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Cidade catástrofe
"Ouvi o grito "Meu Deus'", relata o poeta Apollinaire em um artigo de jornal sobre a enchente
Hoje, quase 600 miseráveis estão dormindo em Saint-Sulpice.
Um chapeleiro, sua mulher e os três filhos deles dormem com os punhos cerrados. Olhei
para as mulheres solteiras. Elas dormiam sobre colchões, essas infelizes. Ouvi o grito "Meu Deus!" e uma delas cantarolando em voz baixa o refrão de uma canção que normalmente seria alegre,
mas cujas palavras as circunstâncias tornavam desoladoras... Outros que guardavam silêncio me olharam com medo em seus olhos. Outros, finalmente, roncavam.
Trecho escrito por Guillaume Apollinaire (1880-1918), autor de "Álcoois", em janeiro de 1910 (citado à pág. 90 de "Paris Debaixo d'Água", de Jeffrey Jackson). Tradução de Clara Allain.
Para o historiador Jeffrey Jackson, autor de "Paris debaixo d'Água", fatores climáticos, geográficos e urbanos levaram à inundação da capital francesa, que teve quase metade de sua área alagada
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A Câmara dos Deputados francesa alagada, em janeiro de 1910
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Ela já era a cidade-luz,
desfrutava do status
de capital artística e literária e, fazia algumas décadas, se tornara a metrópole mais moderna
do mundo.
Mas, em janeiro de 1910, a
glamourosa Paris sucumbiu à
força da natureza e viu quase
metade de sua área -bairros
como Marais e Quartier Latin- ser tomada pelas águas,
pela lama e a miséria.
A rara combinação de altos
índices de chuva, condições climáticas atípicas e localização
geográfica foram os fatores que
precipitaram a inundação.
Contudo a excessiva impermeabilização das ruas, largamente pavimentadas em 1860
pela reforma urbana que remodelara a cidade, potencializou
esse efeito devastador.
A enchente, que completa
cem anos, é tema de exposição
na França e do livro "Paris Under Water" (Paris Debaixo d'Água), de Jeffrey Jackson.
O historiador americano diz
que a cidade foi refém de sua
crença quase ingênua no progresso, embalada pela filosofia
positivista então na moda.
Mas, "quando a tecnologia falhou, a população se sentiu
traída", afirma Jackson em entrevista à Folha.
Vincada por forte polarização social e econômica, Paris
acabou sendo salva das águas
pela inesperada solidariedade
que desabrochou entre seus
habitantes, partilhando a mesma desgraça.
Jackson, que leciona no departamento de história do
Rhodes College, em Memphis
(EUA), destaca outro aspecto
fundamental: graças ao desenvolvimento de novas máquinas
fotográficas, mais leves e fáceis
de carregar, a capital submersa
se tornou objeto de enquadramentos sem fim, que fizeram
de sua agonia um evento midiático de alcance mundial.
FOLHA - Por que Paris ficou inundada em janeiro de 1910?
JEFFREY JACKSON - A enchente foi
o resultado da combinação de
condições climáticas extremas
e decisões humanas relativas à
engenharia. O verão de 1909
havia sido extremamente chuvoso, e os níveis de água no solo
permaneceram altos até 1910.
Quando, em dezembro de
1909 e janeiro de 1910, houve
ainda mais precipitação, o solo
não suportou mais e deixou de
absorver a água da chuva.
As altas temperaturas para a
época [era o meio do inverno
europeu], especialmente nas
montanhas da França central,
ajudaram a derreter a neve,
carregando grande quantidade
de água para rios e riachos.
Um sistema de baixa pressão
atmosférica se instalou em todo o país no começo de janeiro,
provocando ainda mais precipitação. Em todo o norte da
França, os afluentes do Sena
começaram a transbordar e
despejar suas águas no rio.
A infraestrutura urbana de
Paris acabou piorando ainda
mais a situação. A água brotava
das bocas de lobo e invadia ruas
e porões. As galerias subterrâneas, renovadas por Haussmann em 1860, não foram suficientes para suportar tal quantidade de água.
Também invadiu os túneis
do metrô, penetrou no principal canal sob o Sena e atingiu
áreas do outro lado do rio.
O engenheiro-chefe do serviços de águas durante a reforma
feita por Haussmann, Eugène
Belgrand, havia recomendado
que os muros dos cais fossem
elevados para prevenir inundações, mas os engenheiros posteriores não seguiram o aviso.
FOLHA - As reformas levadas a cabo por Haussmann necessariamente aumentaram a impermeabilização do solo. Isso não foi determinante para que a inundação ocorresse?
JACKSON - Sim, foi um dos fatores que contribuíram para a
inundação. Pois, à medida que
mais áreas do solo receberam
pavimento impermeabilizante,
mais água passou a ser direcionada diretamente para o rio.
Ao expandir a cidade em
1860, Haussmann deflagrou
um processo que pavimentou
inúmeras áreas da capital.
FOLHA - Como a enchente poderia
ter sido evitada?
JACKSON - Não estou seguro de
que pudesse ter sido evitada,
pois resultou de uma conjunção de fatores que ninguém poderia ter previsto.
Os parisienses acreditavam
que sua cidade não estava mais
à mercê de inundações (em geral, o nível do rio sobe em todo
inverno) devido à reengenharia
urbana, mas suas crenças foram postas à prova quando a
tecnologia mais moderna provou ser insuficiente.
FOLHA - A enchente de 1910 foi o
primeiro grande evento a opor as
forças da natureza às da civilização
no século 20?
JACKSON - Não foi necessariamente o pior, mas certamente
foi um excelente exemplo dessa
tensão. Como disse, os parisienses estavam convictos de
que a cidade poderia suportar
qualquer desafio proveniente
das forças da natureza, porque
haviam construído a metrópole
mais moderna da época.
Quando a água começou a
aumentar, as pessoas olhavam
e riam, não acreditando que o nível pudesse subir tanto quanto subiu -ou, caso de fato o fizesse, não imaginavam as consequências que efetivamente
ocorreram.
Os relatos da época evidenciam como a população acreditava de forma escancarada no
poder do progresso e da ciência
para tornar suas vidas melhores. Quando a tecnologia falhou, ela se sentiu traída.
FOLHA - Considerando-se a forte
penetração da filosofia positivista
na virada do século 19 para o 20, pode-se dizer que a inundação decorreu da ideologização do progresso?
JACKSON - A enchente desafiou
a crença generalizada no poder
do progresso em tornar as coisas melhores.
Não quero dizer, com isso,
que essa crença tenha provocado a enchente, pois vários outros fatores, fora do controle do
homem, atuaram ali -precipitação pluviométrica, a geografia da região etc.
Mas a fé no progresso levou
as pessoas a acreditar que haviam encontrado um modo de
controlar o rio, o que acabou levando a um sentimento de
complacência e de que estariam seguros sob quaisquer circunstâncias.
FOLHA - Como os parisienses reagiram, tanto gente do povo quanto
escritores, artistas e intelectuais?
JACKSON - Quando ficou claro
que a infraestrutura moderna
de Paris não poderia salvar a cidade, os parisienses procuraram ajudar uns aos outros.
Vizinhos ou não, policiais,
soldados, bombeiros, marinheiros e trabalhadores resgataram pessoas em situação de
risco e distribuíram comida.
O governo, a Igreja Católica e
a Cruz Vermelha criaram abrigos de emergência por toda a
cidade. Foram erguidas passagens de madeira ao longo das
ruas alagadas, para que a população pudesse se locomover.
Naquele momento, Paris era
uma cidade extremamente dividida, enredada em uma série
de conflitos políticos, sociais,
religiosos e econômicos.
Apesar disso, a inundação
despertou um sentimento de
camaradagem e solidariedade.
O poeta Guillaume Apollinaire escreveu vários artigos de
jornal sobre a enchente, mas,
num primeiro momento, não
demonstrou preocupação
quando a água começou a subir.
Mas, após ter presenciado o
grau de destruição, começou a
temer pelo futuro de Paris.
Ele fez um tour pela cidade
inundada, relatando a devastação que viu. Visitou um abrigo e
ficou chocado com a imundície
e a tristeza que presenciou.
Suas descrições estão entre
as mais impactantes que já vi
sobre o tema.
FOLHA - Que áreas da capital foram mais atingidas?
JACKSON - Os distritos de números 1 a 9 e os de números 12 a
16 foram atingidos em alguma
medida.
Mas muitas das cidades acima e abaixo do Sena também
foram tomadas pela águas.
Mesmo partes que não haviam sido atingidas foram afetadas por cortes no fornecimento de gás e eletricidade,
deixando as pessoas expostas
ao frio e à escuridão em meio ao
rigoroso inverno [a temperatura média em Paris, em janeiro
daquele ano, foi de 1 ºC].
Em alguns casos, por semanas a fio.
FOLHA - Foi o primeiro grande
evento midiático do século 20?
JACKSON - Não foi o primeiro
desastre a ser acompanhado
amplamente pela mídia.
Os terremotos de 1906, em
San Francisco (EUA), e o de
Messina (Itália), em 1908, também haviam sido largamente
relatados e fotografados. Contudo a imagística da inundação
de 1910 foi muito importante.
Pessoas em todo o mundo
viam, nos jornais e nas revistas,
imagens da cidade inundada e
enviavam dinheiro para ajudar.
A Cruz Vermelha e outras
agências vendiam álbuns de fotografia como estratégia para
levantar fundos.
Muitas pessoas compravam
cópias de fotos, algumas em
forma de cartão-postal, para ter
uma lembrança do desastre.
FOLHA - Qual foi o papel das novas
tecnologias na propagação midiática da inundação?
JACKSON - A enchente de 1910
ocorreu num momento em que
o desenvolvimento da tecnologia havia tornado muito mais
fácil tirar fotografias.
As câmeras se tornaram mais
fáceis de carregar e, por consequência, mais fáceis de movimentar em áreas atingidas.
Os jornais de grande circulação (frequentemente sensacionalistas nas coberturas) já existiam havia décadas, mas foi naquela época que passaram a estampar fotos em suas páginas.
FOLHA - Essa foi a razão por que teve um efeito tão grande sobre a opinião pública mundial -muito
maior, por exemplo, do que o terremoto em San Francisco?
JACKSON - O terremoto em San
Francisco também teve um impacto poderoso sobre a opinião
pública, dada a dimensão do fato. Mas Paris era uma cidade
tão icônica que a tragédia se
tornou, em vários sentidos,
muito mais pavorosa.
Ela era vista como a capital
da cultura, da arte e da literatura, e muitas pessoas de todas as
partes do mundo a visitavam
regularmente.
Paris também era vista como
uma das cidades mais modernas do mundo, devido à reforma urbana de Haussmann.
Gente do mundo todo viera à
capital durante as exposições
universais, em fins do século 19,
que culminaram na exposição
de 1900, para poder ver sua beleza e modernidade.
Isso tornou Paris especial para muitas pessoas, razão por
que a enchente foi tão chocante. Era difícil acreditar que uma
cidade tão famosa pudesse um
dia correr tamanho perigo.
LIVRO - "Paris Under Water" (ed.
Palgrave Macmillan, US$ 27, R$ 50,
272 págs.), de Jeffrey Jackson, pode
ser encomendado pelo site
www.amazon.com
EXPOSIÇÃO - A Galeria das Bibliotecas, em Paris, mantém até 28/3 a
mostra "Paris Inundada - 1910".
Mais informações em
www.inondation1910.paris.fr
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