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+ arte
O historiador inglês Simon Schama analisa a obra e a vida do pintor flamengo Peter Paul Rubens,
que fundiu classicismo e naturalismo no século 17 e chegou a ser chamado de "o deus da pintura"
A carne e a fúria
SIMON SCHAMA
O problema de chamar uma
exposição de "A Evolução
de um Mestre" ["A Master
in the Making", em cartaz
na National Gallery, em Londres, até
15/1/2006] é que pressupõe um público que acredite exatamente que
houve uma evolução. Mas no caso
de Rubens isso não poderia ser menos verdadeiro. Em qualquer museu, em qualquer domingo, a galeria
vazia é invariavelmente a de "Flamengos, Século 17", onde grupos de
nus envoltos em panos fartos oscilam seu peso torneado em frente a
uma colisão de cavalos e carnívoros,
enquanto junto à porta um obscuro
e pálido santo aceita seu martírio
com os olhos revirados.
Os curiosos entram, dão uma
olhada rápida, adotam a expressão
adequada dos maravilhados, dos intimidados, dos reverentes e dos perplexos e aceleram para a próxima
porta, marcada "Rembrandt".
O que é uma pena, já que existem
satisfações peculiares a descobrir em
Rubens que não se reproduzem em
nenhum outro exemplo da arte barroca (desculpe, Van Dyck): a intensa
manipulação da sensação e mesmo
da emoção profunda, por meio da
pura força pictórica; um desenho incomparável; cores maravilhosas.
Não são para Rubens a paleta obscura e as formas simplificadas de Caravaggio (embora ele tenha tirado
muito mais do mestre cuja "Morte
da Virgem", escandalosamente naturalista, tentou comprar para o duque de Mântua) nem as psicossondagens introspectivas de Rembrandt. Rubens tem a ver com uma
energia carnal animalesca e um desenho de alta voltagem, resultado do
que um biógrafo do século 17 chamou de sua "a fúria do pincel".
Mas a linha ondulante de Rubens
nunca foi apenas um floreio virtuoso. Sempre foi posta a serviço da orquestração controlada dos corpos
em movimento. E, como colorista,
ninguém desde Ticiano e Giorgione
chegou perto. Seja quando confeccionava os mais delicados tons de
pele ou atirando um vermelho gritante na tela, era com a intenção de
modelar as formas, mais que simplesmente preenchê-las, assim tornando fútil a velha e entediante batalha entre desenho e cor.
Uma conversão
Ponha todos esses dons juntos e
você terá o que os contemporâneos
vieram a reconhecer como uma maravilha incomparável -o "deus da
pintura", como escreveu um dos
que o recomendaram para um retábulo para Antuérpia, em 1609.
Quando atua no auge de seus poderes -como no esboço a óleo para a
"Descida da Cruz" ou a adorável
"Caridade Romana" mamando, do
museu Hermitage-, Rubens arranca o estofo do espectador, altera o
ritmo da respiração, senão sua vida.
Esta exposição na National Gallery
será uma experiência desse tipo,
uma conversão? Se for assim -e
qualquer um que ama Rubens e deseja tornar esse entusiasmo contagiante deve esperar carinhosamente-, será uma vitória da arte sobre o
conceito.
Pois a exposição é muito erudita:
ela se dedica tão incansavelmente a
rastrear toda e qualquer influência
que contribuiu para a maneira do
artista em evolução (embora omita
algumas que foram mais importantes para ele nos primeiros tempos,
como as xilogravuras de Holbein e
Tobias Stimmer) que às vezes parece
correr o risco de desaparecer em sua
própria erudição.
Há coisas ótimas e boas a aprender
aqui sobre a técnica de composição
de Rubens, mas a ênfase absoluta no
processo inclinou a seleção das
obras para as que podem ser desempacotadas como um grupo de desenhos de composição, esboços e versões alternativas. Assim, temos duas
versões de "Suzana e os Anciões",
nenhuma delas sensacional, em vez
de um auto-retrato de Rubens com
sua primeira mulher, Isabella Brant
-um hino à fertilidade conjugal-,
que certamente o é.
O que falta (na maior parte), muito
mais que esse vestígio de Rafael ou
aquele vestígio de Michelangelo, é o
que realmente fez Rubens ser Rubens: o que o pintor teria chamado
de "wellust" e nós chamaríamos de
"joie de vivre", uma fome instintiva
de carne.
Suponho que se deva admirar a
coragem inusitada de uma exposição tão decididamente fria em relação à história ou à biografia. Eu estou entre os que pensam que nos últimos anos o pêndulo oscilou um
pouco demais para longe da análise
formal em direção ao contexto histórico, de modo que a pura força visual da arte às vezes foi sufocada sob
compêndios inchados de informações sobre preços e mecenas.
Mas aqui não há perigo de tropeçar e cair num contexto vulgar. Não
há perigo de deixar o visitante saber,
por exemplo, que Rubens cresceu
no mais sangrento teatro de guerra
religiosa da Europa; que seu pai
-um protestante convertido!- foi
preso e quase executado por ter tido
um caso com a princesa de Orange;
ou que seu mais importante professor em Antuérpia, Otto van Veen,
hesitava entre as linhas confessionais da Leiden calvinista e da Antuérpia contra-reformista militante
ou que o início da vida do pintor foi
uma sucessão de dramas pessoais
assim como pictóricos.
Isso não é apenas uma queixa superficial sobre legendas nas paredes.
É difícil pensar em uma carreira pictórica mais estreitamente ligada aos
grandes acontecimentos de sua época assim como à linhagem clássica
de sua arte. E muitos desses eventos
vão diretamente ao coração de sua
"evolução". Afinal, Rubens se tornou artista em Antuérpia -cidade
em que a legitimidade ou ilegitimidade da produção de imagens sagradas havia levado os homens à violência. Nove anos antes de Rubens
nascer, iconoclastas calvinistas haviam destruído estátuas e arrancado
pinturas das paredes da catedral.
Houve uma restauração católica,
mas, antes que Rubens se tornasse
aprendiz, houve outro retorno da
censura protestante, antes que a
Contra-Reforma católica fosse definitivamente restaurada. Por isso, o
intenso fervor da pintura religiosa
de Rubens não é apenas arte, mas armamento espiritual. E o início de
sua carreira é tanto uma jornada
através de uma zona de guerra
quanto um longo exercício de absorção do classicismo.
De fato, o período de formação na
Itália, de 1600 a 1608, é problemático
de maneiras mais fascinantes do que
poderia sugerir uma genealogia das
influências. Como todos os aspirantes a artista em Roma, Rubens se dedicou a estudar as riquezas esculpidas da Antigüidade e se inspirou devidamente nos suspeitos habituais: o
"Hércules" e o "Laocoonte" do Farnese, o "Apollo Belvedere".
Mas os curadores têm razão em insistir sobre seus acréscimos brilhantemente expressivos, desenhados
com o intuito de animar a escultura.
A obra de Rubens, portanto, se tornou um diálogo articulado entre o
classicismo e o naturalismo.
Pintor erudito
Mais que qualquer outro artista
flamengo anterior, Rubens definitivamente derrubaria um estereótipo,
estabelecendo-se como um supremo pintor histórico. Sem jamais se
desculpar por seu próprio dom para
o naturalismo bucólico (o paisagista
sublime já é evidente em detalhe
desde as primeiras obras), ele se projeta como um filósofo humanista
por meio da paleta: o "pictor dotus",
o pintor erudito.
É uma pena, portanto, que a pessoa mais influente nessa reinvenção
vocacional -seu irmão Philip- esteja praticamente ausente da exposição, apesar do fato de haver dois retratos de grupo que reúnem os irmãos, um dos quais é uma absoluta
obra-prima. Pois Rubens -diferentemente da caricatura arquetípica
do gênio melancólico isolado (Michelangelo, Caravaggio, Salvator
Rosa)- era o mais sociável e fraterno dos artistas.
Em Roma, ele conviveu com pessoas como o doutor Johannes Faber,
que o tratou de um acesso de pleurisia e que era, entre outras coisas, um
amigo de Galileu e um naturalista
que escreveu obras sobre dragões,
serpentes e papagaios.
Fraternidade e amizade, para os irmãos Rubens, não era apenas um
sentimento, mas uma filosofia: uma
corrente dourada de conexões ligando os homens de mentalidade semelhante entre si e a seus professores
no passado recente e remoto.
O maravilhoso e comovente "Quatro Filósofos", pintado no ano da
morte prematura de Philip, em 1611,
e hoje no palácio Pitti, é uma antologia dos mais profundos pensamentos e emoções que animavam o jovem Rubens.
Se os "Quatro Filósofos" não puderam viajar de Florença para Londres, a ironia é ainda mais aguda
porque Rubens, como a exposição
deixa claro, fez muitas viagens antes
de voltar para a fama e a fortuna em
Antuérpia em 1608. Contratado por
Gonzaga, duque de Mântua, para
pintar uma galeria de "belas mulheres", ele conseguiu uma folga para ir
até Roma, onde vivia com Philip no
bairro dos artistas ao norte, perto da
Piazza del Popolo.
Às vezes retornava a Mântua e fez
algumas viagens a Gênova com o
duque. Pintou surpreendentes retratos de corpo inteiro de aristocratas
genovesas, um dos quais brilha na
National Gallery: é uma peça de requinte indumentário, em que o pincel suntuosamente carregado acaricia cremosamente seu tema.
No entanto as viagens oficiais
trouxeram dificuldades que seriam
um teste para os poderes da resistência neo-estóica de Rubens. Enviado
pelo duque de Mântua com um presente para o rei da Espanha e seu favorito, o duque de Lerma (o de sempre: vasos de cristal cheios de perfume raro, cavalos tão reluzentes e
bem criados que viajavam dentro de
carruagens, pinturas originais e cópias), Rubens suportou o pesadelo
de desembrulhar os quadros e ver
que estavam semidestruídos pela
umidade.
O ministro mantuano, que não
apreciava muito esse enviado inexperiente que o deslocava, sugeriu
que ele fizesse rapidamente uma ou
duas paisagens à moda flamenga.
Em vez disso, pintou o "Heráclito" e
o "Demócrito" incluídos nesta exposição, não apenas para exibir suas
credenciais filosóficas, mas -como
um deles escarnece e o outro ri das
voltas do destino e das loucuras dos
homens- talvez também como um
item autobiográfico disfarçado.
Nada disso teria importância se ele
também não estivesse a caminho de
ser um grande pintor histórico, o
que quer dizer o artista de retábulos
fascinantes. De volta a Roma, ele teve sorte com o momento escolhido.
A ordem do Oratório procurava
alguém para decorar sua igreja. Annibale Carracci havia desistido de
pintar, Caravaggio estava ocupado e
Guido Reni era inexperiente. Rubens teve sua chance: fez diversas
tentativas, e, quando falhou por causa da intensa reflexividade da luz,
pegou seu manual neo-estóico de
adaptabilidade e fez algo em ardósia.
Improviso
Então voltou para Antuérpia, que
respirava mais liberdade depois de
uma trégua com os holandeses. Em
dois anos, produziu duas obras-primas transcendentais -a "Elevação
da Cruz" e a "Descida da Cruz"-
que, se todas as outras pinturas de
Rubens desaparecessem num incêndio, ainda garantiriam seu direito à
adulação da posteridade.
É claro que esses retábulos, que são
trípticos no antigo estilo flamengo,
não podem viajar. Mas a exposição
da National Gallery oferece uma rica
visão das maneiras como Rubens
trabalhou para chegar ao que se tornou a grandiosa mecânica espiritual
dos grandes retábulos, por meio de
estudos preliminares, desenhos, esboços e o "caderno" em que ele enciclopedicamente colecionava imagens, organizadas por tema.
O que é tão notável nessas diversas
tentativas é a maneira como a liberdade de improvisação -a força
apressada da pena e do pincel-
conseguiu se traduzir tão completamente em obras de grande escala. A
mão de Rubens voa, mas os trabalhos são pesados no melhor sentido,
seja transmitindo o agonizante erguimento da cruz -cheio de suor e
força muscular- ou o peso do Cristo crucificado caindo sobre a figura
de João Evangelista, com uma capa
vermelho sangue.
As melhores passagens são de classicismo encarnado pelo naturalismo: um cão que ladra, um pano sinuoso preso pelos dentes de alguém
no alto da cruz; brutalidade e pátos,
impulso e imobilidade em perfeito
equilíbrio. Só por esses momentos já
vale a pena percorrer os medíocres
trabalhos de aprendiz e, deixando de
lado intervenções acadêmicas de
menor interesse, chegar aos instantes estupendos em que, diante do
"Massacre dos Inocentes" ou da
"Morte de Hipólito", os olhos se dilatam, o pulso dispara e concordamos que o mestre de fato evoluiu.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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