|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
Ética e política em Franco Montoro
Celso Lafer
especial para a Folha
Ética e política não convergem com
muita frequência na história do
Brasil e do mundo. Esse enigma
moral do processo histórico leva a
indagar: pode a política ser conforme a
ética? A essa pergunta o realismo político, tal como formulado, por exemplo,
por Maquiavel, no capítulo 15 de "O
Príncipe", responde pela negativa. A esta
mesma e sempre recorrente pergunta
André Franco Montoro deu uma clara
resposta afirmativa, no percurso de sua
fecunda e bem-sucedida vida pública.
São precisamente as razões do seu sim à
convergência entre ética e política o que
me proponho discutir neste texto, que é
uma homenagem à sua memória e uma
celebração da importância de sua lição.
Começo contrastando os pontos de
partida do realismo político com os de
André Franco Montoro. O realismo político tem como foco os fatos do poder que
são a "verità effetuale della cosa". Esses
fatos são assinalados pelo predomínio
do conflito. Esse é, assim, o pressuposto
epistemológico do realismo -que é basicamente uma praxeologia.
No século 20, expressão radicalizada
do realismo, encontra-se no pensamento
de Carl Schmitt, para quem o antagonismo da relação amigo-inimigo é da essência da política. Por esse motivo, para um
realista, mesmo temperado pela moderação da prudência, a condição permanente do universo político é o estado de
necessidade que permite a derrogação
das leis morais, numa situação-limite,
em função das circunstâncias e da intensidade do conflito amigo-inimigo. Nessa
concepção, a ação política é sempre uma
ação estratégica, e a sua figura emblemática é, como aponta Michelangelo Bovero, a do estratego, na acepção etimológica da palavra: a do chefe militar apto a
comandar suas tropas e competente tanto na aplicação da força quanto no engendrar ciladas por meio de estratagemas, para conquistar e manter o poder.
Não é por acaso, como lembra Norberto Bobbio, que não podem ser utilizadas,
a fim de configurar o homem moral, as
metáforas extraídas do reino animal para descrever o homem político associado
a uma visão realista, como por exemplo
o leão (a força), a raposa (a esperteza do
ardil), o polvo (com os seus tentáculos
que apalpam tudo o que está ao seu alcance), o camaleão (que muda de cor de
acordo com o que o circunda).
Não foram estes evidentemente os
pontos de partida de André Franco
Montoro, como ele explicitou na sua comunicação ao 5º Congresso Brasileiro de
Filosofia, em setembro de 1995 (cf.
"Franco Montoro", org. de Antonio Carlos Mendes Thames e Ricardo Montoro,
São Paulo, Iqual, 2000, págs.181-192). Isso se evidencia no seu percurso como dirigente partidário, vereador na Câmara
Municipal de São Paulo (1952-1953), deputado estadual (1955-1958) e presidente
da Assembléia Legislativa (1955-1956);
deputado federal (1959-1970; 1994-1999);
ministro do Trabalho e da Previdência
Social (1961-1962); senador da República
(1971-1983) e governador do Estado de
São Paulo (1983-1987). A meu ver, sua
concepção política era de tipo comunicativo, na acepção de Jaspers e Habermas.
Centrava-se em torno da afirmação de
um núcleo básico de valores cuja raiz
profunda era seu catolicismo.
O catolicismo de André Franco Montoro, assim como o da maioria de seus
companheiros que, no pós-Segunda
Guerra, no Brasil, criaram o Partido Democrata Cristão, foi um catolicismo impregnado pela reflexão de Jacques Maritain. Maritain lançou as bases de uma
nova e não sectária cristandade, menos
"sacra" e mais "laica", porque aberta às
necessidades e valores do mundo moderno. Com efeito, Maritain, ao renovar
a leitura do tomismo, chamou a atenção
para a distinção entre o indivíduo e a
pessoa, realçou as origens religiosas do
ideal democrático, sublinhou o fundamento ontológico dos direitos humanos
e deu ênfase à importância do bem comum.
Na sua vida pública, Franco Montoro
foi consistentemente fiel a esse núcleo
básico de valores inspirados por Maritain. É esse lastro teórico que dele fez um
democrata convicto, adepto da participação, e um defensor dos direitos humanos que, não apenas na oposição, mas
também no governo e no exercício do
poder, tinha da política uma perspectiva
"ex parte populi" e não "ex parte principis". Essa foi assim durante o regime militar e no processo de redemocratização
do Brasil a linha diretiva de sua atuação
no MDB e depois no PMDB.
A isso cabe adicionar um foco permanente no tema da justiça redistributiva,
fundamentada na doutrina social da
Igreja, foco ao qual não faltou o toque
dado pela reflexão e pela ação do padre
L.J. Lebret, como realçaram em artigo recente Eduardo Muylaert e Paulo Sérgio
Pinheiro ("Franco Montoro - Democrata
e Estadista", "Novos Estudos", Cebrap,
nº 56, março/2000, págs. 3-8). Esses princípios-guia de uma ética de solidariedade marcaram a sua passagem pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social
(salário-família), pelo Legislativo, pelo
governo do Estado de São Paulo e são a
nota identificadora da contribuição que
deu ao PSDB.
O tecelão e o estratego
Michelangelo Bovero contrapõe dicotomicamente, ao estilo de Bobbio, o tecelão ao estratego na sua análise da relação entre ética
e política. Nessa linha, creio que a figura
emblemática que se ajusta ao estilo e à
maneira de pensar e agir de André Franco Montoro é de fato a do tecelão. Para
ele, a política era uma ordem de composição de conflitos, voltada para manter e
desenvolver a integridade do tecido social -um tecido que requer fios de diversas procedências importantes para a
tessitura de uma mescla compatível com
o bem comum da realidade brasileira.
Daí o seu não-sectarismo, a sua abertura à cooperação e ao diálogo, a sua capacidade de agregar talentos. Foram tais
características de sua personalidade que
fizeram do seu governo em São Paulo
uma grande escola de formação de quadros e lideranças e um exemplo de cidadania e de qualidade de gestão administrativa. Daí também a persistência de sua
ação política de tipo comunicativa -a
persistência de um artesão convicto da
importância do seu ofício-, o que se
traduziu num sem-número de conferências, artigos, discursos, intervenções públicas e no empenho vital com o qual se
dedicava à divulgação de suas teses prediletas. Entre elas: a da descentralização,
a da participação, a da geração de empregos, a do parlamentarismo, a das hidrovias, a da integração da América Latina
ou a da injustiça dos altos juros da dívida
externa, provocada pela mudança das
circunstâncias da crise do petróleo.
Nesse sentido André Franco Montoro
era na vida pública também um professor. Por isso cabe discutir as suas características de professor de direito, que, associadas ao seu catolicismo, dão no meu
entender uma outra chave para a convergência entre ética e política, que assinala
o seu percurso.
A postura do professor
André
Franco Montoro estudou e se formou na
Faculdade de Direito da USP, em 1938,
tendo, ao mesmo tempo em consonância com a sua formação católica, realizado seus estudos de filosofia e pedagogia
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento. Foi também procurador do Estado de São Paulo. Na sua vida,
a nota mais forte do direito foi a de professor de introdução à ciência do direito,
matéria a que se dedicou com empenho
e gosto durante toda a sua longa vida de
professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Foi um professor atuante ao qual em
particular a PUC de São Paulo muito deve, pois enriqueceu o âmbito de sua disciplina com uma visão larga, aberta tanto
à filosofia do direito quanto à sociologia
jurídica, na qual a preeminência do valor
justiça permeou o seu magistério, do
qual nunca se dissociou, apesar da intensidade com que ao mesmo tempo viveu
para a política. O seu livro de "Introdução", cuja primeira edição data de 1968 (e
cuja 20ª edição, refundida, é de 1991) foi
significativamente dedicada aos seu alunos "com a esperança de que bem conhecendo o Direito, melhor possam servir à Justiça".
A experiência de estar no mundo não
apenas como homem público, mas também como professor de direito, atento ao
valor da Justiça, foi um dado importante
para a percepção da realidade e para o
juízo político de André Franco Montoro.
Com efeito, o jurista que ele era, habituado ao "dever ser" das normas e impregnado de um catolicismo permeado pelo
humanismo de Maritain e pela doutrina
social da Igreja, afirmou, coerente e naturalmente, uma ética dos princípios -a
dos direitos. Para ele, a legitimação da
mão visível da autoridade pública encontrava-se na sua capacidade de tutelar
direitos dos cidadãos, tendo em vista o
acesso e a geração de oportunidades que
permitam a cada pessoa afirmar a sua
identidade pela livre escolha de fins.
Em síntese, Montoro não era um utilitarista, mas um republicano. Para ele os
direitos eram uma questão em si, não
passíveis de instrumentação em termos
de utilidade, cuja derrogação poderia ser
legitimada por meio da eficiência dos resultados no atendimento dos interesses
agregados da sociedade. É por esse motivo que a sua experiência de professor-jurista se somou à do homem público, na
afirmação da possibilidade de convergência entre a ética e a política, que é a
nota identificadora do seu percurso.
Ser político
André Franco Montoro
foi um homem de princípios e de boa
vontade, que era ao mesmo tempo um
ser político. Por isso, sabia que o mundo
da política tem desvãos e descontinuidades e que a chave da relação entre os
princípios e a realidade não tem a simplicidade lógica do silogismo. Era dotado
de intuição e vontade política, vale dizer,
da capacidade de perceber o que podia e
o que não podia ser feito numa dada
conjuntura e a de consequentemente saber adequar a sua ação ao sentido de direção inspirado pelos seus princípios.
Por esse motivo foi um homem público
não só virtuoso, mas bem-sucedido.
Um exemplo importante de sua intuição e vontade política foi a decisão que
tomou, como governador de São Paulo,
eleito pelo PMDB, de realizar em janeiro
de 1984 o comício da Praça da Sé em prol
das eleições diretas para a Presidência da
República. Levou adiante essa decisão
num momento em que a maioria dos
seus colaboradores e correligionários
considerava o comício politicamente inviável, como relata o presidente Fernando Henrique Cardoso em "O Presidente
segundo o Sociólogo" (relato ao qual
acrescento o meu testemunho pessoal).
Como se sabe, esse comício foi o primeiro de muitos que, para valer-me da
formulação teórica de Hannah Arendt,
geraram poder pela ação conjunta da
participação de muitos, desencadeada
pela iniciativa de Montoro. Foi essa geração de poder que contribuiu para mudar
a correlação de forças e trazer a bom termo o fecho pacífico de transição do regime militar para a democracia, com a eleição, ainda que indireta, de Tancredo Neves para a Presidência da República.
Em síntese: Montoro era um homem
de boa-fé, mas não era bisonho. Como
católico, deveria estar ciente da advertência evangélica sobre a missão dos
apóstolos: "Eis que eu vos envio como
ovelhas entre os lobos. Por isso sede prudentes como as serpentes e sem malícia
como as pombas" (Mateus, 10,16).
Ponto estratégico
Esta referência
sobre prudência sem malícia ocorre-me
em razão de uma conversa com ele sobre
o comício da Praça da Sé, muitos anos
depois de sua realização. Disse-me que,
na ponderação dos riscos e das possibilidades de sucesso do comício, levou em
conta o local, entendendo que a Praça da
Sé, por ser o ponto de partida de várias linhas de transporte coletivo e em função
do horário do comício -o fim da tarde- era pela natural aglomeração de
pessoas o local favorável para acender,
num dia de feriado, a faísca da participação popular que sua intuição política
aconselhava, à luz do sentido de direção
dos seus princípios.
Para tornar ainda mais clara a minha
análise sobre o ser político de Montoro,
creio que vale a pena recorrer ao que diz
Isaiah Berlin sobre a relação entre a teoria e a prática, a propósito da especificidade do juízo político no trato da realidade. Observa Isaiah Berlin que o conhecimento de botânica ajuda, mas não faz
um bom jardineiro. Montoro como político foi um bom jardineiro, inspirado na
sua jardinagem pela sólida botânica dos
princípios que guiavam a sua ação de tipo comunicativo. Isso se vê pela maneira
com a qual lidou, para realçar o foco deste texto, com os três itens principais da
agenda de relação entre ética e política: a
corrupção, a violência e o segredo associado ou não à mentira.
No que tange à corrupção, a posição de
Montoro era clara, pois os ilícitos penais
que ela pressupõe -peculato, concussão etc.- significam sobrepor os interesses individuais ao interesse coletivo,
ou seja, valer-se de função pública para
satisfazer interesses pessoais ilegítimos
em detrimento do bem comum, que, para ele, como seguidor de Maritain, era
um valor indiscutível.
No que diz respeito à violência, como
democrata convicto do poder de persuasão no espaço público de palavra e da
ação, ele foi impecável na teoria e na prática. Como governador de São Paulo,
num momento difícil e de lutas sociais
crescentes, a polícia seguindo a sua
orientação atuou escrupulosamente
dentro da lei, atenta aos direitos, pois
Montoro, no exercício do poder, teve,
como mencionei, uma perspectiva "ex
parte-populi" e não "ex parte principis".
Nos momentos iniciais de seu governo
isso gerou incompreensão e foi visto como fraqueza (refiro-me ao episódio da
derrubada das grades do Palácio dos
Bandeirantes). Essa percepção ele soube
reverter por meio da firme consistência
com a qual, por meio de uma ação de tipo comunicativo, afirmou os seus princípios sobre o exercício democrático do
poder.
Elevação e convergência
Quanto ao
segredo e à mentira, estes não eram uma
característica da personalidade de Montoro, tanto que articulação dos bastidores não era o seu forte. Não tinha vocação
de "raposa", pois o que apreciava, mesmo nos contatos mais limitados, era a
transparência na exposição de suas teses
e respectivos princípios, pois a sua ação
política de tecelão, e não de estratego, era
de tipo comunicativo. Tinha a convicção
inspirada por Teillard de Chardin, que
citava com frequência, que é pela elevação que se alcança a convergência -a
convergência necessária para a tessitura
de uma mais justa e apropriada ordem
social e política para o Brasil.
Permito-me concluir com uma nota
pessoal. Os meus contatos com Montoro
se tornaram frequentes e foram se intensificando a partir do início dos anos 70.
Tiveram como base, de um lado, o alto
apreço do jovem professor que eu era
por um "senior" que se dedicava aos
mesmos temas do ensino e da reflexão
jurídica e, de outro, pela concordância e
admiração pela sua posição política, no
âmbito da resistência democrática ao regime arbitrário de então. Sem ter sido
um "íntimo", fui desde aquela época um
"próximo" que acompanhou com amizade e solidariedade o seu percurso de
homem público, no Senado, no governo
de São Paulo, no Ilam (Instituto Latino-Americano) e no Congresso Nacional.
Os direitos humanos, a integração latino-americana, a reforma política, a dívida externa foram itens constantes do
nosso diálogo, além da discussão da conjuntura política e dos processos eleitorais. Por isso, espero que o perfil que procurei traçar tenha não apenas a objetividade de um analista, mas o calor humano de alguém que o apreciou não apenas
"de fora", como um eminente ator político, mas "de dentro", como seu amigo e
discreto parceiro de lutas.
Montesquieu, no "Espírito das Leis",
ao examinar o papel da educação no governo republicano, fala da virtude política como sendo o amor às leis e à pátria, o
que exige a preferência contínua pelo interesse público. Não faltaria com a verdade ao afirmar que a lição de Montoro
na vida pública do Brasil foi a da constante afirmação da virtude política, na
acepção de Montesquieu.
Celso Lafer é professor titular da Faculdade de
Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores (1992) e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (1999), além de embaixador do Brasil junto
à OMC (Organização Mundial do Comércio) e à
ONU em Genebra (1995-1998) É autor, entre outros, de "Ensaios Liberais" (Ed. Siciliano). O texto
acima faz parte de um livro em homenagem a André Franco Montoro a ser publicado por iniciativa
do Instituto Jacques Maritain do Brasil.
Texto Anterior: + brasil 501 d.C: Ciclo traz autores da seção Próximo Texto: + livros - Arthur Nestrovski: A ambígua visão das coisas Índice
|