São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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+ brasil 504 d.C.

ENSAIOS SOBRE LITERATURA DE SÉRGIO BUARQUE PERMITEM COMPREENDER A SUA "ARQUEOLOGIA" DA NAÇÃO DISCUTIDA NOS ESCRITOS SOBRE A HISTÓRIA

A SOMBRA VIVA DAS LETRAS

por Bento Prado Jr.

 "Pois toda felicidade não é mais, talvez, que felicidade de expressão"
(Michel Foucault)

Talvez a laboriosa e feliz iniciativa de Antonio Arnoni Prado (1), reunindo a quase totalidade da obra de crítica literária de Sérgio Buarque em dois grossos volumes, não tenha atingido plenamente seu alvo. Sua monumental obra de historiador parece deixar na sombra os escritos sobre literatura. Nosso intento, aqui, é justamente sublinhar a atualidade viva e o enorme interesse desses escritos, mostrando também como são complementares à obra do historiador. Como se, no limite, fosse impossível compreender sua "arqueologia" do Brasil contemporâneo sem acompanhar de perto seus ensaios sobre literatura e filosofia da literatura.
Para mostrá-lo, percorreremos apenas alguns ensaios escritos entre dezembro de 1948 e novembro de 1951, especialmente os desse último ano, pinçando alguns dos textos críticos que mostram os limites da poesia brasileira da época assim como das teorias literárias que teimavam em sobreviver entre nós, após seu esgotamento nos países de origem.
Os ensaios escolhidos nessa circunstância pertencem, repitamos, a dois gêneros diferentes: visando analiticamente ora obras poéticas, ora problemas de filosofia da literatura, duas perspectivas diferentes, mas convergentes, visando um mesmo estilo de pensamento que se exprimiria tanto na obra poética da autodenominada "geração de 45" quanto na versão local do "New Criticism" (que, acrescentemos mais de 50 anos depois, parece ter sobrevivido, entre nós, até hoje, sob as sucessivas roupagens dos diversos "estruturalismos", de teorias "semióticas", "desconstrucionismos" vários e alguns ecos distantes e inaudíveis da "Opera Aperta").


Na contracorrente da moda dominante, Sérgio Buarque opunha artesanato a obediência a regras formais


Entremos diretamente no assunto. Por detrás dos ensaios de Sérgio Buarque há uma interpretação da curva desenhada pela literatura brasileira na primeira metade do século 20. Reportando-se a Claude-Edmond Magny, retoma a idéia de ciclos literários que, como os econômicos, teriam seus momentos de fluxo, ampliação ou diástole, seguidos de momentos de refluxo, estreitamento e sístole. Acrescentando que, em nosso país, se os ciclos de fluxo podem ser longos, seus refluxos seriam os mais catastróficos, devolvendo-nos a nosso "latente parnasianismo" -tão "formalista" quão distante do parnasianismo francês.
Ora, é justamente com a geração de 45 que o refluxo parece mostrar-se em pura transparência: no retorno ao mero formalismo ou a uma concepção "mecânica" do ritmo, que seria defendida por Domingos Carvalho da Silva, um dos líderes dessa geração reunida no Clube de Poesia (sem conhecer os textos de Sérgio Buarque, nos meus 16 anos, em meados da década de 50, eu declarava dramaticamente, com a arrogância do adolescente que se iniciava em literatura e filosofia: "A geração pós-45, na verdade, é pré-22"). Notemos aqui que, na contracorrente da moda dominante, Sérgio Buarque opunha artesanato a obediência a regras formais do mesmo modo como opõe, nos textos sobre teoria, a idéia de crítica à idéia de técnica (ou de simples relojoaria).
É bom dizer que a crítica de Sérgio Buarque ao estilo do Clube de Poesia nada tem de doutrinário ou de agressivo. Reconhece exceções e sublinha o valor da obra de poetas como Décio Pignatari e Haroldo de Campos, que não haviam ainda empunhado a bandeira vanguardista do concretismo.
Nosso crítico é sensível à benéfica influência, neste último, do neoclassicismo de Stefan Georg (que se abeberara na fonte do parnasianismo/simbolismo francês). E parece ter razão, como podemos ver no estilo elevado e orientalizante do poema de Haroldo de Campos elogiado por Sérgio Buarque: "No mês propício as virgens babilônicas/ Tecem guirlandas em louvor de Ishtar./ Olha os seus rostos contornando o templo,/ Côdeas de luz na lápide do altar.// Tua flor, Senhora, de lilases e álcool,/ A dispensavas pelo boulevard./ Touros alados crescem no caminho:/ Tecei guirlandas para o mês de Ishtar" (2).
Mas o juízo crítico remete necessariamente a uma teoria do juízo: ou, como dissemos, a uma reflexão sobre o hiato que separa a crítica da mera técnica. Hiato ancorado na insopitável tendência de projetar no passado a forma atual da poesia, derivada da idéia da arte pela arte -esse "Ersatz" do absoluto de um Deus perdido para sempre. No fundo a idéia antiga de mais de um século, parnasiana e simbolista, hoje rediviva na idéia da poesia como uma linguagem -digamos- intransitiva, sem referência ou semântica: algo, enfim, como um "sentido puro", que se afasta infinitamente do mundo e de seu inevitável prosaísmo ou das sucessivas e empíricas comunidades de leitores que o acolhem e completam.
Anacronismos de que não escapam, às vezes, os melhores filósofos/historiadores: como o agudíssimo Foucault, que, em seu primeiro curso no Collège de France, chegou a aproximar a sofística grega da poesia de Mallarmé! (houve, na ocasião, na virada dos 60 para os 70, quem alinhasse, num único combate, Mao Tse-tung, Mallarmé e Lacan: o que me levou a plasmar um trocadilho à maneira do último: "Mao-l'Armée-Rouge"). Tal reflexão -em especial o esclarecimento das antinomias implícitas na revalorização do barroco e dos poetas metafísicos ingleses- não poderia deixar de levar à grave acusação de historicismo. Sérgio Buarque -afirmou um crítico- seria historicista pela nefasta influência de... Ivor Armstrong Richards! Richards, historicista? Impossível não vislumbrar, nessa acusação, o breve fulgor do sorriso incorpóreo e abstrato do Richards de Cheshire (sua cidade natal). Refiro-me aqui, é claro, à polêmica gentil (quase cerimoniosa) que opôs Sérgio Buarque a Euryalo Cannabrava (que, abandonando em má hora a filosofia dita "continental" -Bergson, fenomenologia e existencialismo-, aderia então ao positivismo lógico nessa década em que começava a se dissolver nos EUA, num processo iniciado na Europa entre as duas grandes guerras).
Trata-se de uma recusa do "historicismo" e do "sociologismo" que não morreu na década de 50 e que não deixou de ser voltada, de tempos em tempos, contra autores como Antonio Candido. Como se nesse caso, ou no de Sérgio Buarque, houvesse uma desqualificação do puramente literário. Como se não fosse o contrário: em ambos encontramos um procedimento que permite que as ciências sociais sejam guiadas e iluminadas pelo que poderíamos chamar, na falta de melhor expressão, de conhecimento literário do mundo. O que importa não é a questão do eventual "relativismo", que estaria implicado no recurso à diferença histórica ou social, mas o estatuto da linguagem ou a maneira de pensar suas diferentes formas.
No caso dessa polêmica, o que está em causa é o dogmático dualismo que faz da linguagem ou uma representação formal de um estado de coisas ou uma espécie de expressão essencialmente misteriosa, que nada tem a ver com o mundo. Com humor, Sérgio Buarque lembra que, para o positivista, o verso de Dante ("Amor que move o sol e as outras estrelas") é "pura" poesia e não se reporta ao mundo físico, tão melhor conhecido depois de Kepler. Mas para Dante Alighieri, melhor filósofo que nosso colega brasileiro, as coisas eram diferentes.
Seguindo a linha de raciocínio de Sérgio Buarque, que sublinha a injusta excomunhão da poesia didática -no limite, de toda poesia anterior ao século 19-, poderíamos perguntar pelo estatuto do "Poema" de Parmênides. Ou por que Platão se empenhou em distinguir a poesia da filosofia, "expulsando os poetas da cidade", sem esquecer a escolha platônica do diálogo (poesia dramática?) como forma de expressão filosófica.
A expulsão decretada por Platão jamais foi definitiva. Com efeito, no século 1º a.C., Lucrécio, nos versos de "De Natura Rerum", reunia o rigor da lógica e, mais ainda, da conceptualidade epicurista ao brilho da expressão literária, com a cumplicidade dos melhores poetas latinos de seu tempo, todos amigos. E, bem mais perto de nós, Wittgenstein dizia: "Para filosofar, devemos escrever "poetischerweise"".
Assim, para fazer boa história social ou boa crítica literária, é ou saber exprimir-se bem ou poder pensar bem (uma só e mesma coisa). Arte cada vez mais rara, de que carecemos tanto, e que multiplica o duro sentimento da perda (o interminável "trabalho do luto") que multiplica nossa saudade de Sérgio Buarque de Holanda perto do 102º aniversário de seu nascimento.

Notas
1. Sérgio Buarque de Holanda, "O Espírito e a Letra, Estudos de Crítica Literária", vols. 1 e 2, Antonio Arnoni Prado (org.), Cia. das Letras, 1996;
2.Cf. Haroldo de Campos, "Rito de Outono", in "Auto do Possesso", nos "Cadernos do Clube de Poesia" (1950), pág. 15. Comentado e elogiado por Sérgio Buarque em "O Espírito e a Letra", já citado, vol. 2, págs. 395-6.

Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C.".



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