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Em "Hécuba" e "Troianas", Eurípides subverte os limites gregos, confundindo
helenos e bárbaros, escravos e guerreiros, vencidos e vencedores
O grito contra a cidade
JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
certa altura da "Hécuba" de
Eurípides, o coro de cativas
troianas entoa uma ode que
ostenta o selo característico
do autor. Trata-se de uma cena de
toalete, na qual a narradora relembra a noite em que Tróia foi capturada pelos gregos.
Reinava a calma na cidade, após a
explosão de alegria com a suposta
partida dos gregos. Canto e dança
haviam silenciado; era a hora em
que o doce sono espalha-se sobre os
olhos. No interior de um aposento, o
marido aguarda a mulher que apanha os cabelos numa faixa de tecido
à moda oriental, sua lança agora
inerte suspensa no gancho. Não tem
mais olhos para as tropas inimigas
que avançam território adentro, somente para a mulher, que se compraz mirando a própria imagem refletida em espelhos de ouro.
Ela já quase pronta para mergulhar na cama, eleva-se até a cidadela
um clamor súbito. O grito que corre
a cidade é um contraponto destoante à harmonia do seu penteado. De
nada lhe serve buscar refúgio no altar de Ártemis; seus olhos não vêem
mais que desgraças -o marido
morto, a cidade em chamas, ela própria arrastada como cativa a terras
distantes.
Na rápida viravolta do destino,
quando o júbilo dá vez a brados e
violência, a ode das cativas retrata de
forma oblíqua a história de Hécuba,
rainha de Tróia que vê o marido,
Príamo, ser morto barbaramente, e
sua riqueza virar cinza. A inconstância e a instabilidade da fortuna são
sublinhadas pelos marcos geográficos e temporais da peça. Tróia encontra-se vencida, mas os gregos
ainda não retornaram para casa; a
ação se passa no Quersoneso, que é
solo trácio, nem grego nem troiano,
de Tróia separado por um braço d'água, da Grécia por todo um mar.
Constante mesmo só o sofrimento
de Hécuba, cuja presença em cena
serve de fio condutor não apenas para a peça que leva seu nome mas
também para outra, produzida cerca
de dez anos mais tarde pelo mesmo
autor, as "Troianas". Ambas, que ganham muito se lidas juntamente,
saem agora num só volume com tradução e introdução -uma introdução clara, que opta por abrir possibilidades de leitura- de Christian
Werner.
Coesão
As "Troianas" apresentam uma
estrutura nítida, na qual três episódios bem definidos, cada qual marcado pelas figuras de Cassandra, Andrômaca e Helena, adquirem coesão
pelos diálogos mantidos com Hécuba (que em nenhum momento sai
de cena) e pelas idas e vindas do
mensageiro grego Taltíbio, cujos
anúncios sempre dissipam a frágil
esperança reunida durante cada episódio. Ponto fraco da tragédia é justamente o episódio central, o de Andrômaca, em parte porque serve
apenas de pretexto para a morte do
seu filho, Astíanax -a quem o heroísmo do pai, Heitor, age como
uma sentença de morte-, em parte
porque os dois episódios que o flanqueiam são particularmente vivos.
O desvario de Cassandra, que se revela na verdade sóbria sede de vingança, e a esgrima retórica entre Hécuba e Helena, da qual Menelau atua
como árbitro, acabam por acentuar
a falta de peso dramático de Andrômaca, e nem mesmo a pompa da
carruagem com que entra em cena
consegue lhe emprestar brilho.
Retórica é também, do começo ao
fim, a "Hécuba", um dos pontos altos da obra de Eurípides. Se Hécuba,
nas "Troianas", vence seu argumento com Helena, mas não alcança o
resultado esperado, a Hécuba da peça homônima transforma-se da mater dolorosa que chora sua filha Polixena, sacrificada em honra do fantasma de Aquiles, na cadela vingativa que cega e mata os dois filhos de
Polimestor, aliado trácio dos gregos,
em represália pelo assassinato de
Polidoro, único filho sobrevivente
do seu casamento com Príamo.
Marca dessa conversão são os três
diálogos que ela mantém, a intervalos regulares, com Odisseu, Agamêmnon e Polimestor. Frustrada no
primeiro, sua perícia verbal nos dois
últimos a torna semelhante a um sofista contemporâneo do autor, com
direito a silogismos hipotéticos e argumentos de probabilidade.
Nesse limbo moral em que se movem os personagens, os escravos são
mais livres que seus donos, os gregos
não são menos bárbaros que os próprios bárbaros: Polimestor mata Polidoro, Hécuba se vinga matando-lhe os filhos, atos tão bárbaros quanto o sacrifício de Polixena praticado
por Neoptólemo, o filho de Aquiles
que arrancara o velho Príamo do altar em que buscara refúgio e o matara cruelmente. O ouro que reluz no
espelho da cativa é o mesmo das armas de Aquiles ao pedir o sacrifício
de Polixena, é o mesmo que recobre
o pescoço da vítima ao ser imolada, é
o mesmo que leva Polimestor a dar
cabo de Polidoro, é o mesmo que
Hécuba usa de isca para cegá-lo. A
guerra terminou, mas não os sofrimentos, que surgem de uma hora
para outra como na ode da cativa
num clamor súbito.
José Marcos Macedo é tradutor.
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