São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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Ponto de fuga

O retrato de Dorian Gray

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

É o verdadeiro conhecimento da vida que pode oferecer à arte uma completa independência da vida, uma independência que é necessária porque a pintura que nos toca nunca nos lembra meramente a vida, mas precisa adquirir vida ela própria..." Lucian Freud, que escreveu estas linhas, é muitas vezes citado como o melhor pintor realista vivo. A qualificação está errada. Ele é o melhor pintor vivo e ponto. É possível discutir, afirmando que existem artistas tão bons quanto ele. Artistas, talvez. Jasper Johns, Gerhard Richter, Richard Serra ou Cy Twombly apresentam uma fenomenal densidade criadora. Mas não exploram, com plenitude, os meios próprios à pintura para produzirem, e com eles interrogar o mundo.
Diante dos nus de Lucian Freud, que constituem a parte mais conhecida de sua obra, pode vir uma questão, aberrante em aparência: são eles, de fato, nus? Claro, estão despidos, com coxas e seios volumosos, com membros masculinos em evidência. Mas deixam de ser nus no sentido de que não são apenas corpos expostos. Os rostos demonstram uma atenção minuciosa que permite a Freud ir além da aparência e reconstituir as marcas, secretamente expressivas, que a vida deixou na trajetória de cada um: há, em suas obras, alguma coisa que se aparenta ao retrato de Dorian Gray. A intuição analítica se espalha do rosto ao corpo despojado, que deixa de ser um nu, para tornar-se um retrato vivido do todo. E corpos ou rostos, ruas ou terrenos baldios, em seus quadros, mostram-se sempre apreendidos em instante de abandono, descuidados da própria aparência, cansados de iludir, entregando ao olhar suas cicatrizes invisíveis.

Helplessness
O museu Correr, em Veneza, apresenta uma retrospectiva de Lucian Freud. São 90 obras, dispostas em percurso intenso. Há os subúrbios de Londres, vistos a partir de janelas em que planos se sucedem, revelando regiões onde o lixo se acumula, normalmente ocultas ao olhar. Há os retratos dos amigos: imensos olhos no rosto ingrato de um Francis Bacon investido pela melancolia; Frank Auerbach apreendido do alto, em escorço, com marcas de angústia na testa desguarnecida. Mais recente, de 2002, é a imagem de um David Hockney assustado, apreensivo, por trás dos óculos que lhe escorrem sobre o nariz.
Há ainda um quadro excepcional, muito discutido na Inglaterra, mas pouco mostrado ao público: o retrato de Sua Majestade Elisabeth 2ª. Foi a soberana quem o encomendou para as celebrações do jubileu de seu reinado, em 2002. Críticos foram ferozes: Robert Simon, editor do "British Art Journal", declarou que Freud deveria ser trancafiado na Torre de Londres por ter pintado a rainha parecendo um cachorro acometido por um derrame cerebral. O quadro é pequeno, de 15 x 22 centímetros. Lembra uma fotografia 3x4, de enquadramento descuidado; as margens cortam um pouco o cabelo e o alto da coroa. O segundo admirável retrato que o pintor italiano Pietro Annigoni fez de Elisabeth 2ª, em 1970, insistia na determinação estóica. Lucien Freud concentra um cansaço duro nas rugas, nas pálpebras, na boca: árdua resignação sob o diadema real.

Descendência
Neto de Sigmund o psicanalítico, Lucian o pintor descobre na nudez emanações de humanidade. Ele mesmo fala em uma aura que o corpo produz no espaço, por suas cores e cheiros, por suas mensagens silenciosas. "Assim, o pintor deve se preocupar tanto com o ar que envolve seu tema quanto com o próprio tema."

Lugar
Lucian Freud é alemão de origem, mas viveu e fez seus estudos na Inglaterra. O meio artístico inglês, que oferece formações "tradicionais", persistindo em práticas e em gêneros desdenhados por águas vanguardeiras, explica o surgimento de grandes artistas que são autênticos pintores, como Freud, Hockney ou Sutherland. Há, em Londres, a importante "Galeria Nacional de Retratos". Ali, alguns nomes conhecidos se encontram misturados a uma chusma de admiráveis criadores sem projeção internacional, porque insuficientemente modernos para as convenções das bienais e das galerias espertas.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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