São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Ponto de Fuga

Outro olhar


O século 19 inventou lentes líricas que filtraram o visível (nada de negros escravos, de crueldade, de pobreza); por sorte, vieram viajantes estrangeiros e registraram o que viam


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Paira na cultura do Brasil, desde os tempos da colônia, a incapacidade de observação, o horror ao realismo. Fora poucas exceções, o século 19 inventou lentes líricas que filtraram o visível. Óculos de sonhos. Tudo era imaginário, tudo lírica e confortavelmente "brasileiro". Selvagens atléticos, índias sensuais, quase sempre morrendo bonito no fim das histórias. Nada de negros escravos, de crueldade, de pobreza.
Por sorte, vieram viajantes estrangeiros. Registraram o que viam, aquilo que os locais preferiam ignorar. Sem eles, não haveria imagens da sociedade brasileira nos tempos antigos.
Debret, francês, Rugendas, alemão, foram mais do que grandes artistas: criaram vivos retratos do que percebiam. Landseer, inglês, acompanhou uma expedição ao Brasil em 1825-26; seu diário visual, arrematado na Christie's de Londres há alguns anos pelo Instituto Moreira Salles, é um tesouro.
Ver com cuidado as muitas folhas expostas agora na casa da Gávea, sede carioca daquela instituição, é acompanhar o percurso de Lisboa ao Rio, as visitas a São Paulo (mirrado lugarejo), Salvador, Recife, Olinda, Vitória, Desterro e Santos.

Crônica
Landseer foi sensível à paisagem natural ou construída pelo homem e aos tipos humanos: d. Leopoldina cavalgando, vista de costas, escarrapachada na sela, enfiada num guarda-pó, parecida com uma trouxa de roupa; d. Pedro, garboso e pimpão, com o traseiro relevante dos Braganças, enganchado numa eguinha crioula.
Há comerciantes, tropeiros, marinheiros, mas há sobretudo escravos: Landseer foi seduzido pela beleza e pelo vigor dos negros. Traçou com linha máscula os corpos musculosos. Um ou dois de seus croquis fazem pensar em Portinari.

Novador
Na Pinacoteca do Estado (SP), outro estrangeiro: Hercules Florence (1804-79). A mostra [até 21/3] revela obras inéditas, de formidável interesse. Florence nasceu na França, viveu e morreu em Campinas (SP). Seu gênio inquieto o levou a buscas incessantes. Chegou, antes de todos, à fotografia.
Criou um modo de anotar o canto dos pássaros; quebrou a cabeça com processos originais de reproduzir textos e desenhos, imaginou a tipografia silábica, um rol de coisas. Desenhou, aquarelou, traçou imagens únicas retratando cidades, fazendas, paisagens do interior, derrubadas de matas.
Foi um supremo aquarelista, que atinge o apogeu em estudos de nuvens. Concebeu paisagens para serem vistas com luz em transparência. Graças a furinhos no azul da noite, brilham, mágicas, a lua e as estrelas.
Teve ainda tempo de se casar duas vezes. Pôs 20 filhos no mundo.

Risco
Talvez não fosse exatamente necessário expor os quadros a óleo de Arnaldo Pedroso d'Horta na mostra a ele dedicada pela Pinacoteca (SP). São poucos, porém. Contam mesmo os grafismos numerosos e esplêndidos, que reinventam fortes harmonias a cada vez.

Vibrações
O pianista se precipitava, asfixiando os sons. A orquestra abria, soberana, cordas azulíneas, iridescência dos metais. Foi no último movimento que ambos, o solista e as amplas sonoridades, se encontraram. Dia 5 passado, na sala São Paulo, o concerto de Schumann e outras belas obras: o "Fauno", de Debussy, o "Salmo 47", de Florent Schmitt, tão raro, com breve trecho cantado. Um luxo trazer o soprano inglês Susan Bullock por tão pouco. Mas que sublime timbre.
A Osesp, sob direção de Yan Pascal Tortelier, adquiriu uma verdadeira personalidade, feita de transparências, de nuanças finas e inteligência.

jorgecoli@uol.com.br


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