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O AVESSO DO AVESSO
O FILÓSOFO CANADENSE
JOSEPH HEATH AFIRMA QUE OS
MOVIMENTOS DE REBELDIA SÃO
A VANGUARDA DA PRODUÇÃO
SIMBÓLICA, QUE ALIMENTA AS
DISPUTAS POR DIFERENCIAÇÃO
E STATUS -E PORTANTO
O CONSUMO-, NO CAPITALISMO
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Um novo nicho de mercado,
impensável há alguns
anos, tem florescido nos
últimos tempos: as "grifes"
sem grife, sem marca, que deveriam
demonstrar rebeldia, mas acabam
alimentando o mercado com produtos disputados pelos consumidores.
Os responsáveis por essa nova
"fronteira" do capitalismo global?
Eles mesmos: os ativistas antiglobalização. A explicação, segundo os
pesquisadores canadenses Andrew
Potter e Joseph Heath, é que em vez
de funcionar como força de oposição à economia de mercado, a contracultura é motor dela.
Criticamos que o capitalismo fosse tratado como a Igreja Católica.
Pensava-se que, se tornando um herege, a pessoa seria uma ameaça à igreja,
ou que, se tornando um hippie,
uma ameaça ao capitalismo
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Os dois são autores do livro "The
Rebel Sell" [A Rebeldia Fajuta, Harper Collins, 368 págs., 14,95 dólares
canadenses - R$ 29], em que defendem que os símbolos da rebeldia
não são apenas cooptados pelo "sistema", mas é a própria contracultura que impulsiona o capitalismo gerando as novidades para a competição entre os consumidores. O "hippie chique", o "punk de butique"
não são exceções, mas regra. As mais
diversas modas são alimentadas pelas criações da contracultura, que
nada mais é que uma eterna competição pela diferenciação, retroalimentada pela apropriação de suas
imagens no mundo "mainstream".
Em entrevista à Folha, Heath, que
é professor de filosofia na Universidade de Toronto, explica como funciona esse processo de aceleração da
economia pela contracultura. Segundo ele, toda a idéia de que o "sistema" requer conformismo dos
consumidores está errada e desvia
uma grande quantidade de energia
progressista e utópica da ação política tradicional, a seu ver, ainda a melhor alternativa.
Folha - Como a contracultura pode
ser motor da economia de mercado
capitalista?
Joseph Heath - A contracultura como forma de rebelião, originada no
final dos 50, era baseada numa teoria
de como o sistema, o capitalismo em
geral, funciona. Ela dizia que o sistema exige conformismo, nem tanto
no que diz respeito aos trabalhadores, mas dos consumidores, para absorver o excesso de bens produzidos
pela indústria massificada. Nesse
sentido, era recomendado, como
modo de lutar contra o sistema, que
as pessoas se transformassem em
consumidores não-conformados.
O que estamos desafiando é essa
idéia básica de que o capitalismo requer conformismo. Queremos sugerir que, de fato, uma das forças da
economia de mercado é que ela é
muito boa em satisfazer simultaneamente os gostos variados dos mais
diferentes indivíduos. Então, ao se
tornar um não-conformista, não se
está realmente lutando contra o sistema, porque ele não requer esse tipo de conformismo.
Criticamos que o capitalismo fosse
tratado como a Igreja Católica. Pensava-se que, se tornando um herege,
a pessoa seria uma ameaça à igreja,
ou que, se tornando um hippie, ou
um punk, estava se tornando uma
ameaça ao capitalismo. Acho que
depois de 40 anos desse tipo de rebeldia, ficou bastante claro que esse
tipo de ação não funciona. Ele não é
uma ameaça ao sistema.
Folha - Isso é algo que surgiu com a
contracultura ou é uma acomodação
ocorrida com o tempo?
Heath - Bem, eu não acho que esse
tipo de rebelião jamais tenha se colocado como uma ameaça ao sistema.
Ela era uma ameaça para um certo
conjunto de valores predominantemente aristocráticos.
Nós temos uma explicação alternativa para o problema do consumismo. Achamos que ele não é uma
questão de lavagem cerebral, mas
que a principal questão da sociedade
de consumidores está relacionada
com a competição entre esses consumidores, no que as pessoas tentam, de formas diferentes, mostrar o
quanto são melhores que as outras,
se destacando.
A rebelião acabou se tornando
mais uma forma de as pessoas competirem entre si. Ironicamente, as
estratégias para resistir ao sistema
são, portanto, uma das principais
forças a guiar o consumismo.
Temos muito essa idéia de que as
pessoas se rebelaram originalmente,
nos anos 60, mas depois se tornaram
"mainstream". Toda essa história de
"se vender" é uma ilusão, e o que as
pessoas fazem é competirem umas
com as outras. O problema com se
rebelar é que, quando as pessoas começam a imitar o estilo do rebelado,
ele precisa encontrar uma nova forma de se rebelar. Quando as pessoas
começam a competir umas com as
outras por meio da rebeldia, sempre
que algum comportamento é popularizado, se torna inútil como forma
de expressão, então é descartado sob
alegação de que se tornou "mainstream". Não é o sistema, entretanto,
que está fazendo a cooptação aqui;
são os próprios rebeldes, que competem entre si.
Folha - O que é esse "sistema"?
Heath - A idéia de que há algo que
possa ser considerado "o sistema" é
parte dessa teoria muito influente no
final dos anos 50. Ela surge do pensamento marxista, mas o que Marx
dizia era que a ideologia reproduzia
o capitalismo, tratando especificamente de um conjunto de crenças
errôneas que as pessoas tinham. No
início do século passado, esse argumento passou a ser generalizado,
com as pessoas alegando que não
eram apenas essas crenças errôneas
que eram reproduzidas pelo capitalismo, mas a cultura como um todo.
As pessoas passaram a encarar, nos
anos 50, todos os aspectos da sociedade moderna como parte de um
mecanismo auto-reproduzido. Então o sistema não era apenas o capitalismo e a economia, mas o Estado
burocrático, e estava ligado à cultura, à religião, em um enorme sistema, contra o qual seria possível lutar
pela oposição a qualquer um de seus
aspectos.
Se a intenção era mudar algo na
economia, ou na política, se envolver com a política não seria, necessariamente, a melhor forma de fazê-lo.
A pessoa poderia facilmente tentar
mudar as coisas pela cultura, já que
todas as coisas seriam dependentes
umas das outras. Essa foi a idéia que
se tornou muito influente na contracultura. Então, fazer arte, música ou
moda poderia ter mais importantes
conseqüências que o envolvimento
com a política tradicional.
Folha - As pessoas que se envolvem
na contracultura acreditam se opor ao
capitalismo?
Heath - Acho que é meio a meio. A
maior parte é absolutamente séria
no que está fazendo. Uma tragédia é
imaginar quanta energia social progressista e utópica genuína está sendo desviada, em vez de usada na velha política. Há muita demonstração
de boa-fé, mas as pessoas também
têm noção do quanto a contracultura é competitiva. As pessoas envolvidas na contracultura sabem que há
muita disputa pela diferenciação.
Tentar ser "cool" é competitivo, e o
jeito mais fácil de sê-lo é quando os
outros não o são.
Folha - Então não existe qualquer
diferenciação entre a contracultura e
a cultura de massa?
Heath - O que está na moda hoje é o
que foi alternativo há até bem pouco
tempo. Não há diferença essencial
entre o alternativo e o "mainstream", é só uma questão de o que é
e o que não é popular.
Folha- Esse processo está mais rápido atualmente?
Heath - Sim, absolutamente. A diferença entre o alternativo e o
"mainstream" é só uma demonstração da competitividade do consumo
"rebelde". O processo está muito
acelerado. Antes, se alguém descobria algo de novo, levava meses até
que essa novidade se popularizasse.
Agora, com a internet, o ciclo é quase instantâneo. Se alguém estiver fazendo algo interessante no mundo,
isso pode ser acessado instantaneamente por todas as outras pessoas e
pode se tornar popular da noite para
o dia.
Folha - Existe alguma alternativa
real ao mercado de massa?
Heath - Há centenas de modificações que podem ser feitas na estrutura da economia de massa. A própria
economia corrige muitos de seus
próprios problemas. Por exemplo, a
tendência homogeneizante de gosto
do capitalismo é em parte uma decorrência tecnológica de como funciona a produção em massa. Com o
desenvolvimento tecnológico, é cada vez menor a necessidade de as
pessoas dirigirem carros iguais, viverem em casas similares. Com o
enriquecimento dos países, as pessoas começam a poder ter acesso a
bens mais diferenciados. A própria
produção em massa pode dar conta
de grande parte das críticas a esse
sistema de produção.
Há várias formas de melhorar o capitalismo dentro de sua estrutura.
Isso é o que governos sociais-democratas tentam na maioria dos países,
com variado grau de sucesso. Se há
alguma alternativa completa ao capitalismo, sou totalmente cético.
Folha - Qual seria a melhor forma de
tentar melhorar esse sistema?
Heath - Queremos encorajar as
pessoas a fazerem mais política tradicional, especialmente no contexto
da América do Norte, onde as pessoas críticas se sentem mais impelidas a fazerem uma oposição cultural, deixando de lado o envolvimento com partidos políticos.
Folha - Mas e os casos em que políticos comprometidos com mudanças
cedem à estrutura capitalista ao chegar ao poder?
Heath - É preciso entender que todos os governos funcionam sob limitações genuínas. Muitas vezes os
governos de esquerda, agindo sob limitações reais no seu campo de ação
impostas pela economia moderna,
são acusados de ceder às grandes
empresas. Ele não está necessariamente cedendo, mas apenas sendo
realista em relação ao que precisa ser
feito na situação em que se encontra.
Governos de esquerda são acusados de "se venderem", muitas vezes
injustamente. Se a esquerda entendesse mais de economia e passasse
menos tempo se preocupando com
questões culturais, as pessoas entenderiam melhor e valorizariam mais,
compreendendo as limitações do
trabalho do governo.
Por exemplo, o movimento da esquerda antiglobalização tem um
ideal de acabar completamente com
o capitalismo e ter o governo do povo. Se esse ideal fosse possível, tudo
o que acontece no mundo real, dentro da política tradicional, seria inadequado. O problema desse ideal é
que ninguém consegue dizer como
iria funcionar. Enquanto ninguém
tem uma alternativa coerente a essa
sociedade de capitalismo liberal,
acho que temos que ser mais flexíveis ao avaliar as limitações sob as
quais os governos trabalham.
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