São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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+ brasil 501 d.C.

O novo século das luzes

Milton Santos

Temos fundadas razões para acreditar que é possível uma outra globalização, diferente da atual. Em primeiro lugar, os seus principais fundamentos materiais são sistemas técnicos dóceis, diversos daqueles de épocas anteriores e cuja performance exige inteligência, e toleram diversificação de uso. É fato que, nas condições de hoje, há um uso hegemônico desses sistemas técnicos baseados na informação, mas eles também são adequados -compatíveis, como atualmente se diz- com formas de utilização que respeitem as peculiaridades de cada sociedade. Falta somente que os dados materiais já existentes sejam empolgados por novas formas políticas.
A própria dinâmica da globalização leva a uma grande turbulência das populações, entre continentes e dentro deles, um caldeamento nunca visto de culturas, línguas, religiões e manifestações existenciais. E, paralelamente, a população humana revela uma tendência a aglomerar-se em certos pontos do planeta. As grandes aglomerações são o lugar por excelência de uma humanidade misturada e é na grande cidade que esse papel de cadinho se dá com mais força.

Nação localizada Não há dúvida de que as condições atuais da globalização conduzem a uma fragmentação, mas as metrópoles resultantes do mesmo movimento levam, praticamente, a uma espécie de reconstituição localizada da nação, com uma realidade própria, uma cultura específica, uma vontade particular de ser mundo.
A dinâmica dessas grandes cidades é relacionada com a dos países em que se inserem, mas também é dotada de autonomia. Nesses lugares, há uma produção própria de sentido, que não é obrigatoriamente o mesmo da nação como um todo. Num "mundo" que se deseja impor sobre cada um dos seus pontos, as cidades, sobretudo as mais populosas, realizam uma espécie de "revanche do lugar". É aí onde estão as maiores possibilidades de uma utilização mais racional e humana das novas tecnologias, numa espécie de regresso ao artesanato, à criatividade, à beleza, ao sentido da vida.
Em primeiro lugar, graças à presença de grande número de pobres e de uma população intelectualizada, nota-se uma espécie de rejeição do modelo hegemônico, um dado mais ou menos geral, mesmo se as reações particulares são específicas. Cada lugar é constitucionalmente diferente dos outros, pela sua história e pela sua condição atual, mas todos são exigentes de soluções aos problemas emergentes, remédios que os poderes locais raramente têm meios para oferecer. Como o fenômeno é geral, tantas carências reunidas tornarão necessária a reconsideração da arquitetura política de cada país, porque na situação atual apenas os governos centrais têm condições para negociar com o "mundo".
Todavia o atendimento aos reclamos dos lugares pelos poderes centrais torna-se imperativo, já que esses lugares, onde se dá o essencial da vida econômica e social de cada país, são a sede de crises permanentes, características da nova civilização. A busca de remédios eficazes não parece possível sem que o modelo global imposto a cada país seja revisto. Assim, mais cedo ou mais tarde, todos os países submetidos ao jugo da globalização perversa serão forçados a rever os termos atuais de sua dependência.
Certamente o desengajamento diante da globalização atual não se mostrará necessário aos diversos países ao mesmo tempo, mas constituirá um processo inevitável. E a partir dessa evolução histórica podemos acreditar na inversão gradativa do processo atual, mediante a construção de uma globalização de baixo para cima, uma globalização verdadeiramente humana. Novas condições materiais -como as enumeradas acima- e novas condições filosóficas devem conspirar para levar à nova grande transformação, à maneira do que o sociólogo americano Thorstein Veblen (1857-1929) pensou no alvorecer do século 20. O século 21 será certamente o novo século das luzes.
Pela primeira vez na história o novo deixa de ser apenas uma referência ao amanhã; ele é também constituído do que hoje ainda não se realizou, mas a partir de possibilidades atuais concretas. Tudo o que nos rodeia, aqui e em outras partes do mundo, sugere a possibilidade de realizações viáveis, mas ainda não presentes. A história atual é, em si mesma, uma matriz de novidades.
Cada coletividade e cada pessoa são testemunhas integrais do presente, ainda que nem sempre possa avaliá-lo. E, paralelamente, cada pessoa (ou grupo) é também um testemunho vivo de um mundo tornado próximo.
Somos contemporâneos do verdadeiro milagre pelo qual cada geração entende -ou, ao menos, é capaz de entender- o universo como um todo e percebe cada qual de suas partes como parte do mundo. E -outra novidade- a consciência de ser mundo é dada, concomitantemente, ao lugar e ao indivíduo.

Nova inteligência Essa nova iluminação -sobre o mundo e sobre si mesmo- tem muito que ver com a ubiquidade das técnicas, base material da universalidade empírica -dada pela unicidade das técnicas e do motor que as anima-, a qual oferece a todos a possibilidade de reconhecer ao planeta a condição de ser universal, já que a facticidade das ações encontra um denominador comum, unindo todos os fatos numa só lógica. Agora que o capitalismo é a única forma político-econômica dominante sobre a face da Terra, alcançamos também uma nova qualidade da dialética, agora empiricamente realizada e manifestada como contradição em estado puro; tudo o que é vivido pelos homens participa dessa condição dialética.
Como cada pessoa pode entender o mundo como um todo, a dialética se torna um patrimônio comum: todos de alguma forma a vivem; muitos a reconhecem como oposição, contraste ou paradoxo; alguns a definem e identificam como condição existencial. Mas, nessa mesma sequência, essa é também a ordem lógica da produção de uma nova inteligência do mundo.
A dialética se confunde com o presente vivido e o apego ao passado pode significar uma identidade com as raízes, mas a escolha do futuro vai, sobretudo, depender desse entendimento do mundo atual. Nossa grande esperança vem do fato de que a partir deste século é a vida, isto é, a própria existência, que ilumina o futuro.

Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de, entre outros livros, "Por uma Outra Globalização" (Record) e "Pensando o Espaço do Homem" (Ed. Hucitec). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C." do Mais!.


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