São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ arte

O historiador inglês Simon Schama analisa a obra e a vida do pintor flamengo Peter Paul Rubens, que fundiu classicismo e naturalismo no século 17 e chegou a ser chamado de "o deus da pintura"

A carne e a fúria

SIMON SCHAMA

O problema de chamar uma exposição de "A Evolução de um Mestre" ["A Master in the Making", em cartaz na National Gallery, em Londres, até 15/1/2006] é que pressupõe um público que acredite exatamente que houve uma evolução. Mas no caso de Rubens isso não poderia ser menos verdadeiro. Em qualquer museu, em qualquer domingo, a galeria vazia é invariavelmente a de "Flamengos, Século 17", onde grupos de nus envoltos em panos fartos oscilam seu peso torneado em frente a uma colisão de cavalos e carnívoros, enquanto junto à porta um obscuro e pálido santo aceita seu martírio com os olhos revirados.
Os curiosos entram, dão uma olhada rápida, adotam a expressão adequada dos maravilhados, dos intimidados, dos reverentes e dos perplexos e aceleram para a próxima porta, marcada "Rembrandt".
O que é uma pena, já que existem satisfações peculiares a descobrir em Rubens que não se reproduzem em nenhum outro exemplo da arte barroca (desculpe, Van Dyck): a intensa manipulação da sensação e mesmo da emoção profunda, por meio da pura força pictórica; um desenho incomparável; cores maravilhosas.
Não são para Rubens a paleta obscura e as formas simplificadas de Caravaggio (embora ele tenha tirado muito mais do mestre cuja "Morte da Virgem", escandalosamente naturalista, tentou comprar para o duque de Mântua) nem as psicossondagens introspectivas de Rembrandt. Rubens tem a ver com uma energia carnal animalesca e um desenho de alta voltagem, resultado do que um biógrafo do século 17 chamou de sua "a fúria do pincel".
Mas a linha ondulante de Rubens nunca foi apenas um floreio virtuoso. Sempre foi posta a serviço da orquestração controlada dos corpos em movimento. E, como colorista, ninguém desde Ticiano e Giorgione chegou perto. Seja quando confeccionava os mais delicados tons de pele ou atirando um vermelho gritante na tela, era com a intenção de modelar as formas, mais que simplesmente preenchê-las, assim tornando fútil a velha e entediante batalha entre desenho e cor.

Uma conversão
Ponha todos esses dons juntos e você terá o que os contemporâneos vieram a reconhecer como uma maravilha incomparável -o "deus da pintura", como escreveu um dos que o recomendaram para um retábulo para Antuérpia, em 1609. Quando atua no auge de seus poderes -como no esboço a óleo para a "Descida da Cruz" ou a adorável "Caridade Romana" mamando, do museu Hermitage-, Rubens arranca o estofo do espectador, altera o ritmo da respiração, senão sua vida.
Esta exposição na National Gallery será uma experiência desse tipo, uma conversão? Se for assim -e qualquer um que ama Rubens e deseja tornar esse entusiasmo contagiante deve esperar carinhosamente-, será uma vitória da arte sobre o conceito.
Pois a exposição é muito erudita: ela se dedica tão incansavelmente a rastrear toda e qualquer influência que contribuiu para a maneira do artista em evolução (embora omita algumas que foram mais importantes para ele nos primeiros tempos, como as xilogravuras de Holbein e Tobias Stimmer) que às vezes parece correr o risco de desaparecer em sua própria erudição.
Há coisas ótimas e boas a aprender aqui sobre a técnica de composição de Rubens, mas a ênfase absoluta no processo inclinou a seleção das obras para as que podem ser desempacotadas como um grupo de desenhos de composição, esboços e versões alternativas. Assim, temos duas versões de "Suzana e os Anciões", nenhuma delas sensacional, em vez de um auto-retrato de Rubens com sua primeira mulher, Isabella Brant -um hino à fertilidade conjugal-, que certamente o é.
O que falta (na maior parte), muito mais que esse vestígio de Rafael ou aquele vestígio de Michelangelo, é o que realmente fez Rubens ser Rubens: o que o pintor teria chamado de "wellust" e nós chamaríamos de "joie de vivre", uma fome instintiva de carne.
Suponho que se deva admirar a coragem inusitada de uma exposição tão decididamente fria em relação à história ou à biografia. Eu estou entre os que pensam que nos últimos anos o pêndulo oscilou um pouco demais para longe da análise formal em direção ao contexto histórico, de modo que a pura força visual da arte às vezes foi sufocada sob compêndios inchados de informações sobre preços e mecenas.
Mas aqui não há perigo de tropeçar e cair num contexto vulgar. Não há perigo de deixar o visitante saber, por exemplo, que Rubens cresceu no mais sangrento teatro de guerra religiosa da Europa; que seu pai -um protestante convertido!- foi preso e quase executado por ter tido um caso com a princesa de Orange; ou que seu mais importante professor em Antuérpia, Otto van Veen, hesitava entre as linhas confessionais da Leiden calvinista e da Antuérpia contra-reformista militante ou que o início da vida do pintor foi uma sucessão de dramas pessoais assim como pictóricos.
Isso não é apenas uma queixa superficial sobre legendas nas paredes. É difícil pensar em uma carreira pictórica mais estreitamente ligada aos grandes acontecimentos de sua época assim como à linhagem clássica de sua arte. E muitos desses eventos vão diretamente ao coração de sua "evolução". Afinal, Rubens se tornou artista em Antuérpia -cidade em que a legitimidade ou ilegitimidade da produção de imagens sagradas havia levado os homens à violência. Nove anos antes de Rubens nascer, iconoclastas calvinistas haviam destruído estátuas e arrancado pinturas das paredes da catedral.
Houve uma restauração católica, mas, antes que Rubens se tornasse aprendiz, houve outro retorno da censura protestante, antes que a Contra-Reforma católica fosse definitivamente restaurada. Por isso, o intenso fervor da pintura religiosa de Rubens não é apenas arte, mas armamento espiritual. E o início de sua carreira é tanto uma jornada através de uma zona de guerra quanto um longo exercício de absorção do classicismo.
De fato, o período de formação na Itália, de 1600 a 1608, é problemático de maneiras mais fascinantes do que poderia sugerir uma genealogia das influências. Como todos os aspirantes a artista em Roma, Rubens se dedicou a estudar as riquezas esculpidas da Antigüidade e se inspirou devidamente nos suspeitos habituais: o "Hércules" e o "Laocoonte" do Farnese, o "Apollo Belvedere".
Mas os curadores têm razão em insistir sobre seus acréscimos brilhantemente expressivos, desenhados com o intuito de animar a escultura. A obra de Rubens, portanto, se tornou um diálogo articulado entre o classicismo e o naturalismo.

Pintor erudito
Mais que qualquer outro artista flamengo anterior, Rubens definitivamente derrubaria um estereótipo, estabelecendo-se como um supremo pintor histórico. Sem jamais se desculpar por seu próprio dom para o naturalismo bucólico (o paisagista sublime já é evidente em detalhe desde as primeiras obras), ele se projeta como um filósofo humanista por meio da paleta: o "pictor dotus", o pintor erudito.
É uma pena, portanto, que a pessoa mais influente nessa reinvenção vocacional -seu irmão Philip- esteja praticamente ausente da exposição, apesar do fato de haver dois retratos de grupo que reúnem os irmãos, um dos quais é uma absoluta obra-prima. Pois Rubens -diferentemente da caricatura arquetípica do gênio melancólico isolado (Michelangelo, Caravaggio, Salvator Rosa)- era o mais sociável e fraterno dos artistas.
Em Roma, ele conviveu com pessoas como o doutor Johannes Faber, que o tratou de um acesso de pleurisia e que era, entre outras coisas, um amigo de Galileu e um naturalista que escreveu obras sobre dragões, serpentes e papagaios.
Fraternidade e amizade, para os irmãos Rubens, não era apenas um sentimento, mas uma filosofia: uma corrente dourada de conexões ligando os homens de mentalidade semelhante entre si e a seus professores no passado recente e remoto.
O maravilhoso e comovente "Quatro Filósofos", pintado no ano da morte prematura de Philip, em 1611, e hoje no palácio Pitti, é uma antologia dos mais profundos pensamentos e emoções que animavam o jovem Rubens.
Se os "Quatro Filósofos" não puderam viajar de Florença para Londres, a ironia é ainda mais aguda porque Rubens, como a exposição deixa claro, fez muitas viagens antes de voltar para a fama e a fortuna em Antuérpia em 1608. Contratado por Gonzaga, duque de Mântua, para pintar uma galeria de "belas mulheres", ele conseguiu uma folga para ir até Roma, onde vivia com Philip no bairro dos artistas ao norte, perto da Piazza del Popolo.
Às vezes retornava a Mântua e fez algumas viagens a Gênova com o duque. Pintou surpreendentes retratos de corpo inteiro de aristocratas genovesas, um dos quais brilha na National Gallery: é uma peça de requinte indumentário, em que o pincel suntuosamente carregado acaricia cremosamente seu tema.
No entanto as viagens oficiais trouxeram dificuldades que seriam um teste para os poderes da resistência neo-estóica de Rubens. Enviado pelo duque de Mântua com um presente para o rei da Espanha e seu favorito, o duque de Lerma (o de sempre: vasos de cristal cheios de perfume raro, cavalos tão reluzentes e bem criados que viajavam dentro de carruagens, pinturas originais e cópias), Rubens suportou o pesadelo de desembrulhar os quadros e ver que estavam semidestruídos pela umidade.
O ministro mantuano, que não apreciava muito esse enviado inexperiente que o deslocava, sugeriu que ele fizesse rapidamente uma ou duas paisagens à moda flamenga. Em vez disso, pintou o "Heráclito" e o "Demócrito" incluídos nesta exposição, não apenas para exibir suas credenciais filosóficas, mas -como um deles escarnece e o outro ri das voltas do destino e das loucuras dos homens- talvez também como um item autobiográfico disfarçado.
Nada disso teria importância se ele também não estivesse a caminho de ser um grande pintor histórico, o que quer dizer o artista de retábulos fascinantes. De volta a Roma, ele teve sorte com o momento escolhido.
A ordem do Oratório procurava alguém para decorar sua igreja. Annibale Carracci havia desistido de pintar, Caravaggio estava ocupado e Guido Reni era inexperiente. Rubens teve sua chance: fez diversas tentativas, e, quando falhou por causa da intensa reflexividade da luz, pegou seu manual neo-estóico de adaptabilidade e fez algo em ardósia.

Improviso
Então voltou para Antuérpia, que respirava mais liberdade depois de uma trégua com os holandeses. Em dois anos, produziu duas obras-primas transcendentais -a "Elevação da Cruz" e a "Descida da Cruz"- que, se todas as outras pinturas de Rubens desaparecessem num incêndio, ainda garantiriam seu direito à adulação da posteridade.
É claro que esses retábulos, que são trípticos no antigo estilo flamengo, não podem viajar. Mas a exposição da National Gallery oferece uma rica visão das maneiras como Rubens trabalhou para chegar ao que se tornou a grandiosa mecânica espiritual dos grandes retábulos, por meio de estudos preliminares, desenhos, esboços e o "caderno" em que ele enciclopedicamente colecionava imagens, organizadas por tema.
O que é tão notável nessas diversas tentativas é a maneira como a liberdade de improvisação -a força apressada da pena e do pincel- conseguiu se traduzir tão completamente em obras de grande escala. A mão de Rubens voa, mas os trabalhos são pesados no melhor sentido, seja transmitindo o agonizante erguimento da cruz -cheio de suor e força muscular- ou o peso do Cristo crucificado caindo sobre a figura de João Evangelista, com uma capa vermelho sangue.
As melhores passagens são de classicismo encarnado pelo naturalismo: um cão que ladra, um pano sinuoso preso pelos dentes de alguém no alto da cruz; brutalidade e pátos, impulso e imobilidade em perfeito equilíbrio. Só por esses momentos já vale a pena percorrer os medíocres trabalhos de aprendiz e, deixando de lado intervenções acadêmicas de menor interesse, chegar aos instantes estupendos em que, diante do "Massacre dos Inocentes" ou da "Morte de Hipólito", os olhos se dilatam, o pulso dispara e concordamos que o mestre de fato evoluiu.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Texto Anterior: Lançamentos
Próximo Texto: Historiador se tornou astro na TV inglesa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.