São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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Viagem ao umbigo

"Enfant terrible" da ficção dos EUA, Jonathan Foer parodia a linguagem e a história em "Tudo Se Ilumina"

RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos 19 anos, o americano Jonathan Safran Foer viajou à Ucrânia a fim de procurar a mulher que teria salvado o seu avô dos nazistas. Sua única pista era uma foto desbotada. Como era de prever, nada descobriu. Em compensação, seis anos depois, em 2002, publicou um romance em que um escritor chamado Jonathan Safran Foer viaja à Ucrânia com a mesma finalidade. Sua busca, porém, tem um desfecho bem distinto.
Assim, "Tudo Se Ilumina" [cuja versão para cinema -"Uma Vida Iluminada"- estréia em SP na próxima sexta] parte do imaginário para suplementar a memória e, da ficção, para compensar o vazio da experiência. Vem de pronto à mente a tradição da literatura pós-moderna, com seus jogos entre história, ficção, narrativa e identidade, que redundam num incisivo desafio ao chamado realismo epistemológico: a realidade parece esgotar-se no discurso sobre o real.


Foer promove um bombardeio aéreo no instante em que seus avós transam pela primeira vez


Com a mesma presteza, acode à lembrança a numerosa tradição da literatura do Holocausto. Aqui, o esquema predominante parte da busca da verdade sobre os antepassados e culmina na descoberta de segredos tão chocantes que põem em xeque, justamente, a memória, a narrativa e, no limite, a própria linguagem.
A esses tópicos, Foer acrescenta uma inesperada porção de humor. Boa parte do romance é narrada pelo seu guia ucraniano, cujo desempenho na língua inglesa se apóia antes no uso do dicionário do que nos costumes idiomáticos.

Inadequação de registro
O efeito cômico decorre da inadequação de registro ou de contexto semântico: "Mas papagueio o que pronunciei antes: se você não ficar apaziguado com que lhe enviei e quiser que eu lhe envie a moeda corrente de volta, enviarei imediatamente". Algo afim aos clássicos personagens surdos que misturam palavras similares ou à longa linhagem de personagens ignorantes que confundem vocábulos de uso literário ou técnico.
Foer complementa esse quadro entremeando episódios vividos entre 1791 e 1941. Neles, se narram trechos da vida dos antepassados de seu avô e dos habitantes de sua aldeia, que mais tarde será arrasada pelos nazistas. Aqui, o romance segue os modelos do realismo mágico.
O contexto histórico é abolido e o insólito preside o cotidiano: um homem e uma mulher se casam dezenas de vezes; a barriga de uma mulher brilha quando faz sexo; o cérebro de um homem é cindido ao meio por uma serra e ele continua a viver, com a serra metida no crânio, mas sofre de dupla personalidade; os pontapés de um feto são capazes de jogar no chão quem encosta o ouvido à barriga da mãe; marido e mulher só transam através de um buraco na parede.
No cômputo geral, "Tudo Se Ilumina" não pode deixar de parecer um produto, um composto de material colhido em tradições disponíveis no mercado. Aliás, a idéia de um romance cujo humor está calcado em sistemáticos desvios de linguagem e que tem por centro uma tragédia real da Segunda Guerra faz recordar "Matadouro 5", de Kurt Vonnegut.
Foer, porém, consegue muitas vezes dar vida própria a esse esquema de empréstimos, e seus diálogos rápidos, sobretudo, alcançam um intenso efeito cômico. Assim também muitos personagens burlescos da antiga aldeia ucraniana se mostram capazes de ultrapassar os limites de sua própria feição caricata.
Até mesmo o ingrediente dramático final -a revelação do crime terrível, sepultado por 50 anos na consciência de um homem pacato- tem eficácia, por conta da técnica de retardamento da ação, empregada com habilidade por Foer.
Dito isso, é difícil fugir ao incômodo de um romance que, a despeito de referir-se a um fato histórico de peso, subtrai e quase anula o teor e o alcance histórico de seu enredo. Não só nas passagens escritas na clave do realismo mágico -onde isso não fica tão mal- mas também nos capítulos relativos à invasão das aldeias pelos nazistas e até em toda a visita de Safran Foer à Ucrânia, em que predomina um autocentramento de cunho infantil.

Expedientes apelativos
Na ânsia de causar efeito, o autor se permite demasiados expedientes apelativos. Um exemplo suficiente é a passagem em que Foer aproveita para promover um bombardeio aéreo no instante em que seus avós transam pela primeira vez após o casamento: "Quando inundou Zosha com o dilúvio daquilo que não podia mais ser contido, quando liberou o universo daquela luz copulativa (tão poderosa que se pudesse ser domada e utilizada os alemães não teriam a menor chance), ele ficou a pensar se uma bomba não teria aterrissado no leito nupcial".
Já publicado em quase 30 países, "Tudo Se Ilumina" insinua uma tese: "A arte é tudo aquilo que tem a ver apenas consigo mesmo". Não que eu tenha nada a ver com isso, mas até um romance pode ter segredos que ele precisa esconder de si mesmo.

Rubens Figueiredo é tradutor e escritor, autor de "Barco a Seco" (Cia. das Letras).

Tudo Se Ilumina
368 págs., R$ 48 de Jonathan Safran Foer. Trad. de Paulo Reis e Sergio Moraes Rego. Ed. Rocco (av. Presidente Wilson, 231, 8º andar, Centro, CEP 20030-905, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 3525-2000).



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