São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 2009

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Ponto de fuga

A argila e o pensamento


As cerâmicas de Sara Carone provocam vertigem temporal: como um arqueólogo, a artista parece ter desentranhado suas peças de algum terreno cheio de vestígios remotos


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Cerâmicas de Sara Carone, na Estação Pinacoteca (São Paulo), tão sensíveis. Frutos da graça irregular e secreta dos gestos, que engendram uma geometria aproximativa, elas exibem suas epidermes lisas, rugosas ou infiltradas por ranhuras.
Endurecidas no fogo, amalgamadas ao esmalte brilhante, impõem, físicas, suas presenças. Algumas são como incertas placas: erguem-se numa postura irregular, precária. Outras formam blocos empilhados e desconexos na forma, na matéria, na cor. Ou são menos desconcertantes quando tomam o aspecto de vasos, potes.
Junto com essa experiência concreta, sugerem também algo abstrato, que pertence ao domínio do pensamento.
A epiderme, o esforço das placas, as superposições heteróclitas pressupõem o planejamento e a intenção. Há certas cuias, certas tigelas, em que a matéria consegue libertar-se de si mesma, e a argila se transfigura numa leveza vítrea que tende para o espiritual.
Mais evidentes ainda, as incrustações, ou marchetarias, de texturas diferentes, recortando fitas, faixas, retângulos, impregnados na matéria -e na forma- que sustentam. Não são acréscimos, mas forças constitutivas.
Elas pressupõem a estratégia controlada, como testemunham os projetos em desenho que completam a mostra. Trata-se de uma geometria dialética. Ela impõe seu percurso lúcido sobre a matéria dominante e irregular, crestada pelo fogo, para juntarem-se as duas num todo que as supera.
Esses traçados provêm de uma memória cultural e coletiva. Prolongam a tradição das abstrações geométricas, que predominaram nos anos do pós-guerra. Sara Carone as emprega sem disfarce, numa sintaxe que lhe é própria.

Herdeira
As obras de Sara Carone provocam vertigem temporal. Como um arqueólogo, a artista parece ter desentranhado suas peças de algum terreno cheio de vestígios remotos.
São obras que nasceram imemoriais, já marcadas pelo tempo e pelas eras.
O laço com o passado é legítimo, pois o ceramista perpetua uma arte dentre as primeiras inventadas pelo homem. As esculturas expostas na Estação Pinacoteca falam de gestos que renovam um antiquíssimo outrora.

Clima
Boa rarefação nas salas brancas, nas mesas sinuosas. Há o silêncio. Nele, alguma coisa que sugere a música das esferas.
Gilda de Mello e Souza lembrava o vínculo entre a música e a arte de Sara Carone:
"Sobre o faiscar intermitente dos pequenos brilhos, das superfícies craqueladas, da modulação suave dos tons, já podemos ouvir a límpida melodia das linhas de força, o jogo pendular em que se equilibram círculos e retângulos. Mas temos que esquecer Klee, Mirò e talvez Satie, porque a qualidade táctil da matéria conseguida nos obriga a ver como crianças, não apenas com os olhos, mas com as mãos, deslizando os dedos sobre a superfície vibrante, porosa, como a epiderme feminina. Que nome dar a essas peças tácteis e musicais?"
Mergulhadas nas sonoridades inaudíveis dos velhos filósofos e dos velhos astrônomos, aquelas obras induzem a perceber a junção misteriosa entre matéria e pensamento.

Dedos
A arte do ceramista pede a sabedoria do gesto. Henri Focillon [1881-1943] publicou, no final de seu livro "A Vida das Formas", um "Elogio da Mão". Escreve ali: "Por elas (as mãos) o homem toma contato com a dureza do pensamento. Elas liberam o bloco. Elas lhe impõem uma forma, um contorno e, na própria escrita, um estilo".
Adiante: "A mão é ação: ela toma, cria e, por vezes, diríamos que ela pensa".


jorgecoli@uol.com.br


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