São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Comédia dos erros

Previsto para sair na Inglaterra na quinta-feira, "Solar", novo romance de Ian McEwan, se aventura pelo humor para abordar o aquecimento global

WILLIAM SUTCLIFFE

Nada incomoda os britânicos mais que o sucesso, e poucos escritores, nos últimos anos, desfrutaram dele de maneira mais visível que Ian McEwan. Nascido em 1948, faz parte da geração que amadureceu no boom literário dos anos 80, em meio a um grupo então dominado por Julian Barnes, Martin Amis e Salman Rushdie.
McEwan foi o primeiro dos formandos do programa de redação criativa criado por Malcolm Bradbury na Universidade de East Anglia a encontrar algum sucesso, mas por muito tempo sua produção parecia esporádica, e ele vivia à sombra do sucesso de seus pares. Mas nos últimos dez anos uma sequência firme de romances legíveis, populares, aclamados pela crítica e muitas vezes filmados com competência o conduziu a uma posição de liderança quase incontestada entre os escritores britânicos, sobretudo em vendas.
"Reparação" vendeu mais de 2 milhões de cópias no Reino Unido e passou oito semanas no topo da lista de mais vendidos; já "Na Praia" vendeu 1 milhão de cópias e ficou 34 semanas entre os mais vendidos. A "New Yorker", em um perfil reverente, apontou que "é de conhecimento comum que McEwan superou seus pares e se tornou o escritor nacional da Inglaterra".
No final de 2009, surgiram informações de que ele estava para publicar "Solar" [ed. Jonathan Cape, 304 págs., 18,99, R$ 50] -que se tornou conhecido como "um romance sobre o aquecimento global" muito antes que qualquer pessoa tivesse a oportunidade de lê-lo.

Revolucionário
Basta começar a lê-lo para que duas características notáveis se tornem aparentes. Primeiramente, se trata de uma obra notável pela carpintaria e provavelmente constitui o melhor trabalho de McEwan nesse sentido, até o momento.
Em segundo lugar, o livro traz uma surpresa chocante: o fato de ser uma comédia. Isso representa uma mudança revolucionária de tom, para um escritor famoso pela seriedade. O protagonista é Michael Bear, um físico premiado com o Nobel e dotado de apetites gargantuescos, cujo quinto casamento está a ponto de fracassar, assim como sua carreira, aparentemente encaminhada para um futuro de irrelevância confortável e bem remunerado.
Mas o confronto com um colega infiel altera radicalmente o rumo de sua vida, tanto no melhor quanto no pior sentido.

Falhas de estilo?
O humor varia de percepções sombrias, mas engraçadas, sobre a distância que separa nossas boas intenções e nossas ações tacanhas a territórios cômicos inéditos para McEwan, como o da farsa escancarada, envolvendo piadas sobre um pênis preso no zíper e momentos de humor quase pastelão. Parecia improvável que McEwan se saísse bem nesse campo, mas não há dúvida de que o fez. No entanto alguns críticos rigorosos fizeram restrições ao que percebem como falhas em seu estilo literário.
A crítica mais convincente a McEwan veio de James Wood, no "London Review of Books". Embora seja em geral elogioso à obra do escritor, o acusa de excesso de artificialidade na maneira como retém e controla segredos narrativos.
A sugestão velada era a de que havia certa vulgaridade nas tramas tensas, tendo como consequência que os romances de McEwan se tornavam "fáceis demais de compreender". Boa parte da inquietação da crítica com relação a McEwan parece girar em torno de uma única questão: será que ele é literário o bastante? Ninguém tem como criticar sua prosa. Sentença a sentença, a ourivesaria precisa de suas descrições e a acuidade de sua psicologia são um consenso quanto à qualidade de sua escrita.
Mas ler seus livros parece ser divertido demais. No mundo das avaliações literárias sérias, a diversão -e a popularidade que ela tende a gerar- é um hóspede incômodo. Caso os romances de McEwan fossem um pouco mais longos, um pouco mais prolixos, um pouco mais chatos, ele estaria isento dessa acusação.
Mas, quando levamos em consideração a maneira como a carreira de McEwan transcorreu ao longo de 30 anos, é possível encontrar motivos mais sérios para crítica. No início, ele era uma espécie de "bad boy" literário, produzindo contos genuinamente chocantes. O enorme ganho de popularidade que acompanhou suas obras dos últimos 13 anos foi conquistado, para alguns, à custa de parte de sua ferocidade, de sua agressividade. Se no passado seus protagonistas eram os jovens, os marginalizados e os simplesmente esquisitos, hoje é mais provável que sejam homens eminentes.

Novos desafios
Ainda assim, avaliando uma vez mais seus 11 romances, se torna aparente que, se em alguns aspectos temos hoje um McEwan mais acomodado, em outros vemos sua ousada inventividade. O consenso de público e crítica foi forjado entre 1997 e 2005, com a sequência formada por "O Fardo do Amor", "Amsterdã", "Reparação" e "Sábado".
Todos esses romances brilham com uma perfeição tão cuidadosamente polida que alguns leitores os acusam de serem clínicos demais. Se o ligeiramente decepcionante "Sábado" despertou a impressão de que "Reparação" seria o ponto alto da carreira de McEwan, seus dois romances mais recentes, "Na Praia" e agora "Solar", surpreenderam uma vez mais, indicando que, mesmo depois dos 60, ele ainda está procurando acelerar.
Em uma idade na qual a maioria dos escritores começa a perder o pique, McEwan parece estar sempre em busca de novos desafios. Além disso, ele o fez no contexto de uma comédia, o que à primeira vista parece território pouco natural, quer para o escritor, quer para o assunto em questão.
Como aconteceu com Philip Roth nos anos 90, os indícios apontam para um período de florescimento tardio no trabalho de McEwan. Os defensores de uma reação adversa a seu trabalho precisarão guardar as facas e esperar o próximo livro.

A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci .
Os livros "Reparação", "Na Praia" e "Sábado" foram publicados no Brasil pela Cia. das Letras.

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