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Ponto de Fuga
Notas de viagem
Sem repetições nem fórmulas,
a arte de James Ensor
expõe a estupidez
e a crueldade dos homens
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Dias de luz, em meio a um
inverno chuvoso. Há
sempre, em Paris, um
tom de aquário cinza-azulado
que filtra tudo.
No Museu d'Orsay, a grande
nave é uma festa, apesar da arquitetura solene que Gae Aulenti inventou para completar
a antiga estação de trem.
Os visitantes andam, param,
correm, riem, fotografam, fotografam-se.
Os museus fazem parte, do
modo mais límpido, das casas
do sonho coletivo, escreveu
Walter Benjamin. Ele os associou também aos "grands magazins", às lojas de departamento e aos bazares, em sua
crítica a uma sociedade que
transforma tudo em mercadoria. Orsay faz pensar um pouco
nisso, mas sem a condenação
pessimista.
Vistas do alto, as pessoas que
percorrem a grande nave parecem felizes apenas por se encontrarem ali, compartilhando
o espaço das esculturas que as
recebem: a "Mulher Picada por
uma Cobra", de Clésinger, a
"Safo", de Pradier, os estupendos negros de Cordier, o "Ugolino" e a "Dança" de Carpeaux,
que incidiriam tanto sobre Rodin, e outras, pontuam o percurso.
À direita, o imenso quadro de
Couture, "Os Romanos da Decadência", contraposto a "O
Ateliê do Artista", de Gustave
Courbet, tela também enorme,
mas escura, difícil de expor,
megalomaníaca exibição do
próprio gênio convencido de si.
Tela estupenda de severidade e de audácia, que assinala o
fim desses quadros gigantescos, sem os quais nenhum artista conseguia então ser considerado de fato grande.
Assombração
"Na minha cabeça os ventos
passam,/ Ventos que passam
sob a porta,/ E os ratos negros
de alto a baixo/ Povoam minha
cabeça morta./ -Quebrem-lhes vértebras e patas."
Trecho do poema "Canção de
Louco (nº 3)", de Émile Verhaeren, em seu livro "Os Campos Alucinados".
Verhaeren era belga, e em
sua Bélgica, durante a virada do
século 19 para o 20, soprou nas
artes um espírito simbolista e
perverso, absurdo e inconformado.
Verhaeren consagrou um livro à análise de James Ensor,
seu contemporâneo, pintor a
quem o Museu d'Orsay consagrou uma exposição. Ela foi
concentrada em tamanho. A
grande tela "Entrada de Cristo
em Bruxelas", do museu Getty,
de Los Angeles, não veio. Ensor
a pintou em 1889: foi recusada
mesmo pelo grupo de vanguarda ao qual ele pertencia.
Mas outros quadros cruciais
estiveram presentes, e a mostra
desenhou bem a trajetória do
artista. As primeiras obras fogem ao triunfo solar do impressionismo para buscar ambientes interiores: são bem próximas de Vuillard, com escuros
inquietantes, porém.
Depois, explosões de luzes
artificiais, em mundos que evocam ao mesmo tempo Turner e
Odilon Redon.
No final dos anos 1880, iniciam-se os quadros enraivecidos, furiosos, as máscaras horrendas, as caveiras acusadoras,
metáfora dos comportamentos
coletivos convencionais e hipócritas. Daí para a frente, até sua
morte, em 1949, o mundo foi
para Ensor uma fonte de angústia inquieta.
Sem repetições nem fórmulas, sua arte expõe a estupidez e
a crueldade dos homens.
Aprumo
Os quadros de Manet são
construídos com um equilíbrio
clássico nada impressionista.
Foram reunidos em duas das
supremas salas de Orsay. A iluminação lhes exalta a vida interior: estão lá como seres ardentes e intensos.
Lusco-fusco
Tristes são as galerias dos
grandes formatos no Louvre.
De David a Delacroix e Delaroche, todos estão lívidos sob a
luz zenital. A grande beleza que
possuem parece uma arredia
promessa mal vislumbrada. Porém, depois que os olhos se esforçam, magnífica grandeza
surge como recompensa.
jorgecoli@uol.com.br
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