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Ponto de fuga
O retrato de Dorian Gray
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
É o verdadeiro conhecimento da vida
que pode oferecer à arte uma completa independência da vida, uma independência que é necessária porque a pintura que nos toca nunca nos lembra meramente a vida, mas precisa adquirir vida ela própria..." Lucian Freud, que
escreveu estas linhas, é muitas vezes citado
como o melhor pintor realista vivo. A qualificação está errada. Ele é o melhor pintor
vivo e ponto. É possível discutir, afirmando
que existem artistas tão bons quanto ele.
Artistas, talvez. Jasper Johns, Gerhard
Richter, Richard Serra ou Cy Twombly
apresentam uma fenomenal densidade
criadora. Mas não exploram, com plenitude, os meios próprios à pintura para produzirem, e com eles interrogar o mundo.
Diante dos nus de Lucian Freud, que
constituem a parte mais conhecida de sua
obra, pode vir uma questão, aberrante em
aparência: são eles, de fato, nus? Claro, estão despidos, com coxas e seios volumosos,
com membros masculinos em evidência.
Mas deixam de ser nus no sentido de que
não são apenas corpos expostos. Os rostos
demonstram uma atenção minuciosa que
permite a Freud ir além da aparência e reconstituir as marcas, secretamente expressivas, que a vida deixou na trajetória de cada um: há, em suas obras, alguma coisa que
se aparenta ao retrato de Dorian Gray. A
intuição analítica se espalha do rosto ao
corpo despojado, que deixa de ser um nu,
para tornar-se um retrato vivido do todo. E
corpos ou rostos, ruas ou terrenos baldios,
em seus quadros, mostram-se sempre
apreendidos em instante de abandono,
descuidados da própria aparência, cansados de iludir, entregando ao olhar suas cicatrizes invisíveis.
Helplessness
O museu Correr, em Veneza, apresenta
uma retrospectiva de Lucian Freud. São 90
obras, dispostas em percurso intenso. Há
os subúrbios de Londres, vistos a partir de
janelas em que planos se sucedem, revelando regiões onde o lixo se acumula, normalmente ocultas ao olhar. Há os retratos dos
amigos: imensos olhos no rosto ingrato de
um Francis Bacon investido pela melancolia; Frank Auerbach apreendido do alto, em
escorço, com marcas de angústia na testa
desguarnecida. Mais recente, de 2002, é a
imagem de um David Hockney assustado,
apreensivo, por trás dos óculos que lhe escorrem sobre o nariz.
Há ainda um quadro excepcional, muito
discutido na Inglaterra, mas pouco mostrado ao público: o retrato de Sua Majestade
Elisabeth 2ª. Foi a soberana quem o encomendou para as celebrações do jubileu de
seu reinado, em 2002. Críticos foram ferozes: Robert Simon, editor do "British Art
Journal", declarou que Freud deveria ser
trancafiado na Torre de Londres por ter
pintado a rainha parecendo um cachorro
acometido por um derrame cerebral. O
quadro é pequeno, de 15 x 22 centímetros.
Lembra uma fotografia 3x4, de enquadramento descuidado; as margens cortam um
pouco o cabelo e o alto da coroa. O segundo
admirável retrato que o pintor italiano Pietro Annigoni fez de Elisabeth 2ª, em 1970,
insistia na determinação estóica. Lucien
Freud concentra um cansaço duro nas rugas, nas pálpebras, na boca: árdua resignação sob o diadema real.
Descendência
Neto de Sigmund o psicanalítico, Lucian
o pintor descobre na nudez emanações de
humanidade. Ele mesmo fala em uma aura
que o corpo produz no espaço, por suas cores e cheiros, por suas mensagens silenciosas. "Assim, o pintor deve se preocupar
tanto com o ar que envolve seu tema quanto com o próprio tema."
Lugar
Lucian Freud é alemão de origem, mas viveu e fez seus estudos na Inglaterra. O meio
artístico inglês, que oferece formações "tradicionais", persistindo em práticas e em gêneros desdenhados por águas vanguardeiras, explica o surgimento de grandes artistas que são autênticos pintores, como
Freud, Hockney ou Sutherland. Há, em
Londres, a importante "Galeria Nacional
de Retratos". Ali, alguns nomes conhecidos
se encontram misturados a uma chusma de
admiráveis criadores sem projeção internacional, porque insuficientemente modernos para as convenções das bienais e
das galerias espertas.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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