São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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+ sociedade

Ética e política em Franco Montoro

Celso Lafer
especial para a Folha

Ética e política não convergem com muita frequência na história do Brasil e do mundo. Esse enigma moral do processo histórico leva a indagar: pode a política ser conforme a ética? A essa pergunta o realismo político, tal como formulado, por exemplo, por Maquiavel, no capítulo 15 de "O Príncipe", responde pela negativa. A esta mesma e sempre recorrente pergunta André Franco Montoro deu uma clara resposta afirmativa, no percurso de sua fecunda e bem-sucedida vida pública. São precisamente as razões do seu sim à convergência entre ética e política o que me proponho discutir neste texto, que é uma homenagem à sua memória e uma celebração da importância de sua lição.
Começo contrastando os pontos de partida do realismo político com os de André Franco Montoro. O realismo político tem como foco os fatos do poder que são a "verità effetuale della cosa". Esses fatos são assinalados pelo predomínio do conflito. Esse é, assim, o pressuposto epistemológico do realismo -que é basicamente uma praxeologia.
No século 20, expressão radicalizada do realismo, encontra-se no pensamento de Carl Schmitt, para quem o antagonismo da relação amigo-inimigo é da essência da política. Por esse motivo, para um realista, mesmo temperado pela moderação da prudência, a condição permanente do universo político é o estado de necessidade que permite a derrogação das leis morais, numa situação-limite, em função das circunstâncias e da intensidade do conflito amigo-inimigo. Nessa concepção, a ação política é sempre uma ação estratégica, e a sua figura emblemática é, como aponta Michelangelo Bovero, a do estratego, na acepção etimológica da palavra: a do chefe militar apto a comandar suas tropas e competente tanto na aplicação da força quanto no engendrar ciladas por meio de estratagemas, para conquistar e manter o poder.
Não é por acaso, como lembra Norberto Bobbio, que não podem ser utilizadas, a fim de configurar o homem moral, as metáforas extraídas do reino animal para descrever o homem político associado a uma visão realista, como por exemplo o leão (a força), a raposa (a esperteza do ardil), o polvo (com os seus tentáculos que apalpam tudo o que está ao seu alcance), o camaleão (que muda de cor de acordo com o que o circunda). Não foram estes evidentemente os pontos de partida de André Franco Montoro, como ele explicitou na sua comunicação ao 5º Congresso Brasileiro de Filosofia, em setembro de 1995 (cf. "Franco Montoro", org. de Antonio Carlos Mendes Thames e Ricardo Montoro, São Paulo, Iqual, 2000, págs.181-192). Isso se evidencia no seu percurso como dirigente partidário, vereador na Câmara Municipal de São Paulo (1952-1953), deputado estadual (1955-1958) e presidente da Assembléia Legislativa (1955-1956); deputado federal (1959-1970; 1994-1999); ministro do Trabalho e da Previdência Social (1961-1962); senador da República (1971-1983) e governador do Estado de São Paulo (1983-1987). A meu ver, sua concepção política era de tipo comunicativo, na acepção de Jaspers e Habermas. Centrava-se em torno da afirmação de um núcleo básico de valores cuja raiz profunda era seu catolicismo. O catolicismo de André Franco Montoro, assim como o da maioria de seus companheiros que, no pós-Segunda Guerra, no Brasil, criaram o Partido Democrata Cristão, foi um catolicismo impregnado pela reflexão de Jacques Maritain. Maritain lançou as bases de uma nova e não sectária cristandade, menos "sacra" e mais "laica", porque aberta às necessidades e valores do mundo moderno. Com efeito, Maritain, ao renovar a leitura do tomismo, chamou a atenção para a distinção entre o indivíduo e a pessoa, realçou as origens religiosas do ideal democrático, sublinhou o fundamento ontológico dos direitos humanos e deu ênfase à importância do bem comum. Na sua vida pública, Franco Montoro foi consistentemente fiel a esse núcleo básico de valores inspirados por Maritain. É esse lastro teórico que dele fez um democrata convicto, adepto da participação, e um defensor dos direitos humanos que, não apenas na oposição, mas também no governo e no exercício do poder, tinha da política uma perspectiva "ex parte populi" e não "ex parte principis". Essa foi assim durante o regime militar e no processo de redemocratização do Brasil a linha diretiva de sua atuação no MDB e depois no PMDB. A isso cabe adicionar um foco permanente no tema da justiça redistributiva, fundamentada na doutrina social da Igreja, foco ao qual não faltou o toque dado pela reflexão e pela ação do padre L.J. Lebret, como realçaram em artigo recente Eduardo Muylaert e Paulo Sérgio Pinheiro ("Franco Montoro - Democrata e Estadista", "Novos Estudos", Cebrap, nº 56, março/2000, págs. 3-8). Esses princípios-guia de uma ética de solidariedade marcaram a sua passagem pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (salário-família), pelo Legislativo, pelo governo do Estado de São Paulo e são a nota identificadora da contribuição que deu ao PSDB.

O tecelão e o estratego
Michelangelo Bovero contrapõe dicotomicamente, ao estilo de Bobbio, o tecelão ao estratego na sua análise da relação entre ética e política. Nessa linha, creio que a figura emblemática que se ajusta ao estilo e à maneira de pensar e agir de André Franco Montoro é de fato a do tecelão. Para ele, a política era uma ordem de composição de conflitos, voltada para manter e desenvolver a integridade do tecido social -um tecido que requer fios de diversas procedências importantes para a tessitura de uma mescla compatível com o bem comum da realidade brasileira. Daí o seu não-sectarismo, a sua abertura à cooperação e ao diálogo, a sua capacidade de agregar talentos. Foram tais características de sua personalidade que fizeram do seu governo em São Paulo uma grande escola de formação de quadros e lideranças e um exemplo de cidadania e de qualidade de gestão administrativa. Daí também a persistência de sua ação política de tipo comunicativa -a persistência de um artesão convicto da importância do seu ofício-, o que se traduziu num sem-número de conferências, artigos, discursos, intervenções públicas e no empenho vital com o qual se dedicava à divulgação de suas teses prediletas. Entre elas: a da descentralização, a da participação, a da geração de empregos, a do parlamentarismo, a das hidrovias, a da integração da América Latina ou a da injustiça dos altos juros da dívida externa, provocada pela mudança das circunstâncias da crise do petróleo. Nesse sentido André Franco Montoro era na vida pública também um professor. Por isso cabe discutir as suas características de professor de direito, que, associadas ao seu catolicismo, dão no meu entender uma outra chave para a convergência entre ética e política, que assinala o seu percurso.

A postura do professor
André Franco Montoro estudou e se formou na Faculdade de Direito da USP, em 1938, tendo, ao mesmo tempo em consonância com a sua formação católica, realizado seus estudos de filosofia e pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento. Foi também procurador do Estado de São Paulo. Na sua vida, a nota mais forte do direito foi a de professor de introdução à ciência do direito, matéria a que se dedicou com empenho e gosto durante toda a sua longa vida de professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Foi um professor atuante ao qual em particular a PUC de São Paulo muito deve, pois enriqueceu o âmbito de sua disciplina com uma visão larga, aberta tanto à filosofia do direito quanto à sociologia jurídica, na qual a preeminência do valor justiça permeou o seu magistério, do qual nunca se dissociou, apesar da intensidade com que ao mesmo tempo viveu para a política. O seu livro de "Introdução", cuja primeira edição data de 1968 (e cuja 20ª edição, refundida, é de 1991) foi significativamente dedicada aos seu alunos "com a esperança de que bem conhecendo o Direito, melhor possam servir à Justiça".
A experiência de estar no mundo não apenas como homem público, mas também como professor de direito, atento ao valor da Justiça, foi um dado importante para a percepção da realidade e para o juízo político de André Franco Montoro. Com efeito, o jurista que ele era, habituado ao "dever ser" das normas e impregnado de um catolicismo permeado pelo humanismo de Maritain e pela doutrina social da Igreja, afirmou, coerente e naturalmente, uma ética dos princípios -a dos direitos. Para ele, a legitimação da mão visível da autoridade pública encontrava-se na sua capacidade de tutelar direitos dos cidadãos, tendo em vista o acesso e a geração de oportunidades que permitam a cada pessoa afirmar a sua identidade pela livre escolha de fins. Em síntese, Montoro não era um utilitarista, mas um republicano. Para ele os direitos eram uma questão em si, não passíveis de instrumentação em termos de utilidade, cuja derrogação poderia ser legitimada por meio da eficiência dos resultados no atendimento dos interesses agregados da sociedade. É por esse motivo que a sua experiência de professor-jurista se somou à do homem público, na afirmação da possibilidade de convergência entre a ética e a política, que é a nota identificadora do seu percurso.

Ser político
André Franco Montoro foi um homem de princípios e de boa vontade, que era ao mesmo tempo um ser político. Por isso, sabia que o mundo da política tem desvãos e descontinuidades e que a chave da relação entre os princípios e a realidade não tem a simplicidade lógica do silogismo. Era dotado de intuição e vontade política, vale dizer, da capacidade de perceber o que podia e o que não podia ser feito numa dada conjuntura e a de consequentemente saber adequar a sua ação ao sentido de direção inspirado pelos seus princípios. Por esse motivo foi um homem público não só virtuoso, mas bem-sucedido. Um exemplo importante de sua intuição e vontade política foi a decisão que tomou, como governador de São Paulo, eleito pelo PMDB, de realizar em janeiro de 1984 o comício da Praça da Sé em prol das eleições diretas para a Presidência da República. Levou adiante essa decisão num momento em que a maioria dos seus colaboradores e correligionários considerava o comício politicamente inviável, como relata o presidente Fernando Henrique Cardoso em "O Presidente segundo o Sociólogo" (relato ao qual acrescento o meu testemunho pessoal). Como se sabe, esse comício foi o primeiro de muitos que, para valer-me da formulação teórica de Hannah Arendt, geraram poder pela ação conjunta da participação de muitos, desencadeada pela iniciativa de Montoro. Foi essa geração de poder que contribuiu para mudar a correlação de forças e trazer a bom termo o fecho pacífico de transição do regime militar para a democracia, com a eleição, ainda que indireta, de Tancredo Neves para a Presidência da República. Em síntese: Montoro era um homem de boa-fé, mas não era bisonho. Como católico, deveria estar ciente da advertência evangélica sobre a missão dos apóstolos: "Eis que eu vos envio como ovelhas entre os lobos. Por isso sede prudentes como as serpentes e sem malícia como as pombas" (Mateus, 10,16).

Ponto estratégico
Esta referência sobre prudência sem malícia ocorre-me em razão de uma conversa com ele sobre o comício da Praça da Sé, muitos anos depois de sua realização. Disse-me que, na ponderação dos riscos e das possibilidades de sucesso do comício, levou em conta o local, entendendo que a Praça da Sé, por ser o ponto de partida de várias linhas de transporte coletivo e em função do horário do comício -o fim da tarde- era pela natural aglomeração de pessoas o local favorável para acender, num dia de feriado, a faísca da participação popular que sua intuição política aconselhava, à luz do sentido de direção dos seus princípios. Para tornar ainda mais clara a minha análise sobre o ser político de Montoro, creio que vale a pena recorrer ao que diz Isaiah Berlin sobre a relação entre a teoria e a prática, a propósito da especificidade do juízo político no trato da realidade. Observa Isaiah Berlin que o conhecimento de botânica ajuda, mas não faz um bom jardineiro. Montoro como político foi um bom jardineiro, inspirado na sua jardinagem pela sólida botânica dos princípios que guiavam a sua ação de tipo comunicativo. Isso se vê pela maneira com a qual lidou, para realçar o foco deste texto, com os três itens principais da agenda de relação entre ética e política: a corrupção, a violência e o segredo associado ou não à mentira. No que tange à corrupção, a posição de Montoro era clara, pois os ilícitos penais que ela pressupõe -peculato, concussão etc.- significam sobrepor os interesses individuais ao interesse coletivo, ou seja, valer-se de função pública para satisfazer interesses pessoais ilegítimos em detrimento do bem comum, que, para ele, como seguidor de Maritain, era um valor indiscutível. No que diz respeito à violência, como democrata convicto do poder de persuasão no espaço público de palavra e da ação, ele foi impecável na teoria e na prática. Como governador de São Paulo, num momento difícil e de lutas sociais crescentes, a polícia seguindo a sua orientação atuou escrupulosamente dentro da lei, atenta aos direitos, pois Montoro, no exercício do poder, teve, como mencionei, uma perspectiva "ex parte-populi" e não "ex parte principis". Nos momentos iniciais de seu governo isso gerou incompreensão e foi visto como fraqueza (refiro-me ao episódio da derrubada das grades do Palácio dos Bandeirantes). Essa percepção ele soube reverter por meio da firme consistência com a qual, por meio de uma ação de tipo comunicativo, afirmou os seus princípios sobre o exercício democrático do poder.

Elevação e convergência
Quanto ao segredo e à mentira, estes não eram uma característica da personalidade de Montoro, tanto que articulação dos bastidores não era o seu forte. Não tinha vocação de "raposa", pois o que apreciava, mesmo nos contatos mais limitados, era a transparência na exposição de suas teses e respectivos princípios, pois a sua ação política de tecelão, e não de estratego, era de tipo comunicativo. Tinha a convicção inspirada por Teillard de Chardin, que citava com frequência, que é pela elevação que se alcança a convergência -a convergência necessária para a tessitura de uma mais justa e apropriada ordem social e política para o Brasil.
Permito-me concluir com uma nota pessoal. Os meus contatos com Montoro se tornaram frequentes e foram se intensificando a partir do início dos anos 70. Tiveram como base, de um lado, o alto apreço do jovem professor que eu era por um "senior" que se dedicava aos mesmos temas do ensino e da reflexão jurídica e, de outro, pela concordância e admiração pela sua posição política, no âmbito da resistência democrática ao regime arbitrário de então. Sem ter sido um "íntimo", fui desde aquela época um "próximo" que acompanhou com amizade e solidariedade o seu percurso de homem público, no Senado, no governo de São Paulo, no Ilam (Instituto Latino-Americano) e no Congresso Nacional.
Os direitos humanos, a integração latino-americana, a reforma política, a dívida externa foram itens constantes do nosso diálogo, além da discussão da conjuntura política e dos processos eleitorais. Por isso, espero que o perfil que procurei traçar tenha não apenas a objetividade de um analista, mas o calor humano de alguém que o apreciou não apenas "de fora", como um eminente ator político, mas "de dentro", como seu amigo e discreto parceiro de lutas.
Montesquieu, no "Espírito das Leis", ao examinar o papel da educação no governo republicano, fala da virtude política como sendo o amor às leis e à pátria, o que exige a preferência contínua pelo interesse público. Não faltaria com a verdade ao afirmar que a lição de Montoro na vida pública do Brasil foi a da constante afirmação da virtude política, na acepção de Montesquieu.


Celso Lafer é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores (1992) e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (1999), além de embaixador do Brasil junto à OMC (Organização Mundial do Comércio) e à ONU em Genebra (1995-1998) É autor, entre outros, de "Ensaios Liberais" (Ed. Siciliano). O texto acima faz parte de um livro em homenagem a André Franco Montoro a ser publicado por iniciativa do Instituto Jacques Maritain do Brasil.


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