São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Saddam versus Cicarelli

Interesse popular por vídeos tabus compensa a segurança e a solidão da vida nas sociedades civilizadas

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

A vida não está fácil para os internautas. Leio sobre o episódio da suspensão do célebre vídeo de Daniella Cicarelli numa praia espanhola. Por que numa praia espanhola quando Portugal estava mais perto? Mistério. Divago. No momento em que Cicarelli desaparecia dos radares, os internautas elegiam o vídeo da execução de Saddam como um dos mais vistos do YouTube.
Foram milhões de visitas para espetáculo tão pobre, bárbaro e repulsivo. Chamem-me moralista. Mas quando se proíbe um pouco de pornografia "light" e se aplaude a pornografia mais "hard", algo está errado. Entre Cicarelli e Saddam, o mundo prefere um homem com bigode.
Bem sei que o leitor acabou de torcer o nariz. Não negue. Eu vi. Será possível, pensa o leitor com seu moralismo inflamado, comparar o sexo e a morte? Não, leitor. Possível, não. É inevitável. O sexo começa tudo o que somos. A morte termina com tudo o que fomos. Numa formulação mais respeitável, minha vontade seria escrever que o sexo e a morte são as duas únicas certezas dessa vida, embora nos últimos tempos o respeitável leitor tenha tido algumas dúvidas sobre a primeira. Não negue outra vez.
Por isso a pornografia é importante: eu entendo o que leva um adolescente, ou um adulto em fase adolescente, a procurar pornografia. Fenômeno de compensação: dois corpos em fornicação maquinal sempre servem como aperitivo. Sobretudo na ausência de pratos principais. Masturbação não é um vício solitário. É uma espécie de "ménage à trois" entre o sujeito, a mão do sujeito e um fantasma imaginário, que se deseja presente. Satisfaz. Não convence.
Exatamente como as vidas seguras e higienizadas do Ocidente moderno. Satisfazem. Não convencem. Sim, tivemos duas guerras mortíferas no século 20 que enterraram as ilusões sobre a natureza dos homens. Mas, apesar do sangue das trincheiras, e do Holocausto, e da miséria material e humana que os conflitos arrastaram, a verdade é que a violência foi recuando das nossas vidas. Converteu-se na exceção da regra e não, como acontecia nas sociedades dos nossos antepassados, em parceiros onipresentes. Talvez na Somália ou no Sudão as coisas não sejam bem assim. Ou no Iraque. Ou -voz baixa, alguma tosse- no Rio e em São Paulo, quando a criminalidade mostra as garras. Mas vocês percebem a idéia: as nossas vidas estão mais seguras, não menos. E tanta segurança acaba fatalmente por cansar.
Pior: cansa e não consegue eliminar um certo gosto por violência e adrenalina, pulsão primitiva que a civilização reprime mas não destrói completamente. Não é preciso ler Freud a respeito. Basta olhar em volta: quando os adultos se multiplicam em desportos radicais, eles não se limitam a cansar o corpo. O corpo é um detalhe. Eles procuram derrotar o espírito: esse tédio crescente que sempre foi o grande terror dos homens modernos.
E um terror, por definição, tem de ser exorcizado. Assistimos ao vídeo de Saddam e consumimos pornografia com uma voracidade crescente para compensar o que não temos: violência e sexo. E, compensando, transgredimos o que somos: criaturas seguras e, nas sociedades urbanas e pós-industriais, crescentemente solitárias.
Espreitar pelo buraco da fechadura é sentir mexer por dentro (ou, no caso da pornografia, por fora) um músculo que julgávamos adormecido.


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