São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Ponto de Fuga

As vanguardas da Castafiore


Uma das formas mais fortes e vivas da criação no século 20 foi excluída das artes porque críticos e curadores de vanguarda nunca a olharam com interesse decente: a história em quadrinhos


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

N o dia 10 de dezembro, o caderno Mais! publicou uma entrevista com Claire Bishop, que é inglesa, crítica e professora voltada para as artes de hoje. Eis um trecho: "Minha sensação -a partir de conversas que tive com pessoas em São Paulo e de minha visita à Bienal de 2002- é que o Brasil teve duas exposições conservadoras sob a curadoria do alemão Alfons Hug".
Claire Bishop emite assim uma opinião grave, e nominal, sobre duas mostras, das quais viu apenas uma. Insidiosa, mexe com brios nacionalistas, aproximando as palavras "Brasil" e "alemão", uma estratégia de quem tem prática militante. Mas a questão principal não é essa. Ela se acha no campo cultural, mais amplo, que a contém. Campo criado pelas vanguardas artísticas, adubado por convicções e idéias abstratas, falsamente complexas, que, nas necessidades do uso, simplificam-se ainda mais. Vanguarda é termo militar.
Pressupõe luta guerreira. Nela vale tudo. As idéias simples são aí necessárias, porque se transformam em palavras de ordem, de propaganda. "Conservador" torna-se não um conceito analítico ou classificatório, mas insulto supremo. Ele permite pegar alguém e enviá-lo, com desprezo, para a retaguarda. Tais ataques em nome da crítica na verdade destroem a própria substância da crítica. Servem-se de pressupostos indiscutidos. Valem-se das convicções próprias a um grupo que compartilha das mesmas idéias. Basta, nesse caso, a opinião por ouvir dizer.

Rastapopoulous
Um dos traços fortes dos movimentos modernos foi seu autoritarismo. Desenharam-se então fronteiras precisas, decretando: isto é moderno, aquilo não é. Ou, de maneira mais substancial: isto é arte, aquilo não é. Ao se institucionalizarem, as vanguardas terminaram por ocupar as funções de comando que pertenciam aos seus inimigos do passado, os velhos acadêmicos. Os novos impuseram-se com a mesma intransigência oficial de seus antecessores. Viraram, eles também, convencionais e conservadores. O centro cultural Georges Pompidou, na França, inaugurado nos anos 1970, é o monumento tangível dessa institucionalização, o palácio das vanguardas, como outrora existiam os palácios das belas artes.
Só hoje esse templo parisiense da arte contemporânea se abriu para uma mostra sobre os quadrinhos, homenageando Hergé [1907-83], criador de Tintim. O acontecimento tem uma dimensão histórica e simbólica. Até agora, as bienais de arte contemporânea, as instituições de vanguarda, salvo algumas exceções que decerto devem existir, não se incomodaram com os quadrinhos e não os acolheram. Em conseqüência, uma das formas pulsantes mais fortes e mais vivas da criação no século 20 foi excluída do campo das artes porque críticos e curadores de vanguarda nunca olharam com interesse decente para ela.
Convenceram-se, ouviram dizer que não era arte, e não se preocuparam mais. Nem os artistas da pop art conseguiram fazer com que o mundo chique dos modernos se debruçasse com seriedade sobre essa produção. Roy Lichtenstein sim. Stan Lee [criador do Homem-Aranha] não.

Topete
Agora, com a crise dos valores modernos bastante acentuada, Tintim (com mais de 70 anos!) pôde entrar no Centro Georges Pompidou. Depois desse exemplo prestigioso, é de se esperar que os quadrinhos saiam do gueto "arte menor" em que se encontravam. Passarão, é bem provável, a freqüentar bienais de arte e quejandos, no mundo inteiro.
jorgecoli@uol.com.br


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