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Horizonte de chão e paredes
Na linhagem dos marginalizados da ficção urbana brasileira, "Contos de Pedro" constrói um universo sem escolhas
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Arriscar um perfil da nova
prosa brasileira é trabalho
de especialista que exige distância. A falta de perspectiva
nos deforma o olhar, mas sem dúvida já há um bom número de autores
significativos marcando território,
em linhas diversificadas, com obras
consistentes.
E territórios fortes: entre nomes
como Bernardo Carvalho e Milton
Hatoum, dos já legitimados pelas
instâncias críticas, ou André Sant'Anna e Marcelo Mirisola, abrindo
caminho nelas, há toda uma pletora
de autores tentando dizer quem são
e para que servem -se é que na arte
essa pergunta faz sentido.
E, embora há muito tempo não se
entenda mais literatura como "reflexo da sociedade", o fato é que ela
acaba por ser um mapa singular do
espaço em que se move. A palavra
que se escreve leva o mundo nas costas, mesmo à revelia.
Vai essa introdução para falar de
um autor que faz do território -no
sentido espacial do termo, de chão
mesmo, por mais abstrato que pareça- o melhor de sua literatura.
Rubens Figueiredo, em seu "Contos de Pedro", nos conta nove histórias que delimitam, ao ritmo de um
estilo pessoal que se constrói justamente na impessoalidade e na ausência deliberada de retórica, um
transbordante (e asfixiante) espaço,
marcado sempre por chão e por paredes -e por "pedros" angustiantemente estrangeiros.
Um deles se pergunta "se não vivia
encolhido demais, apegado demais
ao pouco, ao rasteiro que era o seu".
O mundo que esse texto carrega nas
costas, entretanto, nos é familiar: em
todos os contos, estamos perfeitamente em casa; um Brasil inteiro estrangeiro se escancara aos olhos de
quem sabe ler.
Além da autonomia das histórias
isoladas, revela-se nítido um olhar
de conjunto que procura transcender a fábula ou a anedota implícita
na idéia de conto, a sua "corrida
contra o tempo", como o definia
Cortázar. Em "Contos de Pedro"
perpassa um certo sopro romanesco, olhando antes o conjunto que o
instante decisivo, marca do gênero.
A própria escolha do nome único
dos personagens já é índice dessa
busca do todo e da inter-relação entre as partes, e pensar no seu sentido
simbólico será inevitável.
A linguagem do livro tem o ritmo
compassado de uma respiração; as
frases curtas, medidas como que por
acaso, avançando lentas, quase nunca saem de seu trilho mecânico, mas
atento, e por elas vamos flagrando
prosaicamente, sem nenhuma altissonância, o desespero de um mundo
sem escolhas.
Filhos de pobres-diabos
O narrador, indiferente -ou no
máximo permitindo-se uma curiosidade distante-, desdobra os seus
"pedros", em certa medida filhos
dos clássicos "pobres-diabos" que
fizeram boa parte da literatura urbana brasileira, como quem apenas
conta casos, quem sabe curiosos,
mas despersonalizando-os ao osso,
numa autópsia dos sentidos.
Em "O Dente de Ouro", um Pedro
porteiro de prédio fareja a cada instante o que fazer na estupidez de seu
trabalho, atrás dos sinais de um
mundo que não lhe pertence e onde
ele só cabe sendo nada: "Um reflexo
na porta de vidro, uma buzina na
rua, as antenas de uma barata na
fenda de um ralo: o mundo era encenação pura. Cada fato pronunciava
uma senha destinada a abrir a porta
para um outro fato".
Destruído pelos iguais a ele, volta
ao seu lugar de origem, e descobre-se que esse Pedro não é mais ninguém e vive (mas vive, concretamente) em lugar nenhum.
No realismo peculiar de Figueiredo, os fatos, detalhados quase no seu
limite, têm apenas um mínimo de
moldura ou contexto, nunca para
explicar, justificar ou psicologizar,
mas apenas para reforçar a coisa em
si, no seu estado quase bruto, não
fosse o narrador alguém que mantém ainda um tênue laço de espanto
com o mundo que vê. O efeito dá à
realidade um toque de fantasmagoria: estamos em lugar nenhum, e é
apenas a cabeça do leitor que complementa os fios daquele cenário,
afinal o nosso chão de todos os dias.
Em outro momento, talvez o mais
poderoso do livro, "Uma Questão de
Lógica", o cálculo dos espaços e das
relações familiares, também todos
destituídos de uma moldura ampla
que dê àquela favela (uma palavra
que o autor jamais usa) a tranqüilidade de um olhar social organizador
e suas subseqüentes explicações redutoras, vai criando a dimensão terrível do que é contado -aqui, pelo
próprio Pedro da vez.
Outro Pedro, com um saco de lixo
na mão, vivendo em meio ao lixo,
pensa antes no cão do que em si
mesmo, no momento em que se vê
-como se não fosse ele próprio-
alvo da mira de uma arma.
Nos raros momentos em que o
narrador abandona o mundo concreto das coisas, o texto perde força,
como em "A Última Palavra" -com
a linguagem fora de seu habitat, a caricatura de um escritor acaba por
não se realizar nem como sátira, indecisa na insegurança de seu meio-tom. Mas é a exceção. No forte conjunto, o narrador, "místico das coisas mais rasteiras", como seus "pedros", mantém os olhos sempre à altura do que vê, para dali extrair, a
pau e pedra e dois ou três sentimentos brutos, a transcendência possível
de um chão absurdo.
Cristovão Tezza é escritor, autor, entre outros, dos romances "O Fotógrafo" e "Breve
Espaço entre Cor e Sombra", e do ensaio
"Entre a Prosa e a Poesia - Bakhtin e o Formalismo Russo" (publicados pela Rocco).
Contos de Pedro
216 págs., R$ 36
de Rubens Figueiredo. Cia. das Letras (r.
Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3707-3500).
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