São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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O homem cindido

Obra lançada nos EUA reúne os poemas que Joseph Brodsky compôs em russo e verteu para o inglês

Mario Sergio Conti
da Reportagem Local

Iosif Aleksandrovich Brodsky nasceu na então Leningrado (atual São Petersburgo) às vésperas da invasão nazista, em 1940, e morreu de ataque cardíaco em Nova York, aos 55 anos, conhecido pelo nome de Joseph Brodsky. Sua vida foi cortada ao meio, dividindo-se em dois mundos e duas línguas.
Sem ter sido um dissidente político, Brodsky foi perseguido, preso num campo de trabalhos forçados no Ártico e finalmente expulso da União Soviética. Escrevendo em inglês, tornou-se o poeta laureado dos Estados Unidos. Pela sua obra em russo ganhou o Nobel de Literatura, aos 47 anos.
Brodsky abandonou a escola aos 15 anos. Foi operário, assistente de legista em autópsias, marinheiro e vagabundo. Também lia muito, traduzia, escrevia poemas e era malvisto pelas autoridades literárias stalinistas.
Em 1963, foi acusado de "parasitismo" e de não cumprir o "dever constitucional de trabalhar honestamente pelo bem da pátria-mãe". Sua poesia foi classificada como "pornográfica e anti-soviética". Houve o seguinte diálogo no seu julgamento:
"Juiz: Qual é a sua ocupação?
Brodsky: Sou poeta.
Juiz: Quem o credenciou como poeta? Quem lhe deu o direito de se intitular poeta?
Brodsky: Ninguém. Quem me deu o direito de pertencer ao gênero humano?".
Ele foi primeiro internado numa clínica psiquiátrica e depois condenado a cinco anos de trabalhos forçados no Ártico. Graças a uma campanha internacional, foi libertado depois de cumprir 18 meses da pena. "Pelos padrões soviéticos, minha punição foi homeopática", disse.
A reputação internacional evitava que Brodsky fosse preso, mas aumentava a irritação do governo soviético. Em 1972, ele foi detido, levado ao aeroporto, colocado num avião e, com a cidadania cassada, banido da União Soviética.
Brodsky estabeleceu-se nos Estados Unidos. Dava aulas em faculdades e publicava seus escritos nas revistas "The New Yorker", "The New York Review of Books" e no jornal "The New York Times".
Em 1990, ele foi escolhido poeta laureado dos Estados Unidos. Sua saúde estava ruim. Sofrera dois infartos e passara por uma cirurgia para receber pontes de safena. Brodsky morreria em 1996, no seu apartamento no Brooklin, onde vivia com a mulher, Maria, e a filha, Anna.
Brodsky publicou em 1978 um ensaio muito diferente de qualquer outra coisa que tenha escrito em prosa: "Depois de uma Viagem".
É um ensaio irritado, que parece ter sido escrito por um jornalista apressado e arrogante.
"Depois de uma Viagem", publicado em "On Grief and Reason" (Sobre o Sofrimento e a Razão, ed. Farrar, Straus, Giroux, 1995), relata a semana que o poeta passou no Rio de Janeiro, participando de um congresso de escritores. Percebe-se o Brasil já na hora do embarque, em Nova York: "Confusão total no aeroporto: a Varig vendeu o dobro de passagens para o vôo; os funcionários da companhia são afetados e indiferentes".
Também se percebe, no mesmo parágrafo, a desinformação do poeta. Ele diz que todos os empregados da Varig são empregados do Estado. O poeta vai de táxi do aeroporto do Galeão para o centro da cidade percorrendo a margem direita do "famoso Rio de Janeiro" ("famous January River"). Ou seja, achou que a baía da Guanabara era um rio. Pomposo, ele informa aos leitores que a estátua do Cristo Redentor "foi dada de presente à cidade por ninguém menos que Mussolini". Há algumas observações pertinentes, ao menos para um estrangeiro de passagem: a cidade contrasta riqueza e miséria monotonamente; "os séculos 18 e 19 foram varridos" da paisagem; a arquitetura dos prédios da beira-mar macaqueia o estilo de Le Corbusier, "esse idiota"; a população é "extremamente pobre, um tanto desesperada, mas no todo conformada".
Semana no Rio
As experiências cariocas de Brodsky foram desanimadoras. Ele conta como lhe afanaram US$ 400 na praia de Copacabana: o ladrão estava acompanhado de um pastor alemão, que de vez em quando saltava amistosamente nas pernas de Brodsky, distraindo-o; enquanto o quadrúpede lhe fazia festa, o bípede lhe bateu a carteira.
Além do ensaio, a semana de Brodsky no Brasil lhe rendeu um poema, "Rio Samba". Ele admite que os versos são de pés quebrados, "mas algumas rimas não são tão ruins". "Rio Samba" integra um livro de Brodsky publicado há poucos meses nos Estados Unidos, "Collected Poems in English". O volume reúne todos os poemas que ele escreveu diretamente em inglês, os que traduziu diretamente do russo e os que foram vertidos para o inglês por outros poetas sob a supervisão direta de Brodsky.
O poeta aprendeu inglês sozinho, na juventude, lendo e traduzindo poesia com o auxílio de um dicionário inglês-russo. Os poetas de que mais gostou, além de W.H. Auden (1907-1973), foram os metafísicos John Donne (1572-1631) e Andrew Marvell (1621-1678), que lhe marcaram a obra. Ao ser forçado a viver no Ocidente, seu inglês era, como escreveu, "elisabetano".
Cinco anos depois, em 1977, morando em Nova York, Brodsky foi a uma loja na Sexta Avenida, comprou uma máquina de datilografia com teclado ocidental e passou a escrever em inglês ensaios e, ocasionalmente, poemas.
"Quando um escritor recorre a um idioma que não a sua língua-mãe, ele o faz por necessidade, como Conrad, ou devido a uma ambição ardente, como Nabokov, ou para obter uma estranheza maior, como Beckett", escreveu Brodsky para explicar por que começou a escrever em inglês. Seu motivo foi bem outro: "Meu único propósito então, tal como hoje, era me aproximar do homem que considero a melhor mente do século 20: Wystan Hugh Auden".
Em prosa, o inglês de Brodsky é dúctil como o de um bom escritor nativo. Na sua poesia, em que pese a maestria, há um quê de insegurança: talvez limitação vocabular ou dificuldade em captar a sonoridade das palavras.
Críticos literários bilíngues sustentam que os poemas de Brodsky em russo são muito superiores aos em inglês. De todo modo, os em inglês valem por si mesmos. Eles têm o distanciamento e a estranheza que Brodsky detecta no francês de Beckett. A tradução acima do poema de Brodsky, escrito em inglês, busca preservar essa estranheza.


Collected Poems in English

540 págs., US$ 30
de Joseph Brodsky. Organização de Ann Kjellberg. Ed. Farrar, Straus and Giroux (EUA)


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