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Política da representação
"A Rampa" reúne textos publicados pelo crítico Serge Daney, entre 1970 e 1982, nos "Cahiers du Cinéma"
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Partamos do senso comum que supõe que
existam dois públicos
de cinema. De um lado, encontra-se o espectador que busca na sala escura um par de horas movidas
a distração. De outro, membros
de uma espécie muitas vezes
olhada com estranheza e desconfiança, composta de cinéfilos e críticos, gente cuja paixão
se explica pela razão de ver o cinema como uma continuidade
da vida e do mundo, uma potência que os recarrega de novos, outros e múltiplos símbolos e significados.
Para aqueles que se contentam com a diversão, um livro
como "A Rampa" (Cosac Naify,
248 págs., R$ 65) assim como
parte da crítica publicada em
jornais, revistas e sites de internet não trazem nenhum interesse. Já para o segundo público, cuja invisibilidade não é
motivo para suspeitar de seu
tamanho, a primeira edição no
Brasil de escritos do crítico
francês Serge Daney (1944-1992) é motivo de sobra para
muita festa.
Pois, ao contrário do que se
alardeia (ver declaração de
Leon Cakoff em "Mostra discute "crise da cinefilia'", na Ilustrada de 8/10), não existe nem
"crise da cinefilia" muito menos "perda da credibilidade da
crítica".
Só no Brasil, basta abrir as
páginas de revistas como "Paisà" e "Teorema" e sites como
"Contracampo", "Cinética" e
"Cinequanon" para descobrir
uma produção inquieta e estimulante de idéias, abastecida
por uma geração de jovens cinéfilos e críticos que vêm, em
anos recentes, restaurando o
vigor de análise e o prazer de
decifrar como participante a
galáxia audiovisual em que estamos imersos.
"A Rampa" reúne uma seleção, feita pelo próprio Daney,
de textos publicados nos "Cahiers du Cinema" entre 1970 e
1982. Ao longo dessa fase não é
apenas o cinema que passa por
incessantes mutações. Também a revista francesa, espécie
de bíblia dos cinéfilos, teve de
enfrentar sucessivas rupturas
(teóricas, financeiras, gráficas)
para preservar o poder de influência que conquistara desde
sua fundação, nos anos 1950.
Em primeira instância, os escritos de "A Rampa" são testemunhos dessas duas histórias.
Na subdivisão interna da
obra, "Plano Geral" e "Pontos
de Vista 1 e 2" resgatam do limbo uma produção que ficou
condenada em conseqüência
dos engajamentos políticos e
teóricos da redação dos "Cahiers" nos anos pós-68.
Sua presença na edição, contudo, em vez de prova de anacronismo, ajuda a abastecer de
respostas (e mais polêmicas) a
questão-dilema que acompanha a reflexão sobre o cinema
desde que ela surgiu: para que
serve a crítica?
Outras tantas respostas o leitor encontrará nos capítulos
seguintes de "A Rampa", ironicamente intitulados "Perdas de
Vista 1 e 2". Neles, que reúnem
textos de Daney a partir de
1975, observa-se um reenfoque, uma espécie de retorno à
matéria que constitui o cinema: os próprios filmes.
Ao mesmo tempo, ganha amplitude (e clareza) o arriscado
jogo textual que Daney perseguia como particularidade e assinatura desde a primeira fase.
O arcabouço teórico de predominância estruturalista
(com Barthes e Lacan como estandartes) perde aos poucos a
pretensão de pureza e se contamina da visão e, sobretudo, da
experiência provocada pelos
filmes. Desse modo, opera-se
um curto-circuito intelectual,
na medida em que a teoria cessa de conformar a interpretação do cinema, e este passa a
informar a teoria, dando-lhe
novo alcance.
"Tubarão"
Essa gradação se dá com tal
intensidade que permite a Daney escapar dos limites da mera
análise, produzindo um corpo
teórico que se expande muito
além dela, como no caso de suas
vigorosas observações sobre a
voz no cinema partindo de um
comentário de "O Diabo Provavelmente", de Bresson.
Muito mais que na primeira
fase, assumidamente ideológica, é nesta segunda que Daney
empreende uma releitura produtiva da "Política dos Autores", promovida pelo grupo de
Truffaut, Godard, Rohmer,
Chabrol, Rivette e companhia,
primeira geração de críticos da
revista.
Em sua lucidez, Daney condena de cara os artifícios do que
ele chama de "retrô". Na medida em que o "autor" substituiu
a "estrela" como objeto de culto, ele escreve, "não é mais o
que se passa na tela que realmente conta, mas o que podemos aproveitar do querer-dizer
do Autor".
Em vez de reproduzir o institucionalizado, Daney desloca o
foco para o primeiro termo da
fórmula, afirmando sistematicamente a "política" tanto no
sentido dos não-ditos e das escolhas éticas e estéticas do artista quanto nas recargas de
significados que o público tem
a liberdade de conferir às obras.
Daí provêm, por exemplo, as
geniais desmontagens de "Tubarão", de Spielberg, e de "Hitler", de Syberberg. São textos a
anos-luz da concepção de crítica como guia de consumo e que
comprovam a tese deleuziana
de que o cinema, mais que dar
temas para pensar, é, ele mesmo, um pensamento.
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