São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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Em "Hécuba" e "Troianas", Eurípides subverte os limites gregos, confundindo helenos e bárbaros, escravos e guerreiros, vencidos e vencedores

O grito contra a cidade

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A certa altura da "Hécuba" de Eurípides, o coro de cativas troianas entoa uma ode que ostenta o selo característico do autor. Trata-se de uma cena de toalete, na qual a narradora relembra a noite em que Tróia foi capturada pelos gregos.
Reinava a calma na cidade, após a explosão de alegria com a suposta partida dos gregos. Canto e dança haviam silenciado; era a hora em que o doce sono espalha-se sobre os olhos. No interior de um aposento, o marido aguarda a mulher que apanha os cabelos numa faixa de tecido à moda oriental, sua lança agora inerte suspensa no gancho. Não tem mais olhos para as tropas inimigas que avançam território adentro, somente para a mulher, que se compraz mirando a própria imagem refletida em espelhos de ouro.
Ela já quase pronta para mergulhar na cama, eleva-se até a cidadela um clamor súbito. O grito que corre a cidade é um contraponto destoante à harmonia do seu penteado. De nada lhe serve buscar refúgio no altar de Ártemis; seus olhos não vêem mais que desgraças -o marido morto, a cidade em chamas, ela própria arrastada como cativa a terras distantes.
Na rápida viravolta do destino, quando o júbilo dá vez a brados e violência, a ode das cativas retrata de forma oblíqua a história de Hécuba, rainha de Tróia que vê o marido, Príamo, ser morto barbaramente, e sua riqueza virar cinza. A inconstância e a instabilidade da fortuna são sublinhadas pelos marcos geográficos e temporais da peça. Tróia encontra-se vencida, mas os gregos ainda não retornaram para casa; a ação se passa no Quersoneso, que é solo trácio, nem grego nem troiano, de Tróia separado por um braço d'água, da Grécia por todo um mar.
Constante mesmo só o sofrimento de Hécuba, cuja presença em cena serve de fio condutor não apenas para a peça que leva seu nome mas também para outra, produzida cerca de dez anos mais tarde pelo mesmo autor, as "Troianas". Ambas, que ganham muito se lidas juntamente, saem agora num só volume com tradução e introdução -uma introdução clara, que opta por abrir possibilidades de leitura- de Christian Werner.

Coesão
As "Troianas" apresentam uma estrutura nítida, na qual três episódios bem definidos, cada qual marcado pelas figuras de Cassandra, Andrômaca e Helena, adquirem coesão pelos diálogos mantidos com Hécuba (que em nenhum momento sai de cena) e pelas idas e vindas do mensageiro grego Taltíbio, cujos anúncios sempre dissipam a frágil esperança reunida durante cada episódio. Ponto fraco da tragédia é justamente o episódio central, o de Andrômaca, em parte porque serve apenas de pretexto para a morte do seu filho, Astíanax -a quem o heroísmo do pai, Heitor, age como uma sentença de morte-, em parte porque os dois episódios que o flanqueiam são particularmente vivos. O desvario de Cassandra, que se revela na verdade sóbria sede de vingança, e a esgrima retórica entre Hécuba e Helena, da qual Menelau atua como árbitro, acabam por acentuar a falta de peso dramático de Andrômaca, e nem mesmo a pompa da carruagem com que entra em cena consegue lhe emprestar brilho.
Retórica é também, do começo ao fim, a "Hécuba", um dos pontos altos da obra de Eurípides. Se Hécuba, nas "Troianas", vence seu argumento com Helena, mas não alcança o resultado esperado, a Hécuba da peça homônima transforma-se da mater dolorosa que chora sua filha Polixena, sacrificada em honra do fantasma de Aquiles, na cadela vingativa que cega e mata os dois filhos de Polimestor, aliado trácio dos gregos, em represália pelo assassinato de Polidoro, único filho sobrevivente do seu casamento com Príamo.
Marca dessa conversão são os três diálogos que ela mantém, a intervalos regulares, com Odisseu, Agamêmnon e Polimestor. Frustrada no primeiro, sua perícia verbal nos dois últimos a torna semelhante a um sofista contemporâneo do autor, com direito a silogismos hipotéticos e argumentos de probabilidade.
Nesse limbo moral em que se movem os personagens, os escravos são mais livres que seus donos, os gregos não são menos bárbaros que os próprios bárbaros: Polimestor mata Polidoro, Hécuba se vinga matando-lhe os filhos, atos tão bárbaros quanto o sacrifício de Polixena praticado por Neoptólemo, o filho de Aquiles que arrancara o velho Príamo do altar em que buscara refúgio e o matara cruelmente. O ouro que reluz no espelho da cativa é o mesmo das armas de Aquiles ao pedir o sacrifício de Polixena, é o mesmo que recobre o pescoço da vítima ao ser imolada, é o mesmo que leva Polimestor a dar cabo de Polidoro, é o mesmo que Hécuba usa de isca para cegá-lo. A guerra terminou, mas não os sofrimentos, que surgem de uma hora para outra como na ode da cativa num clamor súbito.


José Marcos Macedo é tradutor.


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