão temporal em impressão afetiva, com simultâneo esvaziamento do presente e da pessoalidade. O resultado é a produção de um passado afetivizado que postula uma ética da fraternidade. Em Cabral, diferentemente, o presente não se desfaz, mas sim a distinção, nele, entre percepção e imaginação, bem como toda idéia de psicologia, de que resulta uma ética da pólis.

Efeito de clareza
Desenvolvendo-a, Costa Lima examina e reforça a conhecida superposição que Cabral postula entre poesia e crítica, de modo a valorizar o artista-artesão e não o homem-artista. Discorda do poeta, entretanto, quando essa posição o leva à crítica do primeiro romantismo como causa do favorecimento desmedido da expressividade individual e reorienta a discussão para a oposição entre Cabral e os seus contemporâneos da chamada "geração de 45". Aqui, o foco do contraste é a sua restrição à dicção elevada que pretendiam restaurar após o choque de coloquialismo modernista, que, por sua vez, entrara num beco sem saída com o poema-piada. A opção cabralina, em parte derivada de Drummond, pelas palavras em liberdade em oposição às palavras enobrecidas, traduz-se pela sua exploração dos efeitos de clareza, entendida como apagamento da subjetividade e realce do material e do visual, o que produz uma poesia assentada tanto em abstração quanto em concreção. É esse eixo de orientação cabralina que vai ser operante no segundo grupo de textos de "Intervenções".

Mário e Murilo
Antes de passar a ele, será preciso referir as excelentes análises que Costa Lima faz de Murilo Mendes. De cara, nota que o catolicismo em Murilo favorece o surgimento de uma imagética singular, da mesma maneira que as paisagens sicilianas e galegas. Em conjunto, convertem a anterior incontinência de sua poesia em intensidade. Tal percepção leva Costa Lima a reler as críticas de Mário de Andrade ao poeta e considerá-las tributárias de seu "autodidatismo" mesclado a um "calamitoso essencialismo nacionalista". Ressalta também o incompreensível conservadorismo de Mário na atribuição de heresia ao "catolicismo agônico" de Murilo, que via a igreja avançar em curvas, indicando-lhe o seio e o fogo do inferno, melhor que o céu. O segundo grupo de artigos é relativo basicamente a autores surgidos nos anos 80, poetas (Duda Machado, Dora Ribeiro, Ronaldo Brito, Carlito Azevedo, Paulo Henriques Britto, Sebastião Uchoa Leite, Frederico Barbosa) e ficcionistas (Jair Ferreira dos Santos, Bernardo Carvalho, Rubens Figueiredo, Milton Hatoum). Em relação aos primeiros, o que de mais geral se pode dizer das leituras de Costa Lima é que perseguem a linhagem construtivista valorizada por ele, antagônica à celebração subjetivista e desbundada da poesia dos anos 70. Considerando os pólos de interesse da poesia de Cabral, Costa Lima os distribui em tendências abstracionistas ou visualizantes, cuja matéria é a de um mundo em ruínas, no qual a atividade poética se confunde com a de composição de desastres. O sensualismo, quando vem, insinua-se na forma de traços ou incisões minimalistas, de plasticidades ou de processos mentais detectados em "estado de palavra". Assim, o vocabulário do crítico, que valoriza a "tradição da negatividade" da poesia moderna, reserva lugares-chave para movimentos dessubjetivantes, geografias mentais, gestos sintáticos, formas que apenas germinam, intransitividade, indeterminação, enfim, termos que evidenciam o vazio próprio do discurso artístico, que pode ser suplementado com os conteúdos fornecidos pelo leitor, sem, contudo, preenchê-lo ou confundir-se com ele. No caso dos prosadores, o crítico acentua a incongruência de buscar o verossímil totalizante ou a submissão das narrativas ao relato de acontecimentos, postulando, na direção inversa, a vida dos impulsos indagativos, da hostilidade à transparência, da opacidade da obra em processo, em que o aleatório, o dissimulado e o poroso são as regras dos jogos da negatividade.

A relevância dos novos
Sei bem que, operando por meio de resumos brutais, esta resenha corre o risco de minimizar a empreitada de Costa Lima diante dessa produção literária recente. E nada poderia ser mais enganoso, pois está clara a relevância dos novos em sua compreensão da atividade crítica, seja pela atenção com que se debruça nos textos; seja pela persistência com que acompanha os sucessivos lançamentos, buscando surpreender o que neles se resolveu ou permanece como impasse; seja pelo exercício inteligente que pretende apontar o que, em cada um, se cumpre de modo mais radical diante da linhagem literária em questão. Com alguma dureza, até poderia dizer que o seu corpo-a-corpo com os novos investe-os de torneios teóricos tão refinados, de articulações com paradigmas filosóficos e poéticos tão decisivos na tradição ocidental, que, a despeito do juízo do próprio crítico, eles são elevados, por vezes, a alturas inverossímeis.

Pedras de toque
Apenas para dar um exemplo: diante de Charles Baudelaire, T.S. Eliot e Wallace Stevens, como dimensionar a obra de Sebastião Uchoa Leite -de resto, ótimo poeta e tradutor? Nesses casos menos felizes, as mediações descompensadas elucidam menos a confecção das obras do que produzem recheios filosóficos para elas, o que sempre poderá ter o efeito generoso de estímulo aos novos, mas não o de uma crítica que dá ao objeto o peso que lhe é devido ou crível. O último bloco de textos relê "clássicos" da cultura brasileira, que Costa Lima não estranha totalizar como "nossa". Machado, Nabuco, Euclides, Oliveira Lima, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Merquior e Antônio Callado são os autores em foco. Em relação a Machado, o crítico pontua as conhecidas asserções de Roberto Schwarz a respeito da "versatilidade" de seu narrador, propondo a sua articulação com um princípio estilístico, evidente em suas crônicas, que chama de "auditividade", isto é, uma espécie de falsa incorporação da oralidade que conduz à ruptura da linearidade da frase. Já na polêmica de Nabuco com José de Alencar, Costa Lima observa a irrupção de um "trauma" que, para ele, ainda marca a intelligentsia brasileira: o da presença de uma sociedade dividida entre senhores e párias, cujos efeitos incluem a produção de um pensamento ocioso e sentimental, viciado nas formas antípodas, mas igualmente simplistas, do realismo e da eloquência insinuante.

Intérpretes do Brasil
Passando a Euclides, o crítico percebe a sua exigência da "base científica" para a composição da impressão artística, até o momento de insurgência do ornato contra o seu papel de moldura e o aparecimento de um "híbrido inclassificável".
Adiante, comparando o tema da "cordialidade", em Sérgio Buarque, e o da "hipocrisia pública", em Oliveira Lima, que referem a confusão de público e privado no Brasil, Costa Lima os opõe ao tema da "miscigenação" pensada por Gilberto Freyre e reclama a atenção dos estudiosos para a relevância do "D. João 6º no Brasil", de Oliveira Lima, que supõe injustamente esquecido.
Para encerrar, o crítico repensa Merquior e Callado, autores com exigências de inserção no mundo, para chegar a hipóteses melancólicas da lucidez perante o terror da ditadura ou da morte. Eis aí, num relance vertiginoso, as 428 páginas de "Intervenções": é torcer para que não desinteresse o leitor pelo trabalho de um crítico que entende ser seu ofício a independência e a ousadia de pensar. Apenas um provincianismo irreparável pode explicar a ausência de suas hipóteses nos debates literários em São Paulo.


Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).



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