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No romance "Um Pai Obediente" o indo-americano Akhil Sharma recoloca a questão da busca da identidade em um mundo pós-colonial
Uma experiência às avessas
Arthur Nestrovski
Articulista da Folha
Faz exatamente 20 anos que Salman Rushdie publicou "Os Filhos da Meia-Noite", romance que está para a ficção atual da Índia mais ou menos como "Cem Anos de Solidão" para a hispano-americana: um ponto de partida, uma explosão, o boom ou o Om.
De lá para cá, o crescimento da prosa indiana em língua inglesa tem sido extraordinário. Anita Desai, Vikram Seth, Rohinton Mistry, Arundhati Roy, Pankaj Mishra, Amit Chaudhuri, Jhumpa Lahiri, Ved Mehta, Amitav Ghosh -a lista é bem parcial, mas representativa da variedade e do vigor dessa literatura hoje. Ela já é ampla o bastante para abrigar um segundo time de autores que merecem, também, tradução. Entre eles, o mais novo é o indo-americano Akhil Sharma, cujo primeiro romance acaba de sair no Brasil.
O fato de Sharma ter crescido nos EUA e trabalhar como banqueiro de investimentos em Manhattan não só não é motivo para que não seja visto como escritor indiano como parece quase típico da nova geração. Metade ou mais dos "novos indianos" não mora em seu país; e as questões de identidade, que já seriam previsíveis no contexto da cultura pós-colonial, só se acentuam para quem está dentro e fora da Índia ao mesmo tempo.
Isso, aliás, é um dos fatores que torna a literatura indiana tão instigante para o leitor brasileiro. Em 1945, dois anos antes da independência, um dos patriarcas da literatura indiana em língua inglesa, R.K. Narayan, já falava nos "estrangeiros em sua própria cultura e seguidores doutrinários de outra, alimentando-se de restos e de lixo" ("The English Teacher"). Reconhecer a própria experiência como algo de valor não era menos, então, que um desafio; em boa medida, continua sendo.
Se num livro como "Um Pai Obediente", de Sharma, essa equação parece ter sido formulada às avessas -um americano buscando sua memória profunda da Índia, como forma de encontrar a própria voz-, isso, como vimos, é característico da nova cultura literária descentrada, multiplicando-se em vozes que chegam dos mais diversos cantos.
Etnologia sentimental Quando o livro corre o risco de frustrar suas ambições e se deixar ler como etnologia sentimental, não é, assim, por força do projeto. A pior ironia é ver o quanto Akhil Sharma parece preso, não à Índia da sua experiência ou da sua imaginação, mas à média de uma prosa americana média. O descompasso entre sentido e estilo pode, é verdade, sugerir um contexto mais rico; mas isso já está fora do livro e permanece inacessível a ele.
Nessa história, quem é o pai obediente? Um conhecido desconhecido nosso, oficialmente funcionário do Departamento Municipal de Educação de Nova Déli, na prática coletor de suborno para seu chefe, candidato eleitoral. Ram Karan vive com a filha e a neta numa favela dessa cidade de mais de 10 milhões de habitantes. Morar em Nova Déli é como "viver dentro de um petroleiro" ou "morar no pulmão de um mineiro de carvão". E não só por conta da poluição ambiental. O "desperdício da vida" ecoa como um bordão no fundo da mina das almas, e Karan desperdiça a sua em grande estilo -quer dizer, tão mal quanto possível.
Os eleitores brasileiros podem ficar chocados, mas o fato é que na Índia não chega a ser incomum candidatos traírem seus partidos com fins imediatos e pessoais. Também será chocante perceber que os partidos acolhem de braços abertos seus ex-adversários, na mesma medida dos consequentes ganhos financeiros. As diferenças ideológicas entre o Partido do Congresso (historicamente ligado à dinastia Nehru) e o
BJP (o Partido Nacionalista Hindu) são,
em tese, bem definidas. Mas o coronelismo da política indiana é ainda mais disseminado e mais violento
que o nosso; e os abusos a
que Karan se submete, e
aqueles que pratica, são só
pequenas engrenagens na
gigantesca máquina de
desmando.
Os abusos do romance
familiar são de outra ordem. Sharma não chega a
elaborar a tese de que os
horrores do incesto tenham um vínculo necessário com a autodestruição geral da cultura do
país, mas ela fica implícita
na leitura. Não há transcendência nessa narrativa
de vida: nem na vida nem na narrativa. A
nostalgia do passado, por uma Índia como origem pura de si, fica desde logo
cancelada pela dureza do relato. Embora,
mesmo aí, se possa ver outro risco do livro. Sharma foge dos efeitos de estilo,
mas não escapa aos efeitos de sentido.
Aquilo que não se deixa narrar em outro
contexto, uma dimensão hiperbólica da
experiência -horrenda que seja-, parece natural nesse cenário, o que talvez
seja a parcela de ressentimento ou de
sentimentalismo do exilado.
Situações extremas pedem meios extremos? Talvez não. Mas "Um Pai Obediente" parece um livro obediente demais para responder às próprias indignações. Se a "solução americana", ao final do romance, soa fácil, cabe dizer que
ela não é absurda, no quadro de voyeurismo psicológico de quase tudo o que
veio antes, e que, a despeito das aparências, também tende para o sentimental.
Nem por isso o livro de Sharma deixa
de ser interessante. Que ele seja vencido
por uma contingência externa a si mesmo -que o intervalo de identidade continue complicando a literatura- não
deixa de ser uma lição, que a nova literatura indiana vem nos ensinando como
nenhuma outra hoje.
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