São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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Cidade catástrofe

"Ouvi o grito "Meu Deus'", relata o poeta Apollinaire em um artigo de jornal sobre a enchente
Hoje, quase 600 miseráveis estão dormindo em Saint-Sulpice.
Um chapeleiro, sua mulher e os três filhos deles dormem com os punhos cerrados. Olhei para as mulheres solteiras. Elas dormiam sobre colchões, essas infelizes. Ouvi o grito "Meu Deus!" e uma delas cantarolando em voz baixa o refrão de uma canção que normalmente seria alegre, mas cujas palavras as circunstâncias tornavam desoladoras... Outros que guardavam silêncio me olharam com medo em seus olhos. Outros, finalmente, roncavam.


Trecho escrito por Guillaume Apollinaire (1880-1918), autor de "Álcoois", em janeiro de 1910 (citado à pág. 90 de "Paris Debaixo d'Água", de Jeffrey Jackson). Tradução de Clara Allain.


Para o historiador Jeffrey Jackson, autor de "Paris debaixo d'Água", fatores climáticos, geográficos e urbanos levaram à inundação da capital francesa, que teve quase metade de sua área alagada

Getty Images
A Câmara dos Deputados francesa alagada, em janeiro de 1910

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Ela já era a cidade-luz, desfrutava do status de capital artística e literária e, fazia algumas décadas, se tornara a metrópole mais moderna do mundo.
Mas, em janeiro de 1910, a glamourosa Paris sucumbiu à força da natureza e viu quase metade de sua área -bairros como Marais e Quartier Latin- ser tomada pelas águas, pela lama e a miséria.
A rara combinação de altos índices de chuva, condições climáticas atípicas e localização geográfica foram os fatores que precipitaram a inundação.
Contudo a excessiva impermeabilização das ruas, largamente pavimentadas em 1860 pela reforma urbana que remodelara a cidade, potencializou esse efeito devastador.
A enchente, que completa cem anos, é tema de exposição na França e do livro "Paris Under Water" (Paris Debaixo d'Água), de Jeffrey Jackson.
O historiador americano diz que a cidade foi refém de sua crença quase ingênua no progresso, embalada pela filosofia positivista então na moda.
Mas, "quando a tecnologia falhou, a população se sentiu traída", afirma Jackson em entrevista à Folha.
Vincada por forte polarização social e econômica, Paris acabou sendo salva das águas pela inesperada solidariedade que desabrochou entre seus habitantes, partilhando a mesma desgraça.
Jackson, que leciona no departamento de história do Rhodes College, em Memphis (EUA), destaca outro aspecto fundamental: graças ao desenvolvimento de novas máquinas fotográficas, mais leves e fáceis de carregar, a capital submersa se tornou objeto de enquadramentos sem fim, que fizeram de sua agonia um evento midiático de alcance mundial.

 

FOLHA - Por que Paris ficou inundada em janeiro de 1910?
JEFFREY JACKSON -
A enchente foi o resultado da combinação de condições climáticas extremas e decisões humanas relativas à engenharia. O verão de 1909 havia sido extremamente chuvoso, e os níveis de água no solo permaneceram altos até 1910.
Quando, em dezembro de 1909 e janeiro de 1910, houve ainda mais precipitação, o solo não suportou mais e deixou de absorver a água da chuva.
As altas temperaturas para a época [era o meio do inverno europeu], especialmente nas montanhas da França central, ajudaram a derreter a neve, carregando grande quantidade de água para rios e riachos.
Um sistema de baixa pressão atmosférica se instalou em todo o país no começo de janeiro, provocando ainda mais precipitação. Em todo o norte da França, os afluentes do Sena começaram a transbordar e despejar suas águas no rio.
A infraestrutura urbana de Paris acabou piorando ainda mais a situação. A água brotava das bocas de lobo e invadia ruas e porões. As galerias subterrâneas, renovadas por Haussmann em 1860, não foram suficientes para suportar tal quantidade de água.
Também invadiu os túneis do metrô, penetrou no principal canal sob o Sena e atingiu áreas do outro lado do rio. O engenheiro-chefe do serviços de águas durante a reforma feita por Haussmann, Eugène Belgrand, havia recomendado que os muros dos cais fossem elevados para prevenir inundações, mas os engenheiros posteriores não seguiram o aviso.

FOLHA - As reformas levadas a cabo por Haussmann necessariamente aumentaram a impermeabilização do solo. Isso não foi determinante para que a inundação ocorresse?
JACKSON -
Sim, foi um dos fatores que contribuíram para a inundação. Pois, à medida que mais áreas do solo receberam pavimento impermeabilizante, mais água passou a ser direcionada diretamente para o rio.
Ao expandir a cidade em 1860, Haussmann deflagrou um processo que pavimentou inúmeras áreas da capital.

FOLHA - Como a enchente poderia ter sido evitada?
JACKSON -
Não estou seguro de que pudesse ter sido evitada, pois resultou de uma conjunção de fatores que ninguém poderia ter previsto.
Os parisienses acreditavam que sua cidade não estava mais à mercê de inundações (em geral, o nível do rio sobe em todo inverno) devido à reengenharia urbana, mas suas crenças foram postas à prova quando a tecnologia mais moderna provou ser insuficiente.

FOLHA - A enchente de 1910 foi o primeiro grande evento a opor as forças da natureza às da civilização no século 20?
JACKSON -
Não foi necessariamente o pior, mas certamente foi um excelente exemplo dessa tensão. Como disse, os parisienses estavam convictos de que a cidade poderia suportar qualquer desafio proveniente das forças da natureza, porque haviam construído a metrópole mais moderna da época.
Quando a água começou a aumentar, as pessoas olhavam e riam, não acreditando que o nível pudesse subir tanto quanto subiu -ou, caso de fato o fizesse, não imaginavam as consequências que efetivamente ocorreram.
Os relatos da época evidenciam como a população acreditava de forma escancarada no poder do progresso e da ciência para tornar suas vidas melhores. Quando a tecnologia falhou, ela se sentiu traída.

FOLHA - Considerando-se a forte penetração da filosofia positivista na virada do século 19 para o 20, pode-se dizer que a inundação decorreu da ideologização do progresso?
JACKSON -
A enchente desafiou a crença generalizada no poder do progresso em tornar as coisas melhores.
Não quero dizer, com isso, que essa crença tenha provocado a enchente, pois vários outros fatores, fora do controle do homem, atuaram ali -precipitação pluviométrica, a geografia da região etc.
Mas a fé no progresso levou as pessoas a acreditar que haviam encontrado um modo de controlar o rio, o que acabou levando a um sentimento de complacência e de que estariam seguros sob quaisquer circunstâncias.

FOLHA - Como os parisienses reagiram, tanto gente do povo quanto escritores, artistas e intelectuais?
JACKSON -
Quando ficou claro que a infraestrutura moderna de Paris não poderia salvar a cidade, os parisienses procuraram ajudar uns aos outros.
Vizinhos ou não, policiais, soldados, bombeiros, marinheiros e trabalhadores resgataram pessoas em situação de risco e distribuíram comida.
O governo, a Igreja Católica e a Cruz Vermelha criaram abrigos de emergência por toda a cidade. Foram erguidas passagens de madeira ao longo das ruas alagadas, para que a população pudesse se locomover.
Naquele momento, Paris era uma cidade extremamente dividida, enredada em uma série de conflitos políticos, sociais, religiosos e econômicos.
Apesar disso, a inundação despertou um sentimento de camaradagem e solidariedade. O poeta Guillaume Apollinaire escreveu vários artigos de jornal sobre a enchente, mas, num primeiro momento, não demonstrou preocupação quando a água começou a subir.
Mas, após ter presenciado o grau de destruição, começou a temer pelo futuro de Paris.
Ele fez um tour pela cidade inundada, relatando a devastação que viu. Visitou um abrigo e ficou chocado com a imundície e a tristeza que presenciou.
Suas descrições estão entre as mais impactantes que já vi sobre o tema.

FOLHA - Que áreas da capital foram mais atingidas?
JACKSON -
Os distritos de números 1 a 9 e os de números 12 a 16 foram atingidos em alguma medida.
Mas muitas das cidades acima e abaixo do Sena também foram tomadas pela águas.
Mesmo partes que não haviam sido atingidas foram afetadas por cortes no fornecimento de gás e eletricidade, deixando as pessoas expostas ao frio e à escuridão em meio ao rigoroso inverno [a temperatura média em Paris, em janeiro daquele ano, foi de 1 ºC].
Em alguns casos, por semanas a fio.

FOLHA - Foi o primeiro grande evento midiático do século 20?
JACKSON -
Não foi o primeiro desastre a ser acompanhado amplamente pela mídia.
Os terremotos de 1906, em San Francisco (EUA), e o de Messina (Itália), em 1908, também haviam sido largamente relatados e fotografados. Contudo a imagística da inundação de 1910 foi muito importante.
Pessoas em todo o mundo viam, nos jornais e nas revistas, imagens da cidade inundada e enviavam dinheiro para ajudar.
A Cruz Vermelha e outras agências vendiam álbuns de fotografia como estratégia para levantar fundos.
Muitas pessoas compravam cópias de fotos, algumas em forma de cartão-postal, para ter uma lembrança do desastre.

FOLHA - Qual foi o papel das novas tecnologias na propagação midiática da inundação?
JACKSON -
A enchente de 1910 ocorreu num momento em que o desenvolvimento da tecnologia havia tornado muito mais fácil tirar fotografias.
As câmeras se tornaram mais fáceis de carregar e, por consequência, mais fáceis de movimentar em áreas atingidas. Os jornais de grande circulação (frequentemente sensacionalistas nas coberturas) já existiam havia décadas, mas foi naquela época que passaram a estampar fotos em suas páginas.

FOLHA - Essa foi a razão por que teve um efeito tão grande sobre a opinião pública mundial -muito maior, por exemplo, do que o terremoto em San Francisco?
JACKSON -
O terremoto em San Francisco também teve um impacto poderoso sobre a opinião pública, dada a dimensão do fato. Mas Paris era uma cidade tão icônica que a tragédia se tornou, em vários sentidos, muito mais pavorosa.
Ela era vista como a capital da cultura, da arte e da literatura, e muitas pessoas de todas as partes do mundo a visitavam regularmente.
Paris também era vista como uma das cidades mais modernas do mundo, devido à reforma urbana de Haussmann. Gente do mundo todo viera à capital durante as exposições universais, em fins do século 19, que culminaram na exposição de 1900, para poder ver sua beleza e modernidade.
Isso tornou Paris especial para muitas pessoas, razão por que a enchente foi tão chocante. Era difícil acreditar que uma cidade tão famosa pudesse um dia correr tamanho perigo.


LIVRO - "Paris Under Water" (ed. Palgrave Macmillan, US$ 27, R$ 50, 272 págs.), de Jeffrey Jackson, pode ser encomendado pelo site www.amazon.com

EXPOSIÇÃO - A Galeria das Bibliotecas, em Paris, mantém até 28/3 a mostra "Paris Inundada - 1910".
Mais informações em www.inondation1910.paris.fr



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