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+ cinema
"Cidade Baixa", que está em cartaz em SP, escapa do desfecho violento dos filmes nacionais recentes
ao apostar em uma ética da amizade como saída para um triângulo amoroso passado em Salvador
Um épico de vidas infames
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Malandragem de verdade é viver."
(Mano Brown)
Se "Cidade Baixa" fosse apenas
uma história de amor, já seria
um belo filme. O amor restou
como única forma de transcendência à disposição de nossas vidas privatizadas: quanto mais se
amesquinha a vida pública, no Brasil, mais inflado nosso imaginário
amoroso. Se "Cidade Baixa" se limitasse a corresponder à nossa carência insaciável de histórias de amor,
temperado com cenas de bom erotismo, já estaria melhor que a encomenda. Mas penso que o filme de
Sérgio Machado vai além.
Mais do que um triângulo amoroso convincente, vejo em "Cidade
Baixa" um épico passado entre vidas
infames. O que faz a tonalidade épica do filme, apesar da insignificância
dos personagens -uma prostituta
estreante na vida e dois amigos que
sobrevivem de transportar cargas lícitas ou ilícitas em um barco, no Recôncavo baiano-, é o esforço permanente deles para resistir à violência a que suas vidas parecem predestinadas.
Esforço que surpreende o espectador. O enredo parece nos conduzir a
um final previsível, ao fatal desfecho
à moda brasileira para todos os conflitos, passionais ou não, sobretudo
entre os habitantes miseráveis das
cidades "baixas". Esperamos a carnificina, esperamos gozar de aflição
ante a imagem terrível que é, sempre, a de um homem morrendo pela
mão do semelhante. Esperamos sair
de "Cidade Baixa" com o clichê na
ponta da língua: que o filme seja
"um soco no estômago".
Eu me pergunto por que essa expressão se tornou um elogio ao cinema: por que nós, espectadores, gostamos tanto de levar socos no estômago? Será preciso que um bom filme nos arrase moralmente, que nos
force a pagar pelo conformismo
com que aceitamos, fora do cinema,
as conseqüências violentas da desigualdade social brasileira?
Neste caso, a expectativa masoquista do espectador é frustrada no
final. Verdade que, desde as primeiras cenas do filme, o gozo cobra seu
preço em sangue. A excitação dos
homens em torno da briga de galos é
prenúncio de morte. Não sabemos
se Deco (Lázaro Ramos) matou ou
não o bêbado que esfaqueou Naldinho (Wagner Moura). O próprio
Deco parece não saber. Mas sabemos que o sangue e a rivalidade alimentam o erotismo.
Só que Karina (Alice Braga) foge
ao estereótipo da mulher fatal empolgada com a violência que provoca nos homens. Karina não quer ser
disputada em termos de vida ou
morte. Arrisco propor que a personagem se apaixona não por um (ou
outro) dos amigos, mas pelo forte laço que os une. Por isso é incapaz de
escolher entre eles, por isso se angustia ante a perspectiva de ser o
agente destruidor da amizade.
A mudança de posição da personagem feminina -de profissional a
amante- ocorre na cena em que ela
observa Deco, comovido e aliviado,
pousar a mão sobre o peito do amigo
que já não corre perigo de morte.
Apesar de já ter transado profissionalmente com os dois protagonistas,
é nesse momento que Karina se entrega a Deco, com urgente paixão.
O "ménage à trois" segue por essa
seara, em que o estímulo sexual é
sempre temperado de angústia, de
medo, de raiva, de aflição mas também de alegria. O erotismo se transforma em amor em conseqüência
das experiências-limite que o trio
compartilha. É como se o amor se
apresentasse a eles como superação
da miséria, como proteção, sentido,
abrigo. Para tanto, é necessário que
inclua os três.
Pacto fraterno
O trio de amigos/amantes/rivais
leva o desejo às últimas conseqüências. Mas quem disse que a última
das conseqüências tem que ser, forçosamente, o assassinato? Estamos
tão habituados a nosso próprio fatalismo, no cinema e na vida, que não
nos parece verossímil que os amigos
recuem alguns minutos (ou alguns
fotogramas) antes de se destruírem.
"Cidade Baixa" aposta, muito delicadamente (é possível, sim, falar em
delicadeza em meio ao sexo e à fúria), que uma ética da amizade ainda
sustente o que restou de civilização,
entre nós. A cena final sugere um
pacto fraterno selado com sangue,
enquanto os olhares pouco a pouco
se desarmam, se encontram, se amparam. Deco, Naldinho e Karina são
heróis porque resistem contra o que
parece ser, no Brasil, um destino,
uma predestinação destrutiva.
Deco e Naldinho não se matam
porque não querem, da mesma forma como Naldinho recua ante a possibilidade de matar o vendedor da
farmácia, em um assalto. Karina, a
pivô, pequena puta apaixonada pelos dois amigos, tenta evitar que o
ciúme termine em tragédia.
Nenhum dos três deseja a morte: o
filme é comandado pelas pulsões de
vida. É de Eros, não de Tânatos, que
se trata; Eros em toda a sua fúria e esplendor.
Vale apontar uma diferença entre
este e os filmes recentes do eixo Rio-São Paulo: a cidade de Salvador ainda não desterrou todos os seus pobres. A cidade baixa (ao contrário do
Pelourinho pós-restauração) ainda
pertence ao povo que sempre viveu
lá. A referência à amizade entre os
protagonistas, companheiros de infância, revela que parte da população de Salvador ainda foi preservada
da desterritorialização aparentemente inexorável que afeta os vínculos sociais, de pertinência e amparo,
entre os pobres das capitais brasileiras. A cidade "baixa" é dos negros, é
dos pobres, é dos baianos. Daí a sociabilidade menos violenta, mesmo
quando fora da lei.
O filme termina com cenas documentais da vida cotidiana nas vielas
estreitas de Salvador, por onde os
moradores passeiam distraídos,
contemplam a Bahia pelas janelas,
conversam com vizinhos, levam filhos pelas mãos. São cenas anônimas de rua, embaladas por toada
consoladora, à maneira de um lamento de escravos, na voz negra de
Carlinhos Brown.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta.
Escreveu, entre outros livros, "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).
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