São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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+ sociedade

Para Robert Kurz, a crítica à pós-modernidade se confunde com sua crise, criando uma "teologia" do evento e da imediatez, enquanto a crise do trabalho leva homens a expropriar o "capital cultural" feminino

DEPOIS DO FIM

Diane Bondaref - 07.fev.2003/Associated Press
Mulheres correm nuas em protesto contra a Guerra do Iraque, no Central Park, em Nova York; elas disseram que tiraram a roupa porque atos antiguerra estão sendo ignorados


ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA

Após-modernidade está no fim. De qualquer modo, o conceito foi desde sempre um embrulho enganador: deveria sugerir algo historicamente novo e, no entanto, não podia indicar um conteúdo próprio. A vacuidade das autodenominações remete ao fato de a pós-modernidade não ser nada senão o capitalismo moderno em um estado de carência conceitual e em uma forma tardia de auto-espelhamento fútil.
O sujeito esvaziado se aprazia em cultuar a midiaticidade e o "anything goes". Desde os anos 80 essa virtualização correspondia socialmente, quanto ao aspecto tecnológico do computador pessoal, às novas mídias e tecnologias da comunicação, e, quanto ao aspecto econômico, às bolhas financeiras especulativas desenvolvendo-se nos mercados acionários e imobiliários.
Mas afinal de contas o núcleo duro do capitalismo não pode ser amolecido com simulações. É central nesse sistema a categoria de "trabalho", que por suas raízes é determinado como "masculino, branco e ocidental". A isso se vincula uma desvalorização das mulheres, às quais foram delegados todos os momentos da reprodução social apartados do "trabalho", não reduzidos a ele. Ao mesmo tempo, no código do disciplinamento destinado às injunções do "trabalho", está inscrita uma desvalorização das pessoas não-brancas, consideradas protótipos da falta de submissão à razão moderna, ao passo que as crises internas do sistema são atribuídas constantemente a um poder subjetivo alheio, como o que foi identificado aos "judeus" no contexto da história européia.
Por esse motivo, já desde a época da filosofia das Luzes, o sexismo, o racismo e o anti-semitismo são transmitidos juntamente com a positivação do trabalho, a qual forma a substância no processo de valorização do capital e não representa nada mais que o "trabalho abstrato", apreendido negativamente por Marx. Todas as outras categorias da sociedade moderna produtora de mercadorias (mercado, Estado, nação, política etc.) são determinados por essa relação essencial. Ao se limitar a uma "luta por reconhecimento" no interior da "jaula de ferro" (Max Weber) constituída por essas categorias, o marxismo tradicional acabou por reconhecer, de sua parte, o "trabalho abstrato" e seu disciplinamento, sobrelevando-o ideologicamente em uma "ontologia do trabalho" trans-histórica.


As leis do "milieu" criminoso se generalizam em todos os grupos e instituições sociais. Trata-se de mais do que a mera corrupção tradicional


Mas, dada a terceira revolução industrial, o próprio capitalismo tornou obsoleto, pela primeira vez, o "trabalho". Essa barreira interna histórica da valorização foi driblada pela economia das bolhas financeiras dos anos 90, e nesse clima o pós-modernismo simulador pôde ascender a uma ideologia de "mainstream". A esquerda pós-moderna não quis colocar o problema de uma crítica categorial às formas sociais do moderno sistema produtor de mercadorias (inclusive de uma crítica do "trabalho"); daí ter permanecido incapaz também de apreender as dimensões profundas, históricas e estruturais, do sexismo, do racismo e do anti-semitismo. Essa esquerda não foi além da velha "luta por reconhecimento" social e nacional no interior do mundo burguês, enganando-se a si mesma por passar ao largo do marxismo tradicional.
No contexto da virtualização econômica e cultural geral, ela coopera no processo de desrealizar o mundo; também a crítica da economia política iria ser "imaterializada". Por fim, Antonio Negri e Michael Hardt deram a essa tendência, com o conceito de "trabalho imaterial", uma expressão exteriormente elegante.
As lutas de classe e por independência, que outrora foram reais e há muito tempo se tornaram história, reproduziram-se como programas de simulação. A esquerda socializada pela mídia deu para crer que provocaria mudanças sociais se suas encenações aparecessem na televisão como imagens em movimento. Com base no "trabalho imaterial", o capital parecia poder acumular ilimitada e ficticiamente por meio das bolhas financeiras, como Jean Baudrillard havia afirmado com terminologia filosófica porosa já no final dos anos 70; e, conseqüentemente, a esquerda pós-modernizada se aprouve em ensaiar "lutas" fictícias e puramente simbólicas tanto quanto um teatro de escola. O capitalismo, assim parecia, era simplesmente uma espécie de "filme".

Estouro da bolha
Com o colapso da "new economy" em 2000/2001, o conceito de "trabalho imaterial" faz má figura. "Trabalho", mesmo o chamado trabalho intelectual, é sempre "dispêndio material de nervo, músculo e cérebro" (Marx). O "trabalho abstrato" no capitalismo não é uma mera coisa de pensamento, é a abstração da economia do conteúdo concreto, a qual executa, como irracional fim em si mesmo, a espremedura da energia humana. Não é por cianotipias, idéias "criativas" ou cliques de mouse que o capital se valoriza, mas somente pelas massas reais de "trabalho abstrato" empregado repetitivamente, dia a dia.
O colapso de economias nacionais inteiras desde o começo dos anos 90, o estouro das bolhas financeiras na Ásia e as crises financeiras em muitos países deixaram para trás "terra queimada" no aspecto social. Não obstante, a economia simuladora do capital fictício parecia poder florescer ainda nas metrópoles; na Europa continental ainda havia a sensação de segurança devido ao Estado de Bem-Estar; e em toda parte as camadas qualificadas, em especial nos ramos da tecnologia da informação e da high-tech, iludia-se no lado seguro. A miséria dos "outros" não era mais que um "filme" para a consciência pós-moderna.
Mas o estouro da bolha formada pela "new economy" arruinou um grande número de "sabidos" pós-modernos, desvalorizando seu saber. Propagando-se pelas metrópoles, a crise vai devorando o Estado de Bem-Estar europeu com velocidade incrível. A nova classe média decai; de repente há um filme queimado na própria vida real de muitos. Os simuladores de si próprios são confrontados com o fato de o dinheiro não crescer em árvores e de não se poder baixar maná da internet.
Em vista da aspereza da economia que a surpreende, a consciência culturalista reducionista parece se entregar a uma espécie de virada apocalíptica. O niilismo transcendental do capital e de sua "forma vazia" é pintado na parede com grandes gestos, mas sem mediação analítica. Assim como a pós-modernidade tende geralmente a exigir demais da contingência e a fazer desaparecer a diferença entre crítica e afirmação, também aqui é deixado em aberto aquilo a que se refere propriamente.
O momento quase religioso do capitalismo, como Marx sugeriu com seu conceito de fetichismo da mercadoria, não é criticado para além de Marx, é teologizado. Daí se falar de uma "virada teológica" da pós-modernidade.

Paulo
Se Agamben, seu colega francês Alain Badiou ou o polivalente pós-moderno esloveno Slavoj Zizek descobrem, com toda a seriedade, que o apóstolo Paulo é uma espécie de Lênin, então isso há de ter método. Claro, como ateus instruídos, eles não vão de cabeça baixa à escola dominical do papa Bento 16. Pelo contrário, o 13º apóstolo é usado como paradigma para a tentativa supostamente bem-sucedida de, em meio à crise de um mundo, tornar-se o criador de um novo mundo recorrendo somente a "gestos inauditos".
Paulo teria descoberto o método de dissolver a "lei antiga" por meio de uma "política da verdade" que se põe a si mesma, fazendo da morte banal de Jesus o "evento de Cristo". Tal "verdade" seria sem fundamento, não teria nada a ver com regularidades, condições e desenvolvimentos sociais. E assim a práxis da vida social deve se desabrochar também hoje graças a uma política infundada da verdade e do evento.
As mediações são definitivamente riscadas do mapa, em seu lugar deve entrar o ato que gera a si mesmo. Já os situacionistas em torno de Guy Debord não quiseram concretizar em termos teóricos e práticos seu mal-estar em relação ao "trabalho abstrato" e ao fetichismo da mercadoria, mas sim inventar "situações" para, pelo menos por alguns instantes, revogar de maneira surpreendente a ordem estabelecida. Adorno designou tais modos de pensar e proceder de "falsa imediatez". Na realidade, o próprio sujeito é mediado em termos capitalistas, e justamente por isso ele não pode pôr uma outra verdade, de forma infundada e incondicional. Também Paulo foi, em sua época, condicionado socialmente, e não o inventor de uma política autopoiética da verdade.
Carece-se hoje de uma "contramediação" consciente e tenaz, a fim de desenrolar criticamente a história da constituição capitalista, decifrar a metafísica real moderna como um nexo interno de formas econômico-políticas e conceituar negativamente a constituição de si mesmo como sujeito burguês em seu devir. Isso se aplica também à práxis da resistência social; mesmo a menor ação sindical só pode ser eficaz mediante um complexo processo de mediação. O "gesto inaudito" como substituto da contramediação crítica é um mito miserável, com que os pós-modernos esperam escapar ilesos de maneira tão barata quanto jactanciosa.
De preferência a consciência simuladora gostaria de consumir como evento também o declínio social do mundo e voltar excitada para casa. Porém, como o próprio depauperamento real e a própria degradação social não podem ser virtualizados, a teologização do capitalismo toma um rumo maldoso.

Hiper-indivíduos
Se o sujeito macho, branco e ocidental não quer admitir ainda, em sua queda, que sua própria constituição é condicionada por formas sociais e pelo afastamento do feminino, e se, pelo contrário, os "eventos" infundados devem ser postos pela política da verdade com o "raio da decisão", então, na crise, apenas a determinidade capitalista pode se reproduzir, e dolorosamente.
Nos limites do sistema do "trabalho abstrato", porém, já falta a força para a generalização social global. Enquanto a administração estatal da crise gerencia o nexo social, a sociedade fragmentada decai em uma "guerra civil molecular" (Hans Magnus Enzensberger). Com suas mistificações, a teologização pós-moderna do capitalismo vai preparando a barbárie; ela se converte na vazia e destrutiva "vontade que quer a si mesma" (Hegel).
A resposta neo-existencialista ou neo-situacionista ao niilismo da modernidade se revela, assim, uma resposta ela própria niilista. Os indivíduos atomizados, que precisam abdicar como reis de si mesmos no reino do consumo pessoal de mercadorias, não voltam a ser sociáveis. O resultado é a aglomeração casual que forma o populacho. Em toda parte se formam aqueles que se sentem ter ficado para trás, que não podem mais satisfazer sua ambição e que não são mais solventes. Só que eles não se formam para a solidariedade, mas sim para a auto-afirmação, tão descompromissada quanto militante, em contextos mafiosos, isto é, inteiramente independente de qualquer conteúdo.
As leis do "milieu" criminoso se generalizam em todos os grupos e instituições sociais. Trata-se de mais do que a mera corrupção tradicional. No empresariado, nos partidos políticos, na atividade científica e mesmo nos círculos teóricos de esquerda, a personalização dos problemas, a intriga, a patologização recíproca e o escândalo encenado estão na ordem do dia. No nível do cotidiano, a guerra de todos contra todos se converte em "estado de exceção molecular". O "evento" não aparece como ação emancipadora, mas como putsch e golpe para erguer, sobre o terreno social do formato da Disneylândia, uma "soberania" desesperada, inconsistente já na base. Na desagregação da modernidade, a história da fundação se repete como farsa em escala micrológica.
A crise da identidade masculina no capitalismo da terceira revolução industrial se exterioriza como "vingança de homens pequenos" contra os "proeminentes", que devem ser abatidos; no entanto ela aparece também como novo sexismo. Não por acaso foi também são Paulo, o pretenso inventor da política da verdade, aquele que emitiu a sentença segundo a qual as mulheres teriam de se calar na comunidade. Agora os homens pós-modernos desvalorizados querem ser até mesmo, paradoxalmente, mulheres melhores. Posições e criações femininas na sociedade devem ser expropriadas para salvar a supremacia masculina.
Paulo como "Lênin": eis um paradigma dos problemas de autovalorização dos sujeitos machos, brancos e ocidentais durante a crise do "trabalho abstrato", sujeitos que querem ainda passar a mão no feminino apartado, considerando-o "capital cultural" (Pierre Bourdieu). O carrossel do "estado de exceção molecular" gira na autofundamentação sem fundamento de sujeitos deformados, que estilizam a sua falta de perspectiva, convertendo-a em uma filosofia do evento. Assim é solicitada a "decisão" heideggeriana desprovida de conteúdo: seja sempre decidido, mas não saiba para quê.

Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "Os Últimos Combates" (Vozes). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.


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