São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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O AVESSO DO AVESSO

O FILÓSOFO CANADENSE JOSEPH HEATH AFIRMA QUE OS MOVIMENTOS DE REBELDIA SÃO A VANGUARDA DA PRODUÇÃO SIMBÓLICA, QUE ALIMENTA AS DISPUTAS POR DIFERENCIAÇÃO E STATUS -E PORTANTO O CONSUMO-, NO CAPITALISMO

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Um novo nicho de mercado, impensável há alguns anos, tem florescido nos últimos tempos: as "grifes" sem grife, sem marca, que deveriam demonstrar rebeldia, mas acabam alimentando o mercado com produtos disputados pelos consumidores. Os responsáveis por essa nova "fronteira" do capitalismo global? Eles mesmos: os ativistas antiglobalização. A explicação, segundo os pesquisadores canadenses Andrew Potter e Joseph Heath, é que em vez de funcionar como força de oposição à economia de mercado, a contracultura é motor dela.


Criticamos que o capitalismo fosse tratado como a Igreja Católica. Pensava-se que, se tornando um herege, a pessoa seria uma ameaça à igreja, ou que, se tornando um hippie, uma ameaça ao capitalismo


Os dois são autores do livro "The Rebel Sell" [A Rebeldia Fajuta, Harper Collins, 368 págs., 14,95 dólares canadenses - R$ 29], em que defendem que os símbolos da rebeldia não são apenas cooptados pelo "sistema", mas é a própria contracultura que impulsiona o capitalismo gerando as novidades para a competição entre os consumidores. O "hippie chique", o "punk de butique" não são exceções, mas regra. As mais diversas modas são alimentadas pelas criações da contracultura, que nada mais é que uma eterna competição pela diferenciação, retroalimentada pela apropriação de suas imagens no mundo "mainstream".
Em entrevista à Folha, Heath, que é professor de filosofia na Universidade de Toronto, explica como funciona esse processo de aceleração da economia pela contracultura. Segundo ele, toda a idéia de que o "sistema" requer conformismo dos consumidores está errada e desvia uma grande quantidade de energia progressista e utópica da ação política tradicional, a seu ver, ainda a melhor alternativa.
 

Folha - Como a contracultura pode ser motor da economia de mercado capitalista?
Joseph Heath -
A contracultura como forma de rebelião, originada no final dos 50, era baseada numa teoria de como o sistema, o capitalismo em geral, funciona. Ela dizia que o sistema exige conformismo, nem tanto no que diz respeito aos trabalhadores, mas dos consumidores, para absorver o excesso de bens produzidos pela indústria massificada. Nesse sentido, era recomendado, como modo de lutar contra o sistema, que as pessoas se transformassem em consumidores não-conformados.
O que estamos desafiando é essa idéia básica de que o capitalismo requer conformismo. Queremos sugerir que, de fato, uma das forças da economia de mercado é que ela é muito boa em satisfazer simultaneamente os gostos variados dos mais diferentes indivíduos. Então, ao se tornar um não-conformista, não se está realmente lutando contra o sistema, porque ele não requer esse tipo de conformismo.
Criticamos que o capitalismo fosse tratado como a Igreja Católica. Pensava-se que, se tornando um herege, a pessoa seria uma ameaça à igreja, ou que, se tornando um hippie, ou um punk, estava se tornando uma ameaça ao capitalismo. Acho que depois de 40 anos desse tipo de rebeldia, ficou bastante claro que esse tipo de ação não funciona. Ele não é uma ameaça ao sistema.

Folha - Isso é algo que surgiu com a contracultura ou é uma acomodação ocorrida com o tempo?
Heath -
Bem, eu não acho que esse tipo de rebelião jamais tenha se colocado como uma ameaça ao sistema. Ela era uma ameaça para um certo conjunto de valores predominantemente aristocráticos.
Nós temos uma explicação alternativa para o problema do consumismo. Achamos que ele não é uma questão de lavagem cerebral, mas que a principal questão da sociedade de consumidores está relacionada com a competição entre esses consumidores, no que as pessoas tentam, de formas diferentes, mostrar o quanto são melhores que as outras, se destacando.
A rebelião acabou se tornando mais uma forma de as pessoas competirem entre si. Ironicamente, as estratégias para resistir ao sistema são, portanto, uma das principais forças a guiar o consumismo.
Temos muito essa idéia de que as pessoas se rebelaram originalmente, nos anos 60, mas depois se tornaram "mainstream". Toda essa história de "se vender" é uma ilusão, e o que as pessoas fazem é competirem umas com as outras. O problema com se rebelar é que, quando as pessoas começam a imitar o estilo do rebelado, ele precisa encontrar uma nova forma de se rebelar. Quando as pessoas começam a competir umas com as outras por meio da rebeldia, sempre que algum comportamento é popularizado, se torna inútil como forma de expressão, então é descartado sob alegação de que se tornou "mainstream". Não é o sistema, entretanto, que está fazendo a cooptação aqui; são os próprios rebeldes, que competem entre si.

Folha - O que é esse "sistema"?
Heath -
A idéia de que há algo que possa ser considerado "o sistema" é parte dessa teoria muito influente no final dos anos 50. Ela surge do pensamento marxista, mas o que Marx dizia era que a ideologia reproduzia o capitalismo, tratando especificamente de um conjunto de crenças errôneas que as pessoas tinham. No início do século passado, esse argumento passou a ser generalizado, com as pessoas alegando que não eram apenas essas crenças errôneas que eram reproduzidas pelo capitalismo, mas a cultura como um todo. As pessoas passaram a encarar, nos anos 50, todos os aspectos da sociedade moderna como parte de um mecanismo auto-reproduzido. Então o sistema não era apenas o capitalismo e a economia, mas o Estado burocrático, e estava ligado à cultura, à religião, em um enorme sistema, contra o qual seria possível lutar pela oposição a qualquer um de seus aspectos.
Se a intenção era mudar algo na economia, ou na política, se envolver com a política não seria, necessariamente, a melhor forma de fazê-lo. A pessoa poderia facilmente tentar mudar as coisas pela cultura, já que todas as coisas seriam dependentes umas das outras. Essa foi a idéia que se tornou muito influente na contracultura. Então, fazer arte, música ou moda poderia ter mais importantes conseqüências que o envolvimento com a política tradicional.

Folha - As pessoas que se envolvem na contracultura acreditam se opor ao capitalismo?
Heath -
Acho que é meio a meio. A maior parte é absolutamente séria no que está fazendo. Uma tragédia é imaginar quanta energia social progressista e utópica genuína está sendo desviada, em vez de usada na velha política. Há muita demonstração de boa-fé, mas as pessoas também têm noção do quanto a contracultura é competitiva. As pessoas envolvidas na contracultura sabem que há muita disputa pela diferenciação. Tentar ser "cool" é competitivo, e o jeito mais fácil de sê-lo é quando os outros não o são.

Folha - Então não existe qualquer diferenciação entre a contracultura e a cultura de massa?
Heath -
O que está na moda hoje é o que foi alternativo há até bem pouco tempo. Não há diferença essencial entre o alternativo e o "mainstream", é só uma questão de o que é e o que não é popular.

Folha- Esse processo está mais rápido atualmente?
Heath -
Sim, absolutamente. A diferença entre o alternativo e o "mainstream" é só uma demonstração da competitividade do consumo "rebelde". O processo está muito acelerado. Antes, se alguém descobria algo de novo, levava meses até que essa novidade se popularizasse. Agora, com a internet, o ciclo é quase instantâneo. Se alguém estiver fazendo algo interessante no mundo, isso pode ser acessado instantaneamente por todas as outras pessoas e pode se tornar popular da noite para o dia.

Folha - Existe alguma alternativa real ao mercado de massa?
Heath -
Há centenas de modificações que podem ser feitas na estrutura da economia de massa. A própria economia corrige muitos de seus próprios problemas. Por exemplo, a tendência homogeneizante de gosto do capitalismo é em parte uma decorrência tecnológica de como funciona a produção em massa. Com o desenvolvimento tecnológico, é cada vez menor a necessidade de as pessoas dirigirem carros iguais, viverem em casas similares. Com o enriquecimento dos países, as pessoas começam a poder ter acesso a bens mais diferenciados. A própria produção em massa pode dar conta de grande parte das críticas a esse sistema de produção.
Há várias formas de melhorar o capitalismo dentro de sua estrutura. Isso é o que governos sociais-democratas tentam na maioria dos países, com variado grau de sucesso. Se há alguma alternativa completa ao capitalismo, sou totalmente cético.

Folha - Qual seria a melhor forma de tentar melhorar esse sistema?
Heath -
Queremos encorajar as pessoas a fazerem mais política tradicional, especialmente no contexto da América do Norte, onde as pessoas críticas se sentem mais impelidas a fazerem uma oposição cultural, deixando de lado o envolvimento com partidos políticos.

Folha - Mas e os casos em que políticos comprometidos com mudanças cedem à estrutura capitalista ao chegar ao poder?
Heath -
É preciso entender que todos os governos funcionam sob limitações genuínas. Muitas vezes os governos de esquerda, agindo sob limitações reais no seu campo de ação impostas pela economia moderna, são acusados de ceder às grandes empresas. Ele não está necessariamente cedendo, mas apenas sendo realista em relação ao que precisa ser feito na situação em que se encontra.
Governos de esquerda são acusados de "se venderem", muitas vezes injustamente. Se a esquerda entendesse mais de economia e passasse menos tempo se preocupando com questões culturais, as pessoas entenderiam melhor e valorizariam mais, compreendendo as limitações do trabalho do governo.
Por exemplo, o movimento da esquerda antiglobalização tem um ideal de acabar completamente com o capitalismo e ter o governo do povo. Se esse ideal fosse possível, tudo o que acontece no mundo real, dentro da política tradicional, seria inadequado. O problema desse ideal é que ninguém consegue dizer como iria funcionar. Enquanto ninguém tem uma alternativa coerente a essa sociedade de capitalismo liberal, acho que temos que ser mais flexíveis ao avaliar as limitações sob as quais os governos trabalham.


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