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Ponto de Fuga
Outro olhar
O século 19 inventou lentes líricas que filtraram o visível (nada de negros escravos, de crueldade, de pobreza); por sorte, vieram viajantes estrangeiros e registraram o que viam
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Paira na cultura do Brasil,
desde os tempos da colônia, a incapacidade de
observação, o horror ao realismo. Fora poucas exceções, o
século 19 inventou lentes líricas que filtraram o visível. Óculos de sonhos. Tudo era imaginário, tudo lírica e confortavelmente "brasileiro". Selvagens
atléticos, índias sensuais, quase
sempre morrendo bonito no
fim das histórias. Nada de negros escravos, de crueldade, de
pobreza.
Por sorte, vieram viajantes
estrangeiros. Registraram o
que viam, aquilo que os locais
preferiam ignorar.
Sem eles, não haveria imagens da sociedade brasileira
nos tempos antigos.
Debret, francês, Rugendas,
alemão, foram mais do que
grandes artistas: criaram vivos
retratos do que percebiam.
Landseer, inglês, acompanhou uma expedição ao Brasil
em 1825-26; seu diário visual,
arrematado na Christie's de
Londres há alguns anos pelo
Instituto Moreira Salles, é um
tesouro.
Ver com cuidado as muitas
folhas expostas agora na casa
da Gávea, sede carioca daquela
instituição, é acompanhar o
percurso de Lisboa ao Rio, as
visitas a São Paulo (mirrado lugarejo), Salvador, Recife, Olinda, Vitória, Desterro e Santos.
Crônica
Landseer foi sensível à paisagem natural ou construída pelo
homem e aos tipos humanos: d.
Leopoldina cavalgando, vista
de costas, escarrapachada na
sela, enfiada num guarda-pó,
parecida com uma trouxa de
roupa; d. Pedro, garboso e pimpão, com o traseiro relevante
dos Braganças, enganchado numa eguinha crioula.
Há comerciantes, tropeiros,
marinheiros, mas há sobretudo
escravos: Landseer foi seduzido pela beleza e pelo vigor dos
negros. Traçou com linha máscula os corpos musculosos. Um
ou dois de seus croquis fazem
pensar em Portinari.
Novador
Na Pinacoteca do Estado
(SP), outro estrangeiro: Hercules Florence (1804-79). A mostra [até 21/3] revela obras inéditas, de formidável interesse.
Florence nasceu na França,
viveu e morreu em Campinas
(SP). Seu gênio inquieto o levou
a buscas incessantes. Chegou,
antes de todos, à fotografia.
Criou um modo de anotar o
canto dos pássaros; quebrou a
cabeça com processos originais
de reproduzir textos e desenhos, imaginou a tipografia silábica, um rol de coisas.
Desenhou, aquarelou, traçou
imagens únicas retratando cidades, fazendas, paisagens do
interior, derrubadas de matas.
Foi um supremo aquarelista,
que atinge o apogeu em estudos
de nuvens. Concebeu paisagens
para serem vistas com luz em
transparência. Graças a furinhos no azul da noite, brilham,
mágicas, a lua e as estrelas.
Teve ainda tempo de se casar
duas vezes. Pôs 20 filhos no
mundo.
Risco
Talvez não fosse exatamente
necessário expor os quadros a
óleo de Arnaldo Pedroso
d'Horta na mostra a ele dedicada pela Pinacoteca (SP). São
poucos, porém. Contam mesmo os grafismos numerosos e
esplêndidos, que reinventam
fortes harmonias a cada vez.
Vibrações
O pianista se precipitava, asfixiando os sons. A orquestra
abria, soberana, cordas azulíneas, iridescência dos metais.
Foi no último movimento que
ambos, o solista e as amplas sonoridades, se encontraram.
Dia 5 passado, na sala São
Paulo, o concerto de Schumann
e outras belas obras: o "Fauno",
de Debussy, o "Salmo 47", de
Florent Schmitt, tão raro, com
breve trecho cantado. Um luxo
trazer o soprano inglês Susan
Bullock por tão pouco. Mas que
sublime timbre.
A Osesp, sob direção de Yan
Pascal Tortelier, adquiriu uma
verdadeira personalidade, feita
de transparências, de nuanças
finas e inteligência.
jorgecoli@uol.com.br
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