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Saddam versus Cicarelli
Interesse popular por vídeos tabus compensa a segurança e a solidão da vida nas sociedades civilizadas
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
A vida não está fácil para os
internautas. Leio sobre o episódio da suspensão do célebre
vídeo de Daniella Cicarelli numa praia espanhola. Por que
numa praia espanhola quando
Portugal estava mais perto?
Mistério. Divago. No momento em que Cicarelli desaparecia dos radares, os internautas
elegiam o vídeo da execução
de Saddam como um dos mais
vistos do YouTube.
Foram milhões de visitas
para espetáculo tão pobre,
bárbaro e repulsivo. Chamem-me moralista. Mas
quando se proíbe um pouco de
pornografia "light" e se aplaude a pornografia mais "hard",
algo está errado. Entre Cicarelli e Saddam, o mundo prefere
um homem com bigode.
Bem sei que o leitor acabou
de torcer o nariz. Não negue.
Eu vi. Será possível, pensa o
leitor com seu moralismo inflamado, comparar o sexo e a
morte? Não, leitor. Possível,
não. É inevitável. O sexo começa tudo o que somos. A
morte termina com tudo o que
fomos. Numa formulação
mais respeitável, minha vontade seria escrever que o sexo
e a morte são as duas únicas
certezas dessa vida, embora
nos últimos tempos o respeitável leitor tenha tido algumas
dúvidas sobre a primeira. Não
negue outra vez.
Por isso a pornografia é importante: eu entendo o que leva um adolescente, ou um
adulto em fase adolescente, a
procurar pornografia. Fenômeno de compensação: dois
corpos em fornicação maquinal sempre servem como aperitivo. Sobretudo na ausência
de pratos principais. Masturbação não é um vício solitário.
É uma espécie de "ménage à
trois" entre o sujeito, a mão do
sujeito e um fantasma imaginário, que se deseja presente.
Satisfaz. Não convence.
Exatamente como as vidas
seguras e higienizadas do Ocidente moderno. Satisfazem.
Não convencem. Sim, tivemos
duas guerras mortíferas no século 20 que enterraram as ilusões sobre a natureza dos homens. Mas, apesar do sangue
das trincheiras, e do Holocausto, e da miséria material e
humana que os conflitos arrastaram, a verdade é que a
violência foi recuando das
nossas vidas. Converteu-se na
exceção da regra e não, como
acontecia nas sociedades dos
nossos antepassados, em parceiros onipresentes. Talvez na
Somália ou no Sudão as coisas
não sejam bem assim. Ou no
Iraque. Ou -voz baixa, alguma tosse- no Rio e em São
Paulo, quando a criminalidade mostra as garras. Mas vocês
percebem a idéia: as nossas vidas estão mais seguras, não
menos. E tanta segurança acaba fatalmente por cansar.
Pior: cansa e não consegue
eliminar um certo gosto por
violência e adrenalina, pulsão
primitiva que a civilização reprime mas não destrói completamente. Não é preciso ler
Freud a respeito. Basta olhar
em volta: quando os adultos se
multiplicam em desportos radicais, eles não se limitam a
cansar o corpo. O corpo é um
detalhe. Eles procuram derrotar o espírito: esse tédio crescente que sempre foi o grande
terror dos homens modernos.
E um terror, por definição,
tem de ser exorcizado. Assistimos ao vídeo de Saddam e
consumimos pornografia com
uma voracidade crescente para compensar o que não temos: violência e sexo. E, compensando, transgredimos o
que somos: criaturas seguras
e, nas sociedades urbanas e
pós-industriais, crescentemente solitárias.
Espreitar pelo buraco da fechadura é sentir mexer por
dentro (ou, no caso da pornografia, por fora) um músculo
que julgávamos adormecido.
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