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O AUTOR DE "METALINGUAGEM E OUTRAS METAS" FAZ UM BALANÇO DA CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA E DISCUTE A CONTRIBUIÇÃO DE NOMES COMO ALFREDO BOSI, BENEDITO NUNES E FLORA SÜSSEKIND
UMA MEDIDA CONCRETA
Costa Lima, além de ser um crítico, é, sobretudo, um pensador teórico como não temos quase no Brasil
José Marcio Rego
especial para a Folha
Haroldo de Campos lecionou na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, entre 1973 e 1989, no programa de teoria literária e posteriormente comunicação e
semiótica. Apesar de ter sido aluno da semiótica da
PUC, não tive o privilégio que meus professores Fernando Segolin e Maria Lúcia Santaella (minha orientadora no doutorado) tiveram, de terem sido alunos de
Haroldo. Como lembra Maria Lúcia: "Ele dava aula à
noite, e a força inspiradora que ele transmitia era tal
que, ao sair da aula, eu não conseguia dormir. Passava o
resto da noite estudando e sonhava um dia dar aula como ele". Em 1990 a PUC concedeu a ele o título de professor emérito. Ele, também por isso, tinha um grande
carinho pela PUC, o que facilitou muito no estabelecimento de nossa amizade.
A entrevista (da qual o Mais! publica um trecho, sobre
comentários de Haroldo a alguns críticos), desenvolvida no âmbito de um amplo projeto financiado pela
Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) de conversar com
os mais importantes intelectuais brasileiros, foi dada a
mim e a Janne Paiva em sua casa, no bairro de Perdizes,
em São Paulo, em 4 de fevereiro de 2000. Com relação a
Antonio Candido, ausente no trecho reproduzido, Haroldo afirmava o que é consenso: "Trata-se de nosso
mais importante crítico literário"-com a ressalva habitual de lamentar a ausência do barroco na "Formação
da Literatura Brasileira".
Dos críticos, seus contemporâneos ou mais recentes,
quem o sr. destaca?
Eu não posso deixar de destacar desde logo o João
Alexandre Barbosa, que é um crítico extremamente
culto, extremamente erudito, tem uma técnica fina,
uma capacidade de leitura tanto da prosa como da
poesia. Também o Luiz Costa Lima, que eu considero um grande teórico. O João Alexandre é um estudioso da história literária, mas é, sobretudo, um crítico de autores -tem um livro extremamente importante sobre João Cabral.
O Costa Lima, além de ser um crítico, é, sobretudo,
um pensador teórico como não temos quase no Brasil -toda a teoria do problema da mimese, do controle do imaginário que ele tem desenvolvido na sua
obra, mas, sobretudo, a partir do momento em que
ele tem contato com as teorias alemãs, a teoria alemã
da recepção.
E um crítico com penetração internacional....
Um crítico que tem a sua obra de reflexão teórica traduzida para o inglês, traduzida para o alemão é um
crítico, realmente, de repercussão internacional.
Como também o João Alexandre é um crítico respeitado internacionalmente nos meios universitários.
Das novas gerações, seguramente, para mim, o
maior talento crítico em análise, da poesia e da prosa, é o Nelson Ascher, que também é o melhor tradutor que surgiu entre nós, das gerações mais novas.
Excelente tradutor e finíssimo ensaísta.
E relativamente novo. O Nelson deve ter uns 45?
Quase, 44 anos. Muito erudito, tem uma magnífica
biblioteca e se ocupa não apenas da literatura brasileira, mas da literatura internacional. A formação
dele é também na FGV de São Paulo.
É, em administração de empresas...
Ele se formou em administração. Antes havia feito
uma tentativa de estudar medicina e, finalmente, fez
o curso de mestrado aqui na PUC de São Paulo e tem
se dedicado muito ao jornalismo. Hoje em dia ele só
se dedica a escrever, ele tem uma situação pessoal
abonada... E é o único herdeiro do pai, que é um industrial, de origem húngara.
Uma das grandes contribuições que ele tem feito é
na tradução de poesia húngara. Ele traduz de várias
línguas -inclusive, ele está me devendo -eu sou
teoricamente o orientador dele- uma antologia da
poesia húngara para a coleção que eu coordeno na
[editora] Perspectiva, antologia que ele já tem praticamente pronta. Tem mais de 60 poemas traduzidos, mas, perfeccionista como é, a cada vez que eu o
cobro, ele diz: não, tem mais um poema para traduzir. Eu vou conseguir extrair isso nem que seja na base da coação mesmo. (risos)
E a Flora Süssekind?
A Flora também é uma pessoa de muito bom nível.
Acho que ela tem um grande talento crítico. E ela
tem também uma vertente pessoal, que, aliás, é muito respeitável e importante; ela é uma grande pesquisadora, da história literária. Ela tem se detido muito
sobre contextos da literatura brasileira e mesmo de
autores praticamente esquecidos. Recentemente fez
uma bela edição, um belo prefácio a um livro muito
peculiar do [Joaquim Manuel de] Macedo [1820-82],
que eu por coincidência também li.
Na minha época de formação li extensivamente a literatura brasileira, poesia e prosa. E li do Macedo
coisas que nem se lembram hoje as pessoas, como
"A Luneta Mágica", "A Carteira de Meu Tio" e uma
série de outras coisas. Eu ia aos sebos e comprava tudo o que estava indicado na antologia do Américo
Werneck, uma antologia escolar. Tudo o que estava
listado, que eu pudesse encontrar, eu comprava, eu e
Augusto, meu irmão.
Acho então que a Flora deu essa contribuição. Além
de ser uma fina e aguda crítica literária, ela também é
uma pesquisadora da história literária que tem trazido alguns aspectos importantes dessa história, inclusive, como eu dizia, esse trabalho que ela faz sobre o
Macedo na sua veia cômica, na sua veia irônica, que
é um Macedo curiosamente mais próximo de "Memórias de um Sargento de Milícias" e até do Machado de Assis do que daquele Macedo mais conhecido
de "A Moreninha".
E o Alfredo Bosi?
Acho ele um homem erudito, tem uma contribuição
importante, mas ele tem muitas limitações. Uma delas eu chamaria, na falta de outra expressão, um pietismo cristão exacerbado, que o leva a ver a literatura
um pouco numa certa ótica meio caritativa. Talvez
até por uma espécie de crise de consciência, porque
um professor universitário (aliás, um casal de professores, a mulher dele também é professora, a
Ecléa) não está propriamente entre os despossuídos,
embora deva ter, como tem, consciente participação
no destino desses despossuídos.
Como eu disse recentemente, repetindo Walter Benjamin, "a esperança existe exatamente por causa dos
desesperados". Exatamente porque existe gente sem
terra e sem teto que nós, que temos teto (e temos pelo menos a terra onde estão as nossas casas), devemos lutar para que essa esperança se atualize numa
redenção desses despossuídos.
Mas o Bosi é demasiadamente caritativo, ele tem
uma visão um pouco populista, tingida assim de um
sentimento de culpa quase de fundo religioso, embora ele tenha muitas vezes lances de penetração crítica que eu considero agudos, como no caso do Sousândrade -ele é um dos críticos que recebeu a revisão do Sousândrade com maior...
Beneplácito?
Calor, até porque o Sousândrade tem aspectos participantes antecipatórios notáveis. Em 1870 ele faz
exatamente uma espécie de sarabanda orgiástica na
Bolsa de Nova York. Uma crítica ao capitalismo
americano na época das grandes corrupções de Nova York. Na época em que o grande capitalismo
americano, na época dourada, estava passando por
fatos como no Brasil hoje. Havia corrupção em tudo,
malandragens em ações da Bolsa, negócios confusos
com ferrovias... e aí o Sousândrade surpreende isso.
Ele vive dez anos em Nova York e surpreende isso e,
evidentemente, antecipa toda uma coisa que nós estamos vivendo hoje no mundo moderno, no grande
capitalismo. No Brasil é a corrupção extraordinariamente difusa.
Há autores em relação aos quais o Bosi, portanto,
tem uma compreensão maior, talvez uma afinidade
maior -Machado de Assis é um deles, o Mário de
Andrade é outro. Mas já, por exemplo, com relação
ao Oswald de Andrade, eu tenho a impressão de que
ele reage àquele anticlericalismo, talvez até um pouco voltairiano, do Oswald. Mas que, naquela época
em que o Oswald escrevia, fazia parte de uma polêmica. Nunca esquecer que o Oswald combatia pessoas como o depois respeitável Tristão de Athayde....
Que, à época, era integralista...
Que ele chamava -se não me engano na peça "A
Morta", que é uma sátira inteiramente livre ao integralismo- de "Tristinho de Ataúde". Depois, há
um testemunho num artigo de jornal que mostra
que, no fim da vida, quando o Oswald estava doente,
ele foi visitado pelo Tristão de Athayde, se reconciliaram; felizmente, Oswald não guardava rancor de
ninguém. Oswald era um homem que dizia as maiores barbaridades e depois estava disposto a se reconciliar. Ele era afetivo e ao mesmo tempo preferia perder um amigo a perder uma colocação, uma piada.
Num dado momento, ele fazia a piada e perdia o
amigo. Depois, ele queria ver se consertava, mas não
dava. Por exemplo, com o Mário de Andrade nunca
conseguiu consertar, porque o Mário, que era mais
sério, mais provinciano, jamais admitiu...
O Mário não teve essa atitude do Tristão de Athayde, de
perdoar...
Não, mas era o espírito dele, era um homem mais fechado e até frustrado, porque o Oswald era um homem plenamente realizado, o Mário tinha também
aquele problema da homossexualidade dele jamais
assumida, que sempre o torturou...
Que foi pouco explorada também, não é?
O Décio tem falado, mas agora existe um livro de um
professor americano, gay, que fez uma tese doutoral
-publicada naturalmente em inglês, nos EUA, e
que vai ser publicada pela [editora] Unesp-, que
desenvolveu sua pesquisa na Universidade Estadual
de Campinas, sobre o homossexualismo no Brasil
[trata-se de "Além do Carnaval", de James Green,
lançado no Brasil em 2000]. Quais os problemas que
atravessou, nas várias épocas, e ele apanha, entre os
exemplos literários, mas mais ou menos daquele período, o João do Rio, que é conhecido, e o caso do
Mário. Mas, enfim, o Oswald já é mais duramente assimilável. Não é assimilável assim pelo Bosi com tanta facilidade. Já acho que ele se abespinha um pouco
com aquele modo desbocado do Oswald tratar a religião cristã e católica. Não esquecer que Oswald teve
formação católica no colégio São Bento. Foi educado
pela mãe de maneira extremamente piedosa, mas
rompeu com tudo isso e esteve no Partido Comunista um período.
Foi, mais do que tudo, um espírito anarquista... Um
homem que, naturalmente, como acabei de dizer,
não deixava de fazer um comentário corrosivo, uma
piada arrasadora, quando fosse necessário.
Há o caso, que o sr. conta, da conferência de Ledo Ivo...
Essa é ótima. Ledo Ivo, um representante da Geração
de 45, num período áureo, veio fazer uma conferencia aqui em São Paulo sobre a revalidação do modernismo, no Museu de Arte Moderna, e o Oswald se levantou para fazer um aparte -ele sempre participava, sempre gostava de participar das conferências,
nunca ficava calado, queria participar. E ele fez alguma pergunta de que o Ledo Ivo não gostou, e o Ledo
Ivo se virou para ele e disse: "O senhor não pode dizer nada porque o senhor é e sempre foi o calcanhar-de-aquiles do modernismo". E o Oswald não esperou, disparou assim no ato: e o senhor é o "chulé de
Apolo" da Geração de 45. (risos) Acabou a conferência. (risos) Chulé de Apolo da Geração de 45? Depois
dessa você vai dizer o quê?
No ato, ali no ato.
Esse era o Oswald: na hora que saía o tiro, ele dava no
pique. Quer dizer, recebia e já devolvia a bola, a peteca... "Chulé de Apolo"... Trataram logo de fazer uma
retirada estratégica, acabou a coisa aí.
E o Benedito Nunes?
Bom, o Benedito Nunes é outro caso. O Benedito
Nunes e o Gerd Bornheim [morto em 2002] são dois
casos que têm certos pontos de contato, de filósofos
que fazem crítica e a fazem muito bem. Com muitas
armas de conhecimento e sensibilidade. O Gerd tem
sido, sobretudo, um crítico de teatro, além dos livros
importantes que tem publicado no campo filosófico,
desde a tese de livre-docência. Ele tem escrito muito
sobre teatro, é especialista em Brecht, talvez o nosso
mais notável especialista em Brecht. E o Benedito
Nunes, que também, em certo aspecto, é um...
Heideggeriano.
Heideggeriano. Benedito já se dedicou mais a outros
aspectos literários. À Clarice Lispector, por exemplo,
da qual, parece, é um dos mais argutos estudiosos.
Ao João Cabral, ao Guimarães Rosa... Enfim, é uma
pessoa que tem se dedicado, ao lado de sua formação
de filósofo, ao estudo literário, o que é raro no ambiente brasileiro, em que, sobretudo, nas universidades -sobretudo na USP, graças a um certo tipo de
inclinação que surgiu na evolução dos seus participantes do departamento-, a literatura sempre esteve à margem, não é?
Enquanto, por exemplo, na filosofia francesa, Sartre
desde logo sempre se ocupou da literatura e da literatura de vanguarda. Não esquecer, por exemplo, o
Sartre escrevendo sobre Faulkner, o Derrida escrevendo sobre Francis Ponge, o Foucault escrevendo
sobre o Roussel, um surrealista extremamente marginal que ele interpreta de uma forma extremamente
sofisticada, de maneira muito fina, não é? Um homem que faz um livro a partir de anagramas. Enquanto aqui nossos filósofos eram especializados em
determinadas angulações e raramente passava...
A estética no campo filosófico brasileiro não é tão explorada, principalmente a literatura...
Para eles está fora de cogitação dedicarem-se ao estudo de uma obra literária, de uma obra teatral, como é o caso do Gerd ou do Benedito Nunes, não é?
Você costuma indicar o Bento [Prado Jr.], que seria
exceção à regra. Bem, Bento Prado, tanto quanto eu
sei das coisas dele, é uma pessoa que publicava, se
não me engano, em "O Estado de S. Paulo", sonetos
parnasianos. Ele tem contribuições, tem escritos sobre Guimarães Rosa, sobre Cabral, mas não são contribuições que acrescentem alguma coisa de especial
aos numerosos estudos anteriores, embora seja louvável essa preocupação.
Agora, tomá-lo como um crítico de porte não dá...
Ele tem interesses literários, mas não se podem comparar os trabalhos que o Bento fez nesse campo seja
com os trabalhos do Gerd, seja com os trabalhos do
Benedito -essa é minha opinião.
Por que o sr. tem diminuído a intervenção na prosa crítica de temática mais ampla e mais pedagógica, como no
caso de "Metalinguagem e Outras Metas" e "A Arte no
Horizonte do Provável"?
Eu sou uma pessoa para quem o que anima, o que
faz sentir vivo aos 70 anos de idade, com uma grande
energia para trabalhar, é o fato de eu ser alimentado
por uma curiosidade permanente. E essa curiosidade me faz me mover de campo, muito rapidamente.
De repente eu me interesso em traduzir a poesia bíblica. Estudei seis anos o hebraico. Agora estou traduzindo a "Ilíada", já traduzi 15 cantos -são 24.
Quer dizer, então, eu me divido por muitos campos,
mas eu pretendo publicar uma reedição da operação
inteira, que faz parte desse conjunto de trabalhos
dessa mesma época. Primeiro saiu "Arte, Movimento Plural", depois "Operação de Texto", depois veio
a "Metalinguagem" na primeira edição. Eu pretendo
fazer uma edição ampliada com pelo menos 13 textos novos, e em que eu vou voltar a vários desses assuntos que eu abordei na época, naturalmente, com
aspectos novos.
José Marcio Rego é professor de economia na FGV-SP e PUC-SP.
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